Diploma

Diário da República n.º 124, Série I de 2014-07-01
Acórdão n.º 11/2014

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2014

Emissor
Supremo Tribunal de Justiça
Tipo: Acórdão
Páginas: 0/0
Número: 11/2014
Publicação: 3 de Julho, 2014
Disponibilização: 1 de Julho, 2014
«É inconstitucional, por violação do art. 30º, nº 3, da Constituição, a norma do art. 8º, nº 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade»

Diploma

«É inconstitucional, por violação do art. 30º, nº 3, da Constituição, a norma do art. 8º, nº 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade»

Acórdão n.º 11/2014

Proc. n.º 331/04.0TAFIG-B.C1-A.S1 – 3.ª Secção

Rel.: Eduardo Maia Costa
Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

Por acórdão de 8.1.2014, proferido nos autos, este Pleno fixou a seguinte jurisprudência:

Nos termos do n.º 7 do art. 8.º do Regime Geral de Infrações Tributárias, sendo condenados, em coautoria material de infração dolosa, uma pessoa coletiva, ou sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada, e os seus administradores, gerentes, ou outras pessoas que exerçam de facto funções de administração, estes são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas em que a pessoa coletiva, sociedade ou entidade fiscalmente equiparada for condenada, independentemente da responsabilidade pessoal que lhes caiba.

Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (TC), ao abrigo dos arts. 70.º, n.º 1, g), 75.º-A, n.ºs 1 e 3, e 72.º, n.ºs 1, a), e 3, da Lei do Tribunal Constitucional, invocando decisões anteriores daquele Tribunal que haviam julgado inconstitucional esse entendimento normativo, por violação quer do art. 29.º, n.º 1, quer do art. 30.º, n.º 3, ambos da Constituição.

Por decisão sumária de 18.3.2014, o TC decidiu julgar procedente o recurso, aplicando a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante do Acórdão n.º 171/2014, de 18.2.2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 13.3.2014, para cujos fundamentos remeteu. Este acórdão declarou a “inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art. 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade, por violação do art. 30.º, n.º 3, da Constituição".

Transitada em julgado a decisão sumária, há que reformar a decisão deste Supremo Tribunal, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade nela formulado, nos termos do art. 80.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.

Colhidos os vistos e reunido o Pleno das Secções Criminais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

O acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.2014 tem a seguinte fundamentação:

1. Tradicionalmente o direito penal pós-iluminista consagrava a regra da responsabilidade penal exclusiva das pessoas físicas[1]. Claramente o estabelecia o art. 28.º do Código Penal de 1886[2].

Esta regra foi sofrendo erosão ao longo das últimas décadas, mercê da expansão da intervenção estatal na economia e da própria evolução da comunidade política para um “Estado de direito democrático e social", o que determinou o aparecimento de novos bens jurídicos, de cariz supraindividual, que o Estado procurou proteger penalmente. Assim nasceu o “direito penal económico", a par do “direito penal clássico", que colocou a breve trecho a questão central da insuficiência da responsabilidade das pessoas físicas, e consequentemente da indispensabilidade da responsabilização penal das pessoas coletivas, para uma proteção adequada e efetiva dos novos bens jurídicos[3].

Embora o Código Penal de 1982, na sua versão originária, ainda estabelecesse o “caráter pessoal da responsabilidade" (art. 11.º), contudo, esse preceito já continha uma ressalva “salvo disposição em contrário", com o objetivo evidente de abrir as portas, embora a título excecional, à responsabilidade das pessoas coletivas.

Foi efetivamente o que sucedeu logo em 1984, com o DL n.º 28/84, de 20-1 (crimes contra a economia e a saúde pública), que veio prever a responsabilidade criminal das pessoas coletivas e equiparadas no âmbito das infrações previstas no diploma (art. 3.º), responsabilidade essa autónoma (e cumulativa) da responsabilidade individual dos seus agentes (n.º 3 do mesmo artigo).

Esta regra (ou exceção) veio a alastrar a outros regimes jurídico-penais especiais, como os da criminalidade informática (art. 3.º da Lei n.º 109/91, de 17-8[4]), das infrações tributárias (art. 7.º do RGIT), do terrorismo (art. 6.º da Lei n.º 52/2003, de 22-8), e do direito penal laboral (Código do Trabalho de 2003, art. 617.º, na versão originária).

Por fim, em 2007, a Lei n.º 48/2007, de 29-8, introduziu no próprio Código Penal a regra da responsabilidade das pessoas coletivas, embora restrita ao catálogo de crimes aí estabelecido (nova redação do art. 11.º).

O princípio da responsabilidade penal das pessoas coletivas abriu, pois, caminho através do denominado “direito penal secundário" até romper as portas do dito “direito penal clássico", e do seu diploma paradigmático: o Código Penal.

Sendo embora a responsabilidade penal das pessoas coletivas e a dos seus agentes autónomas e cumulativas (isto é, cada um é responsável por si, sendo portanto individualmente condenado e responsabilizado pela sua pena) elas não são absolutamente estanques ou incomunicáveis.

Na verdade, o art. 3.º, n.º 3, do DL n.º 28/84, de 20-1, prevê a responsabilidade solidária, nos termos da lei civil, das pessoas coletivas pelo “pagamento das multas, coimas, indemnizações e outras prestações em que forem condenados os agentes das infrações previstas no presente diploma".

Neste diploma é a responsabilidade das pessoas físicas que se “estende" às pessoas coletivas[5].

Já nos crimes de terrorismo, é a responsabilidade da pessoa coletiva que se comunica, no caso de ela não ter personalidade jurídica, aos associados (art. 6.º, n.º 6, da Lei n.º 52/2003, de 22-8).

Por sua vez, o atual art. 11.º do CP prevê a responsabilidade subsidiária das “pessoas que ocupem uma posição de liderança" pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa coletiva for condenada (n.º 9), sendo solidária essa responsabilidade entre as várias pessoas responsáveis (n.º 10); e, no caso de as multas ou indemnizações serem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, na falta ou insuficiência de património comum, responde solidariamente o património de cada um dos associados (n.º 11).

Constata-se pois que a responsabilização penal das pessoas coletivas foi acompanhada por formas de comunicação da responsabilidade entre elas e os seus representantes ou agentes, num sentido, ou no outro, no pagamento de multas, coimas ou indemnizações.

Porém, essa corresponsabilização assume uma natureza exclusivamente civil, sendo umas vezes subsidiária, outras solidária[6].

Importa agora atentar no regime das infrações tributárias.

2. Como se referiu, o art. 7.º do RGIT prevê a responsabilidade penal das pessoas coletivas e equiparadas (n.º 1), cumulativamente com a responsabilidade dos respetivos agentes (n.º 3), exceto no caso de contraordenações (n.º 4).

Mas, a par da responsabilidade penal, o diploma prevê ainda, no art. 8.º, a responsabilidade civil, mas apenas quanto ao pagamento de multas e coimas, sendo o teor do preceito o seguinte[7]:

Artigo 8.º
Responsabilidade civil pelas multas e coimas

1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

2 – A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.

3 – As pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.

4 – As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infrações fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei.

5 – O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou incapazes, quanto às infrações por estes cometidas.

6 – O disposto no n.º 4 aplica-se às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas.

7 – Quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso.

8 – Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade.

Prevê o artigo diversas situações de responsabilidade civil de administradores, gerentes, e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas coletivas, sociedades comerciais e outras pessoas fiscalmente equiparadas, pelo pagamento de multas e coimas aplicadas às pessoas coletivas.

Para a solução da questão em análise, importa considerar especialmente os n.ºs 1 e 7 do artigo.

No n.º 1 prevê-se a responsabilidade subsidiária dos administradores das pessoas coletivas pelas multas e coimas em que estas forem condenadas quando for por culpa sua (dos administradores) que o património da condenada se tornar insuficiente para o pagamento das mesmas.

Por sua vez, no n.º 7, estabelece-se a responsabilidade solidária (já não meramente subsidiária) daqueles que colaborarem dolosamente na prática da infração, independentemente da sua responsabilidade individual. Prevê, pois, este preceito que o administrador, além da responsabilidade pessoal (penal) que lhe caiba como coautor da infração, seja ainda responsável, e solidariamente, pelo pagamento das multas penais e coimas em que a pessoa coletiva seja condenada.

O legislador não deixa lugar a dúvidas: trata-se de responsabilidade civil, conforme resulta da própria epígrafe do art. 8.º.

E de uma responsabilidade civil que tem como pressuposto um facto próprio: culpa na insuficiência do património da pessoa coletiva, no caso do n.º 1; coautoria da infração, no caso do n.º 7[8].

Mas estando em causa o pagamento de multas criminais ou coimas devidas pela pessoa coletiva, aplicadas em processo penal, e não um qualquer dano civil, não se devem convocar os princípios do direito penal quanto à responsabilidade pelas penas?

Por outras palavras: sob a capa de “responsabilidade civil" não estará o legislador a estabelecer antes uma (dupla) responsabilidade sancionatória do administrador?

É esta fundamentalmente a tese do acórdão-fundamento e da jurisprudência em que insere.

Na doutrina, destacam-se as já referidas posições de Almeida Costa e de Nuno Brandão. Almeida Costa, reportando-se ao Código do Trabalho (art. 617.º, n.º 2, na versão originária, art. 551.º, n.º 4, na versão vigente), considera que a responsabilidade solidária do contratante pelas coimas aplicadas ao subcontratante, prevista no citado preceito, constitui uma ofensa do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal e também do princípio da culpa. E de passagem imputa aos arts. 3.º, n.º 3, do DL n.º 28/84, de 20-1, 3.º, n.º 4, da Lei n.º 109/91, de 17-8, e ao art. 8.º do RGIT a violação do princípio non bis in idem[9].

Na mesma linha, Nuno Brandão, referindo-se ao art. 11.º do CP, na sua versão atual, considera o regime de responsabilidade subsidiária das pessoas que ocupam “posições de liderança" nas pessoas coletivas como uma verdadeira transmissão da responsabilidade penal, ofendendo os princípios constitucionais da pessoalidade da responsabilidade penal, da culpa, e da proibição do non bis idem[10].

Não foi essa, porém, a posição do Tribunal Constitucional (TC) quando analisou o n.º 1 do art. 8.º do RGIT. Como já vimos, este preceito prevê a responsabilidade subsidiária dos administradores pelas multas e coimas aplicadas à sociedade quando, por culpa sua, o património desta se tornar insuficiente para o pagamento daquelas. Este preceito abrange, portanto, as situações em que o administrador não é responsável penalmente pela infração, mas apenas culpado da insuficiência do património da pessoa coletiva para o pagamento das multas e coimas aplicadas à sociedade.

Dúvidas insistentes se tinham levantado na jurisprudência administrativa e constitucional sobre a constitucionalidade deste preceito. O Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se de modo reiterado pela sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da proibição da transmissão da responsabilidade penal, e ainda dos direitos de defesa e de audiência[11]. O TC proferiu decisões contraditórias em secção[12], acabando por, em plenário, se decidir pela não inconstitucionalidade do preceito, embora com diversos votos de vencido[13], considerando tratar-se de responsabilidade civil extracontratual por facto próprio[14].

3. Vejamos agora o n.º 7 do art. 8.º do RGIT, que constitui o cerne da questão decidenda. A hipótese é diferente: trata-se de responsabilidade solidária no pagamento de multas e coimas aplicadas à pessoa coletiva de quem colaborar dolosamente na prática da infração tributária, independentemente da sua responsabilidade pessoal pela mesma infração.

Por outras palavras, prevê-se aqui que quem colaborar dolosamente na prática de uma infração imputada a uma pessoa coletiva seja responsável solidariamente com esta pelo pagamento da multa ou coima em que ela for condenada, ainda que seja pessoalmente condenado pela prática da mesma infração em coautoria. Além de ter de cumprir a pena em que for condenado como coautor, pode ainda ser responsabilizado solidariamente pelo pagamento da multa ou coima aplicada à sociedade pela mesma infração.

Assim, sempre que o administrador seja responsável (coautor material), a par da sociedade, da prática da infração, responde penalmente pela sua ação, e civilmente (em solidariedade com aquela) pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à sociedade.

Como já se assinalou, é evidente a intenção do legislador em reforçar as garantias de pagamento de multas e coimas tributárias. E fá-lo através de um mecanismo do direito civil: a responsabilidade solidária. Pode, pois, o Estado executar tanto a sociedade condenada como o seu administrador, não sendo necessário, como acontece no n.º 1 do mesmo art. 8.º do RGIT, que o património da sociedade se mostre insuficiente.

A grande dúvida que se coloca é se, embora caracterizada como responsabilidade civil, esta não passa afinal de um “manto diáfano"[15] a esconder a “nudez forte" da responsabilidade penal.

É esse o pressuposto de que parte toda a argumentação subjacente à posição em que se insere o acórdão-fundamento, subscrita igualmente pelo recorrente e pelo Ministério Público: que a responsabilidade apelidada de “civil" pelo legislador é afinal de natureza penal, que aquele nome é um mero disfarce, ou uma “burla de etiquetas".

É nesse sentido que também se tem pronunciado e decidido o TC[16], embora com fundamentação nem sempre coincidente.

Assim, o acórdão n.º 1/2013 considerou que a norma viola o disposto no n.º 5 do art. 29.º da Constituição, o princípio da proibição do non bis in idem. Aí se considerou que, embora a obrigação solidária seja qualificada pela lei como de natureza civil, ela representa na prática uma consequência jurídica do mesmo facto pelo qual o administrador foi punido a título individual, ao contrário do que acontece com o n.º 1 do art. 8.º, em que a responsabilidade assenta em facto próprio do responsável civil: a colocação da sociedade na impossibilidade de cumprir. Daí se conclui que não se está perante uma responsabilidade civil ressarcitória, mas sim perante uma extensão da responsabilidade penal da pessoa coletiva ao administrador. E, acrescendo a responsabilidade solidária à sua própria responsabilidade pela comparticipação na infração, verifica-se a violação do princípio non bis in idem.

Já o acórdão n.º 297/2013 seguiu caminho diferente. Nesta decisão entendeu-se que o preceito em causa, estendendo a responsabilidade penal da pessoa coletiva a outras pessoas, desde que tenham colaborado dolosamente na prática da infração, e resultando a moldura sancionatória e a medida da sanção de critérios estranhos à conduta dos responsáveis, se verifica a violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, expresso no n.º 3 do art. 30.º da Constituição.

Este foi igualmente o entendimento subscrito no acórdão n.º 354/2013.

Esta jurisprudência, embora com fundamentação diferente, concorda na conclusão – inconstitucionalidade do preceito – e no pressuposto de partida – natureza penal da responsabilidade “transmitida".

Se fosse assim, isto é, se se tratasse de responsabilizar penalmente o administrador pela infração da pessoa coletiva, em acumulação com a responsabilidade penal própria pela mesma infração, dúvidas não haveria de que qualquer daqueles princípios constitucionais, ou ambos simultaneamente, estaria ferido pela norma em apreciação.

Mas esse pressuposto de partida é contestável e inconvincente. Ou seja, a interpretação da norma em que assentou a argumentação do TC não é a única, nem sequer a melhor, interpretação da mesma[17]. Foi essa aliás a posição assumida, em voto de vencida, pela Cons. Fátima Mata-Mouros, no acórdão n.º 297/2013.
Afirma ela resolutamente que a responsabilidade prevista no n.º 7 do art. 8.º não tem natureza penal mas apenas civil, e que encontra justificação nos deveres jurídicos do gerente da empresa.
Transcrevem-se algumas passagens, especialmente significativas, desse voto:

3. De todo o modo, a comunicabilidade da responsabilidade prevista na norma em análise não se apresenta como uma medida sancionatória de natureza penal.

O regime de comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento de multa constitui, de há muito, regra no direito penal secundário. Já mesmo antes da consagração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas no Código Penal de 1982, era possível encontrar em legislação de direito penal secundário, normas com estrutura equivalente a ora em análise, estabelecendo a responsabilidade solidária da pessoa coletiva pelas multas aplicadas aos seus representantes ou empregados (v. artigo 4.º do Decreto-Lei 31 328, de 21 de junho de 1941). A vigência de tais normas em época anterior à previsão da responsabilidade penal das pessoas coletivas não se compadece com a atribuição de outra natureza, que não seja a meramente civil, à referida obrigação.

É certo que no caso em presença estamos perante a responsabilização dos gerentes de uma pessoa coletiva pela multa aplicada pela infração por esta cometida. A razão de ser da responsabilidade solidária contemplada continua, porém, a ser a mesma: a garantia pelo pagamento do quantitativo monetário da multa.

4. Reportando à norma ora em apreciação importa começar por delimitar a dimensão da responsabilidade solidária nela estabelecida. Esta dirige-se, tão-só, ao pagamento da quantia monetária em concreto (e de natureza fungível) que foi atribuída à pena de multa aplicada ao agente. A comunicabilidade da responsabilidade não se estende ao substrato penal da multa, enquanto teor valorativo da pena criminal que encerra o dever de realizar as finalidades das penas, e nessa medida se apresenta com natureza “pessoalíssima" (como se refere no acórdão), não podendo, por conseguinte, ser transmissível ou comunicável.

E sendo assim, a solidariedade passiva prevista na norma em análise não traz, em si, implicada qualquer deturpação da “pessoalidade" da responsabilidade penal. Com efeito, da referida obrigação solidária de pagamento da multa não decorre qualquer consequência de natureza estritamente penal. O obrigado solidário apenas responde pelo pagamento na medida do seu património. Se não tiver património para solver aquela garantia, não sofre qualquer sanção adicional, nem essa responsabilidade, de garante, é levada a inscrição no seu certificado criminal.
(…)

6. Atendendo, assim, à natureza da obrigação decorrente da norma, não configurável como uma sanção penal, ela surge como instrumento adequado aos fins a que se destina: garantir o pagamento da quantia monetária em que a pessoa coletiva foi condenada, respeitando ainda o princípio da culpa quanto aos pressupostos da responsabilidade civil respetiva, uma vez que a colaboração dolosa do obrigado solidário é condição da atribuição da responsabilidade.

Considerando que a norma ora em apreciação se dirige apenas aos administradores ou gerentes (e não a outros agentes, como os trabalhadores ou a mandatários sem poderes de representação) da sociedade, na medida em que estes se identificam com a pessoa coletiva que representam, é de concluir ainda que a solidariedade no pagamento da multa surge igualmente como necessária para promover a autorresponsabilidade das entidades coletivas.

Finalmente, a regra das obrigações solidárias segundo a qual o obrigado mantém direito de regresso contra o obrigado principal afasta o risco de desproporcionalidade na comunicabilidade desta obrigação.

É esta argumentação, essencialmente correta, que importa aqui retomar.

Na verdade, a afirmação de que a responsabilidade solidária do administrador constitui uma transmissão ou extensão da responsabilidade penal da pessoa coletiva ao administrador é manifestamente apressada.

A toda a pena subjaz um juízo de censura eticamente fundado. Ora, o que se comunica ao administrador é a obrigação de pagar a multa, mais nada. Essa obrigação não encerra qualquer censura penal. A pena, essa, “não sai" da pessoa coletiva. Continua a ser esta, e somente ela, a pessoa condenada, a censurada penalmente com a aplicação da pena. É no seu cadastro que a condenação vai ser inscrita. O administrador não é condenado em vez da sociedade, nem é condenado duas vezes. A pessoa coletiva não é absolvida, nem declarada extinta a sua responsabilidade penal, se o administrador pagar a multa. As duas condenações penais, do administrador e da pessoa coletiva, subsistem lado a lado. Não há, pois, nenhuma transmissão da pena em que esta foi condenada.

E tanto assim é que o administrador, responsável solidário, por um lado, não será responsabilizado, se não tiver património; por outro, pode exercer o direito de regresso contra a sociedade (art. 524.º do Código Civil), “devolvendo-lhe" então a responsabilidade assumida por imposição da lei.

Acresce que, se a multa da sociedade não for paga pelo administrador, ela nunca poderá ser convertida em prisão subsidiária, nos termos do art. 49.º do CP, como aconteceria se de uma verdadeira pena se tratasse.

Em síntese: nenhuma censura penal encerra a comunicação ao administrador do dever de pagar a multa da sociedade, nenhuma finalidade penal está ínsita nessa comunicação, não são os fins das penas que a determinam.

A responsabilidade civil dos administradores constitui apenas e somente um mecanismo específico de garantia do pagamento de multas e coimas da pessoa coletiva neste tipo de infrações.

Uma função de garantia da responsabilidade solidária que aliás não é arbitrária, antes tem um fundamento material. Com efeito, a responsabilidade do administrador há de assentar numa atuação culposa (coautoria material) na prática da infração. Acresce que a responsabilidade solidária resulta de alguma forma dos deveres dos administradores ou gerentes das sociedades, dadas as funções de representação e de gestão do património da pessoa coletiva que desempenham.

Embora perspetivada do ponto de vista inverso, ou seja, da solidariedade da pessoa coletiva no pagamento das multas dos seus agentes, importa considerar a posição subscrita por Inês Fernandes Godinho:

E não se queira retirar desta responsabilidade solidária uma colocação em risco do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal. Porque esta responsabilidade apenas e unicamente se refere ao pagamento do conteúdo da multa, sendo alheia a qualquer censura ética que lhe esteja ínsita decorrente da sua natureza de pena criminal. E o conteúdo da multa é única e somente a pecunia. Este conteúdo da multa, efectivamente assegurado pela posição de garante da pessoa colectiva no seu pagamento, funciona – através de um Estado de direito democrático – como meio de uma reposição de um equilíbrio afectado por uma actuação em nome da pessoa colectiva. Ou, de outro modo, como forma de garantir que os danos repercutidos em vítimas indiferenciadas, resultantes da lesão de bens jurídicos supra-individuais afectados pela conduta ilícita, são ressarcidos.

Em jeito de conclusão, a responsabilidade solidária das pessoas colectivas em direito penal económico é um instituto que consegue reunir ou reflectir o melhor de dois mundos: os princípios de garantia e liberdade do direito penal e as funcionalidades operatórias do princípio da efectiva reparação que norteia a responsabilidade civil. É uma solidariedade civil que se manifesta penalmente.[18]

Particularmente feliz se afigura esta afirmação conclusiva. A responsabilidade civil (solidária) é importada para o campo do direito penal “secundário" não para subverter os princípios fundamentais do direito penal, mas para conferir uma eficácia acrescida, materialmente justificada, à tutela penal dos bens jurídicos protegidos, sem ofensa dos princípios constitucionais.

Há, pois, que concluir decididamente que a responsabilidade inscrita no n.º 7 do art. 8º do RGIT tem natureza civil, e não penal, e que nenhuma inconstitucionalidade encerra esta interpretação da norma.

Entende-se, pois, como correta a posição assumida pelo acórdão recorrido.

Como a decisão sumária do TC se limita a remeter para o Acórdão n.º 171/2014, há que procurar nele a fundamentação do juízo de inconstitucionalidade, em ordem a compreender o seu preciso alcance. É a seguinte a fundamentação:

4. Importa ter presente que o Tribunal Constitucional se pronunciou já, em diversas ocasiões, relativamente a normas que impõem uma responsabilidade subsidiária aos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em sociedades comerciais pelas coimas aplicadas em processo contraordenacional, e, em especial, em relação às normas do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias e do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras, que estabelecem uma responsabilidade subsidiária por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento».

Ainda que tenha havido divergência jurisprudencial nas secções, o Tribunal Constitucional, em Plenário, acabou por firmar o entendimento segundo qual a responsabilidade dos gerentes ou administradores prevista naquelas disposições é uma responsabilidade civil por facto próprio, que não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade aquiliana, e relativamente à qual se torna inadequada a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição. Assentando-se, por isso, na ideia de que a responsabilidade subsidiária dos administra dores e gerentes não provém do próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas de um facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal, concluiu-se que não pode falar-se aí de uma qualquer forma de transmissão da responsabilidade contraordenacional ou de violação dos princípios da culpa ou da proporcionalidade na aplicação das coimas (acórdãos n.ºs 437/11 e 561/11).

No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 249/12 decidiu-se, por sua vez, em aplicação do citado acórdão n.º 561/11, que o entendimento nele sufragado é transponível para o caso, também previsto nas referidas normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º, em que esteja em causa a responsabilidade subsidiária pelas multas aplicáveis às pessoas coletivas em processo penal, reafirmando-se aí o argumento central de que se trata de efetivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva.

Ao contrário, na hipótese prevista no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT – que constitui objeto do processo de generalização-, o gerente está sujeito a uma responsabilidade solidária pela multa aplicada à pessoa coletiva, responsabilidade que deriva da atuação dolosa que pode determinar a sua própria condenação a título pessoal, e em coautoria material com a pessoa coletiva, por infração tributária (quanto a esta distinção, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 328).

Poderá dizer-se que a razão de ser do regime legal decorre da necessidade de acautelar o pagamento das multas aplicáveis às pessoas coletivas, prevenindo a possibilidade de estas virem a ser colocadas numa situação de insuficiência patrimonial que inviabilize por motu proprio a satisfação do crédito fiscal.

Ainda que essa medida seja compreensível no plano de política legislativa, e numa perspetiva utilitarista de eficácia da prevenção criminal, ela não pode justificar, por si, por via de um princípio civilístico de solidariedade passiva, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva para o seu administrador ou gerente.

Desde logo, a multa aplicada em processo penal, como sanção de caráter público e indisponível que corresponde à ofensa de um dever jurídico estabelecido imediatamente no interesse da coletividade, como a função sancionatória ou preventiva, não pode transmudar-se num dano ou prejuízo a ressarcir no âmbito de uma responsabilidade civil, quando este instituto traduz sobretudo a ideia de reparação de um dano privado – cfr. artigo 562.º do Código Civil (quanto à natureza pessoalíssima da multa enquanto pena criminal, FIGUEIREDO DIAS, Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, págs. 118-119). Por outro lado, a responsabilidade solidária não pode ser entendida como uma forma de responsabilidade civil emergente do crime, a que se refere o artigo 129.º do Código Penal, visto que, neste caso, a reparação do dano, ainda que arbitrada segundo os pressupostos e critérios do direito civil, é uma consequência jurídica do crime e, como tal, um efeito puramente civil da condenação penal, que apenas pode ser fundado no facto penal.

Nem parece curial, contrariamente ao que por vezes se afirma, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8.º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. A colaboração dolosa na prática do crime tributário implica que o administrador ou gerente possa ser chamado a responder pessoalmente pela mesma infração, a par da sociedade, e daí que essa conduta não possa ser tida como um facto autónomo, que determine simultaneamente a responsabilidade solidária pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa coletiva. Não estão aqui em causa quaisquer factos, anteriores ou posteriores à aplicação da multa penal, que tenham colocado a pessoa coletiva na impossibilidade de pagamento. Nem é invocável um qualquer argumento de identidade ou de maioria de razão para tornar equiparável a disciplina desse preceito à responsabilidade subsidiária a que se refere o n.º 1 do artigo 8.º (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de março de 2012, Processo n.º 1407/09, e do Tribunal da Relação do Porto de 2 de maio de 2012, Processo n.º 1113/06, e de 6 de junho de 202, Processo n.º 11/06, e, mais recentemente, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, de 8 de janeiro de 2014, Processo n.º 331/04).

Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do ilícito penal que foi diretamente imputado à pessoa coletiva. Isso porque a responsabilidade solidária, ainda que dependente de uma conduta dolosa do administrador ou gerente, assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração.

Ora, a imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, independentemente de ele poder ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração – tal como admite o n.º 7 do artigo 8.º-, configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica, implicando a violação do princípio da pessoalidade das penas consignado no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.

O princípio da responsabilidade criminal das pessoas coletivas, que começou por ser admitido em certas áreas delimitadas da criminalidade (direito criminal da economia, da saúde, da informática ou das infrações tributárias), foi consagrado como regra, relativamente a certo tipo de crimes, no direito penal de justiça, através da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, com base num critério de imputação assente numa atuação em nome e no interesse da pessoa coletiva e que não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes (artigo 11.º, n.º 2 e 7, do Código Penal). Não se trata, por isso, de uma responsabilidade por facto de outrem, mas antes de uma verdadeira responsabilidade autónoma e distinta da responsabilidade que possa ser imputada a pessoas físicas que compõem a pessoa coletiva e que pressupõe que estas entidades possam constituir objeto de censura ético-penal (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 81). E nesse sentido, a multa aplicada a pessoa coletiva em processo penal não perde o caráter de pena criminal e o seu efeito de natureza pessoalíssima, com a consequente sujeição ao princípio consagrado naquele artigo 30º, n.º 3, da Lei Fundamental (quanto à não inconstitucionalidade da criminalização das pessoas coletivas, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/95).

Como refrações do princípio da pessoalidade das penas aponta-se a extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição, Coimbra, pág. 504). Por outro lado, com o princípio da pessoalidade das penas não se pretende afirmar que os efeitos das penas não possam refletir-se desfavoravelmente em relação a terceiros mas tão-só que o seu efeito direto e imediato se deve limitar à pessoa do delinquente, de forma a que, se a lei comina a aplicação de uma pena de multa para uma certa infração, somente aquele que a praticou a deve sofrer ou pagar (JOÃO CASTRO E SOUSA, As Pessoas Coletivas em face do Direito Criminal e do chamado Direito de Mera Ordenação, Coimbra, 1985, pág. 118). Proíbe-se, em suma, que a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 337/2003).

Estamos perante uma transmissão de pena com o sentido definido pelo artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, quando se verifica a imputação de responsabilidade a uma certa categoria de sujeitos para suprir a inoperatividade prática da responsabilidade penal que recai sobre a pessoa coletiva.

A responsabilidade solidária do administrador ou gerente pressupõe que, em momento anterior, tenha sido estabelecida a responsabilidade penal da pessoa coletiva, com a aplicação de uma multa. A determinação em concreto da medida da pena, no correspondente processo penal, tem por base fatores exclusivamente atinentes à pessoa coletiva enquanto autora da infração, e à qual são estranhas quaisquer circunstâncias que digam pessoalmente respeito ao responsável solidário, como o grau de culpa ou a sua situação económica.
Certo é que constitui condição da responsabilidade solidária, nos termos do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, a comparticipação do gerente na prática da infração tributária, mas essa relação de causalidade, podendo originar uma responsabilidade pessoal, não tem qualquer interferência na fixação da multa aplicável à pessoa coletiva. A responsabilidade solidária opera independentemente da responsabilidade pessoal do condevedor e quer a este seja ou não imputada, a título individual, a mesma infração.

A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva.

Poderá dizer-se que a comunicação ao administrador ou gerente da multa aplicada à pessoa coletiva pela prática da infração corresponde a um mecanismo de garantia de pagamento do quantitativo monetário da multa, que não encerra uma censura penal, nem impede o ulterior exercício do direito de regresso contra a sociedade, nem tem para o responsável solidário outras consequências de natureza estritamente penal (cfr., neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, de 8 de janeiro de 2014).

O ponto é que nenhuma destas considerações, a manterem validade, descaracteriza o aspeto central do regime sancionatório instituído pelo n.º 7 do artigo 8.º do RGIT. O que importa reter é que a pessoa coletiva exime-se ao cumprimento da pena através da transferência do dever de pagar a multa para o devedor solidário e o Estado exonera-se, por essa via, do exercício do jus puniendi de que é titular. O que consubstancia objetivamente uma transmissão de pena e põe em causa a indisponibilidade dos interesses que as reações criminais visam tutelar.

Ao tempo em que este acórdão foi proferido já estava pendente no TC o recurso interposto do acórdão de fixação de jurisprudência prolatado nestes autos, que interpretara o n.º 7 do art. 8.º do RGIT como prevendo uma responsabilidade meramente civil de administradores e gerentes das pessoas coletivas condenadas.

O acórdão do TC, não ignorando o acórdão de fixação de jurisprudência, pois até o cita, empenha-se, porém, em refutar a interpretação da lei fixada por este Supremo Tribunal, elegendo outra interpretação: a de que “a norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva" (sublinhado nosso).[19] E foi a partir dessa conclusão que julgou inconstitucional a norma analisada.[20]

Tal conclusão seria inevitável, se tivesse sido interpretado o preceito como prevendo responsabilidade penal, por violação quer do art. 29.º, n.º 1, quer do art. 30.º, n.º 3, da Constituição.

Mas não foi essa a interpretação que este Supremo Tribunal escolheu e fixou. A interpretação que foi submetida a recurso de fiscalização da constitucionalidade foi a que considerou que o n.º 8 do art. 8.º do RGIT estabelecia uma modalidade de responsabilidade meramente civil. Era essa, portanto, a interpretação que deveria ter sido analisada do ponto de vista da sua constitucionalidade.

Mas o TC adotou um procedimento diferente: primeiro, procedeu a uma reinterpretação da norma; depois, procedeu à fiscalização da constitucionalidade da norma segundo essa sua interpretação.

É porém incontestável que não cabe ao TC a tarefa de interpretação das leis, mas apenas a de avaliar a constitucionalidade da interpretação da norma que lhe é submetida a apreciação[21].

Por isso, em boa verdade, o acórdão n.º 171/2014 do TC, ao declarar inconstitucional a norma em causa, na sua própria interpretação, não decidiu a questão da constitucionalidade da norma tal como fora interpretada por este Supremo Tribunal no recurso de fixação de jurisprudência.

Vale a pena citar, a propósito, uma parcela significativa do voto de vencida da Cons. Fátima Mata-Mouros no citado acórdão do TC:

Ora, não cabendo ao Tribunal Constitucional definir a interpretação válida do direito infraconstitucional, antes julgar a conformidade de normas com a Constituição, a questão que fica por responder é então a de saber qual a posição do Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional da norma contida no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, se interpretada como prevendo uma responsabilidade de natureza meramente civil, de acordo com a jurisprudência agora uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Nesta conformidade, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória, agora proferida pelo Tribunal Constitucional acaba por não contribuir, afinal, para a resolução da questão essencial que consiste em saber se é conforme à Constituição a norma contida no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, na interpretação acolhida por orientação jurisprudencial uniformizada. Questão, esta, que agora surge como essencial para assegurar a certeza e a segurança jurídica do ordenamento jurídico em conformidade com a Constituição.
A posição tomada pelo TC, no recurso interposto do acórdão de fixação de jurisprudência foi afinal a de ignorar por completo essa questão, limitando-se a uma aplicação mecânica do acórdão n.º 171/2014, por mera decisão sumária.

Em bom rigor, essa decisão sumária do TC não se pronuncia sobre a questão que lhe vinha proposta no recurso de constitucionalidade: a de saber se a responsabilidade dos administradores prevista no n.º 7 do art. 8.º do RGIT, quando interpretada como tendo natureza meramente civil, é conforme à Constituição.

Acontece, contudo, que a decisão sumária transitou em julgado. Há pois que, nos termos do n.º 2 do art. 80.º da Lei do Tribunal Constitucional, reformar o acórdão proferido nestes autos.

III. Decisão

Nestes termos, o Pleno dos Juízes das Secções Criminais decide:
a) Reformar a jurisprudência fixada, que passará a ter a seguinte formulação:

É inconstitucional, por violação do art. 30.º, n.º 3, da Constituição, a norma do art. 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade;

b) Reenviar o processo ao Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à reapreciação da decisão proferida, face à jurisprudência agora fixada.

Cumpra-se o disposto no art. 444.º, n.º 1, do CPP.


[1] Sobre a matéria, por todos, Fernando Torrão, “Societas delinquere potest?" Da responsabilidade individual e coletiva nos “crimes de empresa", pp. 40-50.
[2] Com a epígrafe “Princípio da individualidade da responsabilidade criminal", estabelecia: “A responsabilidade criminal recai única e individualmente nos agentes de crimes ou contravenções."
[3] F. Torrão, ob. cit., pp. 55-61.
[4] Entretanto revogado pelo art. 9.º da Lei n.º 109/2009, de 15-9, que remete o regime da responsabilização penal das pessoas coletivas e entidades equiparadas para o regime do Código Penal, previsto no seu art. 11.º.
[5] Esta regra foi igualmente consagrada no revogado diploma da criminalidade informática (art. 3.º, n.º 4, da Lei n.º 109/91, de 17-8).
[6] Já muito antes da responsabilização penal das pessoas coletivas, o art. 4.º do DL n.º 31328, de 21.6.1941, viera estabelecer: “As pessoas coletivas de direito privado ficarão solidariamente responsáveis pelas multas aplicadas aos seus representantes ou empregados, nos termos deste diploma, salvo quando se prove que eles procederam contra ordem expressa da direção ou administração."
[7] Redação da Lei n.º 60-A/2005, de 30-12. Na versão originária, o atual n.º 7 constituía o n.º 6, exatamente com a mesma redação.
[8] Assim, Germano Marques da Silva, ob. cit., pp. 327-328.
[9] Loc. cit., pp. 1043 e nota (11).
[10] Loc. cit., pp. 51-52.
[11] Por todos, o acórdão de 16.12.2009, proc. n.º 1074/09.
[12] Acórdão n.º 129/2009, no sentido da não inconstitucionalidade; acórdãos n.ºs 24/2011, 26/2011, 85/2011 e 125/2011, no sentido da inconstitucionalidade, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
[13] Acórdão n.º 437/2011.
[14] Essa a posição igualmente de Germano Marques da Silva, ob. cit., pp. 328-329.
[15] Ver o voto de vencido do Cons. Sousa Ribeiro no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/2011.
[16] Acórdãos n.ºs 1/2013, 297/2013 e 354/2013.
[17] E obviamente tal interpretação não vincula os tribunais, pois o Tribunal Constitucional tem competência para julgar a constitucionalidade de determinada interpretação da lei, não para determinar qual a interpretação válida da mesma. E sobre a constitucionalidade da norma, se interpretada como prevendo responsabilidade meramente civil, o Tribunal Constitucional não se pronunciou.
[18] Ob. cit., p. 186. Em sentido idêntico, F. Torrão, ob. cit., p. 495.
[19] Diga-se, meramente de passagem, que é manifestamente pouco convincente a argumentação adotada. O argumento supremo do TC para “provar" que a responsabilidade é de natureza penal é o de que “a pessoa coletiva exime-se ao cumprimento da pena através da transferência do dever de pagar a multa para o devedor solidário e o Estado exonera-se, por essa via, do exercício do jus puniendi de que é titular". Mas a tal argumento se pode contrapor que tal não bastará para caracterizar como “pena" esse dever de pagar. Uma pena tem características e consequências que ultrapassam esse dever, como se explica no acórdão deste Supremo Tribunal no trecho que aqui se transcreve de novo, para maior clareza: “A toda a pena subjaz um juízo de censura eticamente fundado. Ora, o que se comunica ao administrador é a obrigação de pagar a multa, mais nada. Essa obrigação não encerra qualquer censura penal. A pena, essa, “não sai" da pessoa coletiva. Continua a ser esta, e somente ela, a pessoa condenada, a censurada penalmente com a aplicação da pena. É no seu cadastro que a condenação vai ser inscrita. O administrador não é condenado em vez da sociedade, nem é condenado duas vezes. A pessoa coletiva não é absolvida, nem declarada extinta a sua responsabilidade penal, se o administrador pagar a multa. As duas condenações penais, do administrador e da pessoa coletiva, subsistem lado a lado. Não há, pois, nenhuma transmissão da pena em que esta foi condenada. E tanto assim é que o administrador, responsável solidário, por um lado, não será responsabilizado, se não tiver património; por outro, pode exercer o direito de regresso contra a sociedade (art. 524.º do Código Civil), “devolvendo-lhe" então a responsabilidade assumida por imposição da lei. Acresce que, se a multa da sociedade não for paga pelo administrador, ela nunca poderá ser convertida em prisão subsidiária, nos termos do art. 49.º do CP, como aconteceria se de uma verdadeira pena se tratasse."
[20] Incoerentemente, veio o TC, no Acórdão n.º 201/2014, de 3.3.2014, a julgar não inconstitucional o n.º 3 do art. 551.º do Código do Trabalho, “quando aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores".
[21] No entanto, esta atitude do TC não é de maneira nenhuma inédita.
Ver, a propósito, e exemplificativamente, o voto de vencido do Cons. Vítor Gomes no Acórdão n.º 324/2013, de 4.6.2013, do TC.
Ver ainda o artigo do Cons. Mário de Brito “Sobre as decisões interpretativas do Tribunal Constitucional", Revista do Ministério Público, n.º 62, pp. 57 ss., e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, pp. 783-784 (anotação de Rui Medeiros).