Jurisprudência

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Processo n.º 958/23.1T8VIS-B.C1.S1

 

Número: 958/23.1T8VIS-B.C1.S1
Data: 7 de Outubro, 2025
Tipo: Tribunais Judiciais
Tribunal: Supremo Tribunal de Justiça

Sumário

I – O incidente de qualificação da insolvência previsto nos artigos 185º a 191º do CIRE constitui uma fase processual destinada a aferir da existência, ou não, de culpa na origem da insolvência em que a sociedade veio a cair, ou do seu agravamento, através da comprovação em juízo de práticas ou comportamentos tipificados como gravemente imprudentes, irregulares, fraudulentos ou desleais por parte daqueles que em seu nome e interesse agiram, e que, segundo a cláusula geral consagrada no artigo 186º, nº 1, do CIRE, acabaram por se revelar causais relativamente à impossibilidade do ente colectivo satisfazer as suas dívidas vencidas perante terceiros, seus credores.
II – Este instituto jurídico prossegue dois desideratos fundamentais: conferir maior eficácia à actividade judicial tendente à responsabilização dos titulares e administradores de pessoas colectivas das empresas declaradas insolventes; prevenir e evitar, pelo cariz dissuasor e fortemente sancionatório para todos agentes directamente envolvidos, a profusão de situações de insolvências fraudulentas ou, pelo menos, evitáveis com outro tipo de gestão séria, responsável e diligente no cumprimento das normas legais aplicáveis, que acarretam avultados prejuízos para os credores e consideráveis danos para a confiança no giro comercial, bem como para a vida económica, social e empresarial em geral. III – O legislador, bem ciente das dificuldades práticas no apuramento e efectiva demonstração das condutas (muitas vezes dissimuladas ou encapotadas) que conduziram causalmente à insolvência não fortuita ou ao seu agravamento, instituiu nos artigos 185º a 189º do CIRE um sistema que, sinalizando determinadas situações-tipo, nuns casos faz concluir imediatamente, sem possibilidades de prova em contrário, pela culpabilidade na situação de insolvência ou no seu agravamento, que se presume em termos inilidíveis; noutros onera (uma vez comprovados os factos enquadráveis na previsão normativa) os responsáveis com a prova das circunstâncias que lhes permitem afastar, no caso concreto, a sua presumida culpabilidade na insolvência ou no seu agravamento, o que naturalmente facilita e torna muitíssimo mais viável a sua pronta e completa responsabilização.
IV – As diversas alíneas do nº 2 do artigo 186º do CIRE, verificada a demonstração do preenchimento dos elementos de facto descritos nas previsões normativa, abrange a impossibilidade legal do afastamento do nexo de causalidade entre a situação típica descrita e a insolvência da sociedade devedora, ou o seu agravamento, que assim se presume de forma inilidível, sendo as garantias de defesa da sociedade e dos afectados devidamente exercidas no momento em lhes é concedido pelo sistema jurídico a ampla possibilidade de contradizer processualmente a subsunção da realidade em apreço na norma legal em referência.
V – Havendo o administrador da sociedade decidido, na iminência da declaração da insolvência desta e no exercício dessas funções, realizar uma escritura de doação em que foi alienado a uma outra sociedade, cuja gerente era pessoa familiar próxima (filha) e também administradora registada da insolvente, um determinado imóvel que estava em nome da sociedade, esta conduta de ambos agravou sensivelmente a situação da insolvência, integrando a previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE e sendo de qualificar, com este fundamento, como culposa a insolvência. VI – Tendo o requerido assumido uma postura, ao longo do processo de insolvência, de total e aberta recusa de colaboração com o desempenho das funções do administrador desta, não dando sequência aos seus contactos e interpelações, e não facultando qualquer tipo de documentação necessária e pertinente, como constituída sua especial obrigação, devidamente plasmada no artigo 83º do CIRE, fazendo-o de forma reiterada e relapsa, com total desinteresse e absoluto desrespeito pelas finalidades do presente processo e pelas próprias pessoas do administrador da insolvência e dos credores da sociedade, tal comportamento integra a previsão da alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, sendo de qualificar, com este fundamento, como culposa a insolvência.
VII – É equilibrada a fixação ao requerido da inibição pelo período de 3 (três) anos prevista nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 189º do CIRE e, nos termos do artigo 189º, nº 4, do mesmo diploma legal, a sua condenação a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, na proporção dos respetivos créditos e em montante correspondente à diferença entre o valor global do passivo e o activo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, a liquidar posteriormente.
VIII – É equilibrada a fixação à requerida da inibição pelo período de 2 (dois) anos prevista nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 189º do CIRE e, nos termos do artigo 189º, nº 4, do mesmo diploma legal, a sua condenação a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, na proporção dos respetivos créditos e em montante correspondente ao valor do imóvel doado, com o limite máximo do valor dos créditos insatisfeitos, a liquidar posteriormente.