Diário da República n.º 51, Série I de 2014-03-13
Acórdão n.º 171/2014
Acórdão n.º 171/2014, de 18/02, Processo n.º 1125 e 1126/2013
Tribunal Constitucional
Diploma
Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade
Acórdão n.º 171/2014
Processo n.º 1125 e 1126/2013
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 – No Processo n.º 1125/2013, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro (LTC), a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária.
Invoca que esta dimensão normativa foi julgada inconstitucional pelo acórdão n.º 1/2013 e que, posteriormente, o juízo de inconstitucionalidade foi confirmado pelas decisões sumárias n.ºs 288/2013, 360/2013, 373/2013 e 526/2013, todas transitadas em julgado.
No Processo n.º 1126/2013, o Requerente requereu também a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade.
Invoca o Requerente que esta dimensão normativa foi julgada inconstitucional pelo acórdão n.º 297/2013 e que, posteriormente, o juízo de inconstitucionalidade foi confirmado pelo acórdão n.º 354/2013 e pelas decisões sumárias n.ºs 334/2013, 377/2013, 396/2013, 397/2013 e 511/2013, todas transitadas em julgado.
2 – Notificada nos termos e para os efeitos do artigo 54.º e do n.º 3 do artigo 55.º, aplicáveis por força do artigo 82.º, todos da LTC, a Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o merecimento dos autos em ambos os processos.
III — Decisão
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade, por violação do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2014. – Carlos Fernandes Cadilha – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Maria José Rangel de Mesquita – Pedro Machete – Ana Guerra Martins – Maria João Antunes – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral (com declaração) – José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
1 – A questão da conformidade constitucional da norma constante do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT relaciona-se com uma série de problemas que o Tribunal tem sido chamado a resolver relativos a regimes legais que instituem mecanismos de responsabilidade de administradores, gerentes, ou pessoas que exerçam de facto funções de administração, quanto a multas ou coimas que tenham sido aplicadas às respetivas pessoas coletivas.
Verifica-se que, em todas as decisões, o Tribunal Constitucional, como não poderia deixar de ser, parte do direito infraconstitucional com o intuito de descrever e analisar o quadro legal em que se insere a norma ou normas cuja conformidade com a Constituição é questionada, acabando inevitavelmente por tomar posição sobre a qualificação da responsabilidade – matéria que, por se situar no plano do direito infraconstitucional, não é sequer da sua competência e, obviamente, não vincula os tribunais.
De acordo com uma leitura apressada dessa jurisprudência, a natureza da responsabilidade teria sido decisiva para o juízo sobre a conformidade constitucional das normas em apreciação. Teria sido pela circunstância de, em alguns casos, se ter afastado a natureza penal ou contraordenacional do título por que é responsabilizado o agente (tendo-se considerado aí prever-se antes uma forma de responsabilidade civil), que o Tribunal se não teria determinado pela inconstitucionalidade das normas então em apreciação. Por sua vez, a qualificação da responsabilidade como penal ou contraordenacional ter-se-ia revelado decisiva para um juízo positivo de inconstitucionalidade da norma em apreciação.
Simplesmente, não é essa a correta leitura da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional. E não o é pela simples razão de que, sendo o Tribunal Constitucional incompetente para tomar posição sobre a correta interpretação do direito ordinário, jamais a qualificação, efetuada no plano do direito infraconstitucional, da responsabilidade se poderia revelar só por si determinante para efeitos do juízo sobre a sua conformidade constitucional.
A um órgão jurisdicional ao qual compete «[…] especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (artigo 221.º da CRP), o núcleo da fundamentação do juízo – seja este de não inconstitucionalidade ou de inconstitucionalidade – há de estar, não no direito infraconstitucional (na natureza da responsabilidade), mas na Constituição.
2 – Assim, e independentemente da qualificação que se adote quanto à responsabilidade prevista no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, o legislador, ao compor o regime sancionatório das infrações tributárias, está, em qualquer caso, vinculado pelos princípios constitucionais com relevo em matéria penal. Sendo a Constituição um sistema normativo unitário, ao intérprete – desde logo, ao legislador e, obviamente, também ao poder judicial – é exigida uma interpretação integrada da mesma.
Ao determinar que os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, e que colaborem dolosamente na prática de certa infração tributária, serão solidariamente responsáveis pelas multas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela mesma, a norma constante do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT é inconstitucional, por violar princípios constitucionais com relevo em matéria penal.
Com efeito, a norma permite que quem tenha sido condenado em virtude da sua própria comparticipação na infração venha a ser chamado a responder pelo pagamento da multa aplicada à pessoa coletiva. Mas a verdade é que não parece ser constitucionalmente legítimo que se faça recair, sobre o indivíduo que já foi penalmente condenado pelo seu próprio comportamento, uma qualquer outra obrigação, seja de que natureza for, e que venha a acrescer à sanção que lhe foi concretamente aplicada. Os princípios que estruturam o ordenamento jurídico-penal, e que decorrem em última análise da dignidade das pessoas – o que fundamenta o princípio da culpa, e, por seu turno, o princípio da intransmissibilidade das penas, prescrito no n.º 3 do artigo 30.º da CRP – impedem que assim seja.
Tal não significa, note-se, que o propósito de conferir eficácia acrescida à tutela penal dos bens jurídicos protegidos seja jurídico-constitucionalmente irrelevante.
A garantia de efetiva cobrança de créditos por parte da Administração Tributária associada a uma perspetiva de eficácia de prevenção criminal assume indiscutivelmente um valor constitucional suscetível de justificar a com pressão de direitos ou de valores constitucionais com ele conflituantes, não podendo esse valor deixar de ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na modelação do regime geral das infrações tributárias.
Simplesmente, a liberdade de conformação de que goza o legislador nesse – como em qualquer outro – domínio não é ilimitada, cabendo à justiça constitucional efetuar um controlo sobre a ponderação efetuada a nível legislativo.
Ora, a garantia de efetiva cobrança de créditos tributários associada a uma perspetiva de eficácia de prevenção criminal, não tem um peso tal que justifique que um indivíduo, cumulativamente com a sanção que lhe foi aplicada no âmbito de um processo penal, fique responsável por qualquer outra obrigação, seja de que natureza for. – Maria Lúcia Amaral.
Votei vencida, pelos fundamentos constantes da minha declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 297/13.
Acresce que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu, em 8 de janeiro de 2014, um acórdão a uniformizar jurisprudência na matéria em que afasta a tese da natureza penal da responsabilidade prevista no artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
Sendo assim, persistir no juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, por a responsabilidade solidária do gerente pelo pagamento da multa aplicada à sociedade, ali prevista, não respeitar a Constituição Penal, significa ignorar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça àquele preceito legal, num acórdão que, por ser uniformizador de jurisprudência, tem por fim persuadir os órgãos jurisdicionais a seguirem o seu sentido decisório e que tem o seguinte teor: «nos termos do n.º 7 do artigo 8.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, sendo condenados em coautoria material de infração dolosa, uma pessoa coletiva ou uma sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada, e os seus administradores, gerentes, ou outras pessoas que exerçam de facto funções de administração, estes são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas em que a pessoa coletiva, sociedade ou entidade fiscalmente equiparada for condenada, independentemente da responsabilidade pessoal que lhes caiba» (destacado meu).
Ora, não cabendo ao Tribunal Constitucional definir a interpretação válida do direito infraconstitucional, antes julgar a conformidade de normas com a Constituição, a questão que fica por responder é então a de saber qual a posição do Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional da norma contida no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, se interpretada como prevendo uma responsabilidade de natureza meramente civil, de acordo com a jurisprudência agora uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Nesta conformidade, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória, agora proferida pelo Tribunal Constitucional acaba por não contribuir, afinal, para a resolução da questão essencial que consiste em saber se é conforme à Constituição a norma contida no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, na interpretação acolhida por orientação jurisprudencial uniformizada. Questão, esta, que agora surge como essencial para assegurar a certeza e a segurança jurídica do ordenamento jurídico em conformidade com a Constituição. – Maria de Fátima Mata-Mouros.