22 de Outubro, 2024
Processo n.º 2013 001629
Créditos incobráveis não abrangidos pelo art.º 41.º – consequências fiscais do seu desreconhecimento
Doutrina
Créditos incobráveis não abrangidos pelo art.º 41.º – consequências fiscais do seu desreconhecimento
Por força do presente Despacho e com efeitos a partir da respetiva data, fica prejudicado o entendimento que, ainda na vigência do Plano Oficial de Contabilidade, foi sancionado e divulgado no segundo parágrafo da ficha doutrinária emitida sob o assunto “Créditos Incobráveis" (Processos n.ºs 1759/93 e 3783/02), segundo o qual «Os créditos em mora há mais de 2 anos e provisionados a 100% podem ser anulados, independentemente de terem sido ou não reclamados judicialmente ou de existir ou não processo especial de recuperação de empresas e proteção de credores, ou processo de execução, falência ou insolvência».
A questão ora suscitada versava (i) sobre os efeitos fiscais do desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa, não abrangidos pelo disposto no art.º 41.º, em mora há mais de dois anos e com uma perda por imparidade de 100% devidamente contabilizada e (ii) sobre a documentação de suporte a integrar no dossier fiscal.
As situações em que se pretendia desreconhecer os créditos eram as seguintes:
ii) Cessação de atividade para efeitos de IVA, nos termos do
iii) Cessação oficiosa de atividade, nos termos do n.º 6 do
iv) Cessação de atividade, nos termos da alínea a) do n.º 5 do art.º 8.º do CIRC;
v) Prescrição dos créditos nos termos do
Sobre este assunto, foi sancionado o seguinte entendimento:
1. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, o Código do IRC foi alterado e adaptado aos novos normativos contabilísticos [Normas Internacionais de Contabilidade, Sistema de Normalização Contabilística (SNC), entre outros] cuja adoção se tornou obrigatória para os sujeitos passivos de IRC.
2. Atenta a manutenção da estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade e do modelo de dependência parcial da segunda em relação à primeira e não contendo o Código do IRC qualquer dispositivo que trate do desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa
3. Face à definição de ativo financeiro presente no parágrafo 5 da NCRF 27, o crédito sobre um cliente representa um ativo financeiro.
4. E, de acordo com o parágrafo 30 da mesma norma, um ativo financeiro só deve ser desreconhecido, ou seja, só deve ser removido do balanço, quando se verificar uma das seguintes situações:
(b) A entidade transfere para outra parte todos os riscos significativos e benefícios relacionados com o ativo financeiro; ou
(c) A entidade, apesar de reter alguns riscos significativos e benefícios relacionados com o ativo financeiro, tenha transferido o controlo do ativo para uma outra parte e esta tenha a capacidade prática de vender o ativo na sua totalidade a uma terceira parte não relacionada e a possibilidade de exercício dessa capacidade unilateralmente sem necessidade de impor restrições adicionais à transferência. Se tal for o caso a entidade deve:
(ii) Reconhecer separadamente qualquer direito e obrigação criada ou retida na transferência».
5. Em resumo, um ativo financeiro só deve ser desreconhecido quando os direitos contratuais aos recebimentos dele resultantes se realizam, expiram ou são transferidos para outra entidade.
6. Reflexamente, a entidade devedora só pode desreconhecer o seu passivo financeiro (ou parte de um passivo financeiro) «quando este se extinguir, isto é, quando a obrigação estabelecida no contrato seja liquidada, cancelada ou expire» (cf. § 33 da NCRF 27).
7. Por sua vez, o Código Civil considera, para além do cumprimento previsto no
8. Nesta esteira, a entidade credora apenas pode desreconhecer um crédito de que seja titular se, e somente se:
ii) For cancelada total ou parcialmente a obrigação (caso em que o desreconhecimento também deve ser total ou parcial) – inserem-se neste quadro as situações de extinção que não implicam a satisfação do interesse específico ou sequer sucedâneo da entidade credora (são situações, por exemplo, de novação, remissão, confusão, anulação, revogação e resolução);
iii) A obrigação expirar – trata-se da repercussão do tempo nas relações jurídicas.
Determina a este propósito o
Em bom rigor, só nestes casos se extinguem verdadeiramente os direitos contratuais aos fluxos de caixa resultantes do ativo financeiro.
9. O simples facto de o crédito estar em mora há mais de dois anos e de ter sido reconhecida uma perda por imparidade de 100% não significa, só por si, que o direito contratual aos fluxos de caixa dele resultantes se extinguiu.
10. Embora em termos fiscais o que esteja causa no desreconhecimento de um crédito seja a aceitação do “gasto" correspondente ao montante em dívida, refira-se que, em termos contabilísticos, tal como acontecia na vigência do POC, o desreconhecimento do crédito sobre um cliente (ainda que indevido, ou seja, fora das situações permitidas pela NCRF 27), cuja perda por imparidade já atinja o seu valor total, não vai influenciar o resultado líquido do período, uma vez que apenas são movimentadas contas de Balanço
11. Com efeito, de acordo com as notas de enquadramento (da classe 2 – Contas a receber e a pagar) que constituem uma das componentes do Código de Contas do Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pela Portaria n.º 1011/2009, de 9 de setembro, o desreconhecimento da dívida de um cliente é efetuado creditando a rubrica do cliente (conta 21X) e debitando a rubrica das perdas por imparidade acumuladas (conta 219). O mesmo acontece, aliás, nos casos de incobrabilidade dos créditos cuja perda por imparidade atinja a totalidade do crédito.
12. No entanto, à semelhança do que acontecia anteriormente, para efeitos fiscais e em termos práticos, aquele desreconhecimento traduz-se, por um lado, num “gasto" associado ao crédito que se pretende desreconhecer e, por outro lado, num “rendimento" associado à anulação da perda por imparidade acumulada, a qual tinha sido anteriormente aceite como gasto.
13. Assim, tendo em conta o presente contexto contabilístico, a estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade e a atual preocupação do legislador em não inserir no Código do IRC qualquer norma que induza a um determinado procedimento contabilístico, não faz sentido que, para efeitos fiscais, continue a permitir-se o desreconhecimento de um crédito de cobrança duvidosa – ainda que esteja em mora há mais de dois anos e relativamente ao qual tenha sido reconhecida uma perda por imparidade de 100% – nas situações em que esse desreconhecimento não deva ser efetuado em termos contabilísticos.
Reclamação judicial de créditos ou em tribunal arbitral
14. E uma das situações em que o crédito não deve ser desreconhecido em termos contabilísticos porque não se extingue o direito contratual do credor/da obrigação civil do devedor é quando o crédito tenha sido reclamado judicialmente ou em tribunal arbitral.
15. Com efeito, se a empresa credora recorreu ao tribunal para ser ressarcida do montante em dívida é porque não pretende abdicar do direito contratual aos respetivos fluxos de caixa. Ainda que o processo esteja pendente de decisão há vários anos, o que é certo é que esse direito se mantém até que, eventualmente, a entidade credora desista da reclamação.
16. Não se tendo extinguido (por qualquer uma das causas previstas no Código Civil) o direito contratual aos fluxos de caixa resultantes do ativo financeiro, a entidade credora não deve, por força do disposto no parágrafo 30 da NCRF 27, desreconhecer o ativo.
17. Se, ainda assim, a entidade credora decidir desreconhecer os referidos créditos, o seu montante tem de ser acrescido no Quadro 07 da Declaração Modelo 22, para efeitos da determinação do lucro tributável do período de tributação em que ocorreu o desreconhecimento, uma vez que não se observam os requisitos exigidos no
18. Se, porém, o credor desistir do processo, o “gasto" associado ao desreconhecimento do ativo só é aceite fiscalmente se for integrado no dossier fiscal (1) o documento comprovativo da desistência, (2) o documento subscrito pelo órgão de gestão da empresa que deliberou a desistência e a anulação do crédito, identificando o devedor, o montante em causa e a perda por imparidade, bem como as razões que o levaram à desistência do processo e (3) a demonstração da indispensabilidade da perda resultante da diferença entre o valor do crédito e o valor eventualmente recebido. A aceitação fiscal do desreconhecimento só opera em relação à parte do crédito que haja sido objeto de desistência/perdão para a qual exista uma justificação.
19. Nesta ou noutra situação em que o crédito possa ser desreconhecido do Balanço, a aceitação fiscal do respetivo “gasto" é posta em causa se o sujeito passivo continuar a manter relações comerciais ou financeiras com o devedor.
Cessação para efeitos de IVA e cessação oficiosa de atividade
20. Também não se extingue um crédito pelo simples facto de o devedor ter cessado a atividade para efeitos de IVA, nos termos do
21. Com efeito, ainda que o devedor esteja inativo, permanecem inalteráveis as suas obrigações civis para com os credores, não sendo a inatividade uma das causas previstas para a extinção da obrigação.
Cessação de atividade nos termos da alínea a) do n.º 5 do
22. Relativamente às situações em que ocorre a cessação de atividade por uma das causas previstas na alínea a) do n.º 5 do art.º 8.º do CIRC, a aceitação fiscal do “gasto" fiscal obriga a que o credor tenha de provar que, de facto, o direito ao crédito se extinguiu.
23. Este preceito abrange várias situações, com contornos diferentes, o que implica que o credor tenha de integrar no dossier fiscal documentação específica para comprovar a incobrabilidade do crédito. Vejamos alguns exemplos:
ii) Se a sociedade devedora se extinguiu em consequência de fusão por incorporação, decerto que a sociedade beneficiária assumiu o passivo da sociedade fundida. Nesta situação, embora a sociedade fundida tenha cessado a atividade para efeitos do Código do IRC, nos termos da alínea a) do n.º 5 do seu art.º 8.º, não se verificou a extinção do direito do credor ao recebimento da dívida, havendo, sim, e apenas, uma alteração da entidade devedora, pelo que não pode haver lugar ao desreconhecimento do ativo.
Processos referidos na alínea a) do n.º 1 do art.º
24. Também nos casos em que ainda esteja em curso (i) um processo de execução, (ii)
um processo de insolvência, (iii) um processo especial de revitalização ou (iv) um procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), o ativo financeiro não deve ser desreconhecido do balanço.
25. Se, porventura, o valor do crédito for objeto de redução no âmbito do próprio processo, por decisão dos vários credores, apenas pode ser removida do balanço a quantia “perdoada".
26. Neste caso, deve ser integrado no dossier fiscal o documento que comprove a respetiva decisão.
Prescrição dos créditos nos termos do art.º 309.º do Código Civil
27. No que concerne aos créditos sobre os quais decorreu «o prazo de vinte anos desde a sua constituição» (cf. art.º 309.º do Código Civil), refira-se que o facto de já terem decorridos 20 anos desde a constituição do direito de crédito não tem como consequência necessária que o crédito já se encontre prescrito, em virtude da possibilidade de se ter verificado uma interrupção do prazo de prescrição ou uma suspensão do mesmo.
Nos casos em que, efetivamente, se verifique a prescrição da obrigação civil, a entidade credora pode proceder ao desreconhecimento do crédito, na medida em que expiraram os direitos contratuais aos fluxos de caixa dele resultantes.
28. O documento a integrar no dossier fiscal deve ser o original da fatura que deu origem ao crédito prescrito, através da qual se comprova que foi ultrapassado o prazo de prescrição a que se refere o art.º 309.º do Código Civil.
29. Caso o devedor venha, mais tarde, a cumprir a obrigação natural, o montante recebido deve concorrer para a formação do lucro tributável do período de tributação em que tal facto ocorra.
Conclusão
30. Nestes termos:
b) Este “gasto" só não constitui uma componente positiva do lucro tributável se, cumulativamente:
ii) Ter já sido reconhecida a perda por imparidade de 100%; e
iii) O desreconhecimento for motivado pela extinção do direito do credor [situação prevista na alínea (a) do § 30 da NCRF 27], o que só acontece quando ocorra qualquer uma das causas de extinção das obrigações, além do cumprimento, previstas no Código Civil.
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