Diploma

Diário da República n.º 37, Série I de 2018-02-21
Acórdão n.º 718/2017, de 15 de fevereiro

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, de 15-02-2018 – Processo n.º 723/2016

Tipo: Acórdão
Número: 718/2017
Publicação: 27 de Fevereiro, 2018
Disponibilização: 15 de Fevereiro, 2018
Não julga inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em[...]

Diploma

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I. RELATÓRIO
1 - Nos presentes autos, vindos de Tribunal Arbitral constituído junto do Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente a AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante «LTC»), em 12 de setembro de 2016, da sentença proferida por aquele Tribunal, em 17 de agosto de 2016, que recusou a aplicação, com fundamento na «violação do princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP», do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quando interpretado no sentido de «impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal», e, em consequência dessa recusa, concedeu provimento ao pedido formulado pelo ora recorrido, considerando «ilegal o ato de indeferimento presumido do pedido de revisão oficiosa, e consequentemente, a liquidação de IRS (…), por erro sobre os pressupostos de facto e direito e violação das normas do regime dos residentes não habituais em Portugal», e determinando a respetiva anulação.

2 - Através do recurso interposto, pretende-se que este Tribunal aprecie a questão que decorre do excerto que seguidamente se transcreve:

«(…)

6 - Em sede de Resposta, pugnou a ora Recorrente pelo acolhimento da tese de que o indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual se trata de um ato imediatamente lesivo que, nos termos do artigo 54.º do CPPT, é suscetível de impugnação autónoma, ato prévio e destacável à impugnação do ato final de liquidação.

7 - Na aplicação do direito, todavia, o Tribunal Arbitral concluiu que as aludidas exceções deveriam improceder, sustentando que, e escorando-se no teor do Acórdão n.º410/2015, «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT».

8 - Mais acrescentando àquele raciocínio a tese de que a posição da ora Recorrente surge como demasiadamente onerosa para o aí Autor, pois que, a obter sucesso, permitiria a consolidação na ordem jurídica de atos que prejudicam gravemente os contribuintes, 9. sendo que, por esse facto, a impugnação autónoma destacável da decisão de deferimento ou indeferimento do benefício fiscal se apresenta como «uma faculdade de impugnar e não um ónus».

10 - A ora Recorrente não se conforma com a decisão arbitral sob recurso por entender ter sido erroneamente interpretado o artigo 54.º do CPPT, designadamente a exceção que consta na primeira parte do dito preceito, que dispõe que «Salvo quando forem ¡mediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente».

11 - Aqui chegados, e porque a desaplicação pelo Tribunal arbitral do artigo 54.º do CPPT - isso com base na violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça-, se revelou determinante para a improcedência das exceções dilatórias invocadas, outra conclusão se não retira que não seja a de que, in casu, consubstanciou, nos termos no artigo 70.º, n.º 1, al. a) da LTC, uma verdadeira recusa da aplicação da citada norma, com fundamento em inconstitucionalidade.

12 - Conforme julgado pelo Acórdão n.º 216/91, do Tribunal Constitucional, o recurso para a instância constitucional justifica-se sempre que a decisão se tenha revelado como relevante para a decisão da questão de fundo.

13 - Assim, a decisão da questão constitucional tem de influir na dita questão de fundo, o que acontece, como se disse, sempre que o Tribunal a quo tiver rejeitado, com fundamento em inconstitucionalidade, na aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico constante de uma determinada norma jurídica.

14 - Concluindo, solicita-se, nestes termos, a admissão do presente recurso contra aquela decisão arbitral na parte em que julgou inconstitucional o artigo 54.ºdo CPPT, por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, o que, por consequência, redundou na decisão de fazer improceder as exceções de incompetência material do Tribunal e, bem assim, de caducidade do direito de ação».

3 - Na parte em que releva para a decisão a proferir, consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«19 - Como é amplamente conhecido, no contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária, nos termos do qual, em regra, só há impugnação contenciosa do ato final do procedimento, uma vez que é este ato que afeta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte e onde vem fixada a posição final da administração tributária perante este, definindo os seus direitos e deveres (cfr. artigo 54.º do CPPT e 66.º da LGT).
Por outro lado, de acordo com Jorge Lopes de Sousa, estando o artigo 54.º do CPPT “inserido entre as disposições gerais aplicável à generalidade dos procedimentos" o princípio da impugnação unitária visa inclusivamente “a prolação de atos administrativos sobre questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação, relativamente aos quais se prevê que a impugnação contenciosa siga os termos da ação administrativa especial." (cfr. in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 6.ª Edição de 2011, Áreas Editora, pág. 467).
Entendimento este corroborado pela Requerida.
O mesmo autor, escreve ainda que “Nos procedimentos tributários que conduzem a um ato de liquidação de um tributo, a esfera jurídica dos interessados apenas é atingida por esse ato e, por isso, em regra, será ele e apenas ele o ato lesivo e contenciosamente impugnável. No entanto, como se referiu, no presente artigo 54.º do CPPT ressalvam-se situações em que haja “disposição expressa em sentido diferente". E, com efeito, por vezes, a lei prevê a impugnabilidade contenciosa imediata de atos anteriores ao ato final de procedimento, que têm especial relevo para condicionar a decisão final. Esses atos preparatórios da decisão final, que são direta e imediatamente impugnáveis por via contenciosa, assumem a natureza de atos destacáveis. Os atos destacáveis são atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, a condicionam irremediavelmente, justificando-se que sejam impugnados por forma autónoma, principalmente nos casos em que são praticados por entidades distintas da que deve proferir a decisão final. No entanto, a sua impugnação contenciosa autónoma só ocorrerá quando esteja prevista na lei, por forma expressa, como se exige neste artigo, só havendo impugnabilidade imediata de atos procedimentais independentemente de norma expressa quando tais atos procedimentais sejam imediatamente lesivos." (cfr. ob. cit., pág. 468).
Daqui parece resultar a interpretação no sentido apontado pela Requerida, de que o indeferimento do pedido de inscrição do Requerente como residente não habitual em Portugal, no ano de 2010, é um ato lesivo suscetível de impugnação autónoma, consubstanciando-se uma exceção ao princípio da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT. Pelo que, tal decisão deveria ter sido necessariamente impugnada, para que a liquidação objeto do pedido de pronúncia pudesse ser apreciada por este Tribunal Arbitral. Assim, não tendo sido efetuada tal impugnação necessária, não caberia no âmbito da competência deste Tribunal apreciar da legalidade da decisão de indeferimento da inclusão do Requerente no regime dos residentes não habituais, que se materializou na liquidação do IRS do ano de 2010, objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
Contudo, admitimos que ao aceitar esta interpretação da Requerida, fiquem lesados os princípios constitucionais da tutela judicial efetiva e da justiça, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. Isto é, o efeito preclusivo da não impugnação do ato de cessação do benefício relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária (liquidação de IRS de 2010), inviabilizando a invocação nesta de vícios daquele outro, não é compatível com os direitos assegurados nos artigos 20.º e 268, n.º 4 da CRP.
A posição sustentada pela AT tem como consequência que o Requerente que não impugnou autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal, para o ano de 2010, deixa de poder impugnar a liquidação do IRS de 2010 com fundamento em vícios daquele ato.
Efetivamente, como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar, no Acórdão 410/2015, de 19 de novembro, “Não pode deixar de se reconhecer que se trata de uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente (…) com a impossibilidade de impugnar o ato de cessação do benefício fiscal, no âmbito do processo de impugnação do ato de liquidação do imposto. Este prejuízo causado ao contribuinte ocorreu num contexto legal em que vigora inquestionavelmente o princípio da impugnação unitária e em que a impugnação autónoma de atos lesivos ou interlocutórios praticados no âmbito do procedimento administrativo tributário é configurada pela lei como uma faculdade do contribuinte, apenas justificada no quadro do reforço das suas garantias.
O contribuinte poderia ter impugnado autonomamente a cessação do benefício fiscal. A sua escolha em não o fazer, porém, foi, naquele quadro legal, perfeitamente legítima: não só não se encontra qualquer norma legal que tenha operado a transformação da faculdade de impugnar em ónus de impugnar, como, tratando-se, como se tratou, de ato lesivo, nem sequer seria admissível a existência de tal norma.".
Concluindo que, “ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.", julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT.

20 - Nesta cadência, não podemos acompanhar, salvo o devido respeito, a posição da Requerida, de que o Requerente ao não impugnar autonomamente o ato que determinou a sua não inscrição no regime fiscal dos residentes não habituais, deixa de poder impugnar a consequente liquidação do IRS de 2010, com fundamento em vícios daquele ato.
Efetivamente, o Requerente poderia ter impugnado autonomamente o ato de não inscrição como residente não habitual para efeitos fiscais, tendo em conta o inquestionável princípio da impugnação unitária, não podendo deixar-se de reconhecer que a posição da Requerida é muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente.
Contudo, a sua escolha em não o fazer, é uma faculdade de impugnar e não um ónus.
Assim sendo, atento os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, o Requerente não pode ser impedido de impugnar o ato de liquidação do IRS de 2010, com vícios próprios do ato da sua não inscrição como residente não habitual para efeitos fiscais».

4 - Notificada para o efeito, a recorrente produziu alegações, em 20 de dezembro de 2016, de onde se extraem as seguintes conclusões:

“CONCLUSÕES

A. Por acórdão arbitral de 17-08-2016, foi julgado totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2010, com o n.º 20114001613163.
B. No âmbito da sua Resposta, entre o mais, tratou a ora Recorrente de deduzir a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral e caducidade do direito da ação, porquanto, atendendo a que o pedido do aí Autor, ora Recorrido, recaía sobre o indeferimento do pedido da sua inscrição como residente não habitual para o ano de 2010, não podia tal matéria ser discutida em sede arbitral.
C. Em sede de Resposta, pugnou a ora Recorrente pelo acolhimento da tese de que o indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual se trata de um ato imediatamente lesivo que, nos termos do artigo 54.º do CPPT, é suscetível de impugnação autónoma, ato prévio e destacável à impugnação do ato final de liquidação.
D. O Tribunal Arbitral concluiu que as aludidas exceções deveriam improceder, sustentando que, de acordo com o teor do Acórdão n.º 410/2015 do Tribunal Constitucional, «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT».
E. Entendeu ainda o Tribunal que a impugnação autónoma destacável da decisão de deferimento ou indeferimento do benefício fiscal se apresenta como «uma faculdade de impugnar e não um ónus».
F. Conforme consta na salvaguarda ao artigo 54.º do CPPT, são judicialmente impugnáveis todos os atos que sejam lesivos da esfera jurídica dos contribuintes, pelo que são impugnáveis os atos que visem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas.
G. O ato administrativo-tributário que negou a concessão do benefício fiscal de residente não habitual ao Recorrido não se apresenta como um ato preparatório do ato de liquidação em sede de IRS para 2010, mas apresenta-se antes como um ato que lhe é pressuposto, autónomo, com efeitos próprios, e cuja impugnação contenciosa surge como um verdadeiro dever, sob pena de posterior impugnabilidade.
H. Não podem ser impugnados, designadamente, aquando e a título de eventual impugnação do ato consequente, pois este apenas poderá ser impugnado relativamente a vícios próprios e não com base em vícios que atinjam o ato pressuposto.
I. Observada a factualidade dada como assente, temos que foi observado o princípio constitucional previsto nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, ambos da CRP, segundo o qual «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.» J. Tendo existido essa oportunidade impugnatória, a que acresce o fato de, como se disse, o indeferimento de um benefício fiscal ser um ato pressuposto e autónomo face ao ato de liquidação em sede de IRS do Recorrido, infere-se que no ato de impugnação arbitral, deduzido contra o ato tributário em sentido estrito, não mais é possível discutir matéria que se sedimentou, há muito, horizontal e definitivamente na ordem jurídica.
K. A impugnação judicial da legalidade de um tal ato não pode deixar de ter por objeto o ato administrativo pressuposto, a extinção do benefício fiscal, reportando-se, por conseguinte, a essa impugnação os correspondentes pressupostos processuais, como seja o prazo da correspondente ação administrativa.
L. Não faz sentido que se possa ficar à espera da consequente liquidação do imposto para, em sede da impugnação deste ato, se atacarem os efeitos que, embora decorrentes daquele ato, se repercutem inteiramente no ato de liquidação.
M. Devem, por conseguinte, ser atacados autonomamente, não podendo ser posteriormente atacados, aquando da correspetiva liquidação de imposto.
N. Como ato administrativo autónomo que é, a decisão que indeferiu o pedido de residência não habitual é um ato judicialmente impugnável, cuja impugnação contenciosa deve ser desencadeada no prazo de 3 meses, sendo que a impugnação ocorrerá através de uma ação administrativa dirigida contra o ato administrativo relativo ao benefício fiscal em causa e não contra o ato de liquidação do correspondente imposto.
O. A decisão arbitral de quem vem interposto o recurso, ao rejeitar a aplicação do artigo 54.º, n.º 1, primeira parte do CPPT, violou os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, designadamente na dimensão normativa tal como interpretada pelo Tribunal arbitral, designadamente por ter entendido (mal) que a impugnação de um ato imediatamente lesivo como foi o despacho de indeferimento do pedido de benefício fiscal se apresenta como uma faculdade e não um incontornável ónus, que, omitido, coarta a impugnação da correspetiva liquidação, com os vícios próprios do ato de indeferimento.
P. O artigo 20.º e o artigo 268.º, n.º 4 da CRP, concatenados com os artigos 54.º e 97.º, n.º 1, al. p) do CPPT, permitem aos sujeitos passivos impugnar atos administrativos tributários que não comportem a apreciação da legalidade das liquidações, sendo que, nos termos do artigo 54.º, n.º 1 primeira parte e do artigo 65.º do CPPT, sempre que os atos sejam imediatamente lesivos dos direitos dos contribuintes, devem ser logo atacados, sob pena de preclusão do prazo de reação.
Nestes termos, deve a norma do 54.º, n.º 1, 1.ª parte do CPPT ser julgada inconstitucional, por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça (artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP), quando interpretada no sentido de que a referência à impugnação de atos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não acionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjetivo dos sujeitos passivos de discutir um ato administrativo-tributário que se sedimentou na ordem jurídica».

5 - Notificado para o efeito, o recorrido apresentou as suas contra-alegações, em 20 de janeiro de 2017, aí concluindo nos termos seguintes:

«IV - Conclusões
A. De acordo com o entendimento plasmado no acórdão do Tribunal Arbitral Tributário, a impugnação autónoma do ato interlocutório deve ser qualificada como um direito (faculdade) e não como uma obrigação (ónus) atribuído ao sujeito passivo.
B. O artigo 54.º do CPPT estabelece, como corolário do contencioso Tributário, o princípio da impugnação unitária.
C. As exceções previstas no artigo 54.ºdo CPPT são exceções à obrigação de impugnação unitária, mas não exceções ao direito de impugnação a final. São, no fundo, exceções a uma obrigação, pelo que a sua função é alargar um direito, e não restringi-lo.
D. O efeito útil do artigo 54.ºdo CPPT, reside, assim, na opção conferida ao contribuinte de poder impugnar autonomamente o ato que lhe seja imediatamente lesivo, antecipando assim a sua discussão, ou remeter essa discussão para a impugnação do ato final do procedimento.
E. No que respeita ao princípio constitucional da tutela judicial efetiva, o artigo 20.º da CRP consagra o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
F. Por seu turno, o artigo 268.º, n.º4 da CRP garante a tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses dos particulares em relação à Administração.
G. Ou seja, quer o artigo 20.º, quer o n.º 4 do artigo 268.º, garantem a possibilidade de o contribuinte apelar para uma decisão judicial acerca de uma questão que o oponha à Administração.
H. De acordo com o princípio da tutela judicial efetiva, o Tribunal não deverá deixar de conhecer e de reconhecer um direito do contribuinte com base numa interpretação restritiva do direito à impugnação.
I. interpretar o artigo 54.º do CPPT no sentido de impor ao contribuinte a obrigação (e não a faculdade) de impugnar autonomamente o ato interlocutório restringe o direito à impugnação e nessa medida constituiu uma violação do princípio da tutela efetiva e do princípio da justiça.
J. O artigo 54.ºdo CPPT prevê dois momentos impugnatórios alternativos, mas não preclusivos. A regra estabelecida neste preceito é a da impugnação unitária e tal regra não anula a faculdade concedida ao contribuinte de impugnar autonomamente.
K. Pelo que, ao interpretar o direito à impugnação autónoma, não como uma obrigação, mas sim como um direito, o Tribunal Arbitral Tributário dá cumprimento ao princípio da tutela judicial efetiva.
L. Na verdade, o artigo 54.º do CPPT visa única e exclusivamente conferir direitos acrescidos de impugnação, não podendo resultar em contraposição ù atribuição desses direitos, sem apoio expresso na lei, a restrição de um outro direito (a impugnação a fina1 com base em invalidades dos atos interlocutórios).
M. Interpretar o artigo 54.º do CPPT no sentido de que todos os atos interlocutórios lesivos e todos aqueles que constassem de norma expressa como autonomamente impugnáveis teriam de ser impugnados de forma autónoma - sob pena de preclusão da invocação dos respetivos vícios na impugnação final - seria equivalente a desfigurar uma garantia conferida de forma evidente pela lei - a possibilidade de impugnação autónoma-, transformando-a num ónus de impugnação fracionada, incerto e inequivocamente penalizador dos particulares.
N. Em suma, numa interpretação do artigo 54.º do CPPT conforme à Constituição, deverá entender-se que a impugnação autónoma de atos lesivos constitui um direito (uma faculdade) e não uma obrigação (um ónus) do contribuinte.
O. A atribuição de um efeito preclusivo da não impugnação do ato de indeferimento do pedido de inscrição no regime fiscal dos não residentes habituais relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária (liquidação de IRS de 2010), inviabilizando deste modo a invocação nesta de vícios daquele outro, não é compatível com os direitos assegurados pelo principio da tutela efetiva e pelo principio da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
P. A posição sustentada pela AT relativa à interpretação do artigo 54.º do CPPT é não conforme à Constituição, em particular com os princípios da tutela efetiva e da justiça - invocados pela AT para fundamentar o presente recurso - uma vez que restringe, sem que tal esteja expressamente previsto na lei, o direito de acesso dos contribuintes à justiça tributária, no caso concreto, o direito do Recorrido de impugnar a sua (ilegal) liquidação do IRS de 2010, sem que tivesse previamente impugnado autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal, para o ano de 2010.
Q. O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 410/2015, processo n.º 592/14, 1ª Secção, já se pronunciou sobre esta matéria tendo julgado “inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qua1ficando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa".
R. Face ao exposto, dúvidas não restam de que a interpretação e aplicação feita pelo Tribunal Arbitral Tributário do artigo 54.º do CPPT, considerando a impugnação autónoma do ato interlocutório um direito (faculdade) e não uma obrigação (ónus) atribuído ao sujeito passivo, é conforme com o princípio constitucional da tutela judicial efetiva e com o princípio da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 da CRP».

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
6.
Tal como definido no respetivo requerimento de interposição, o objeto do recurso nos presentes autos interposto é integrado pelo artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante «CPPT»), quando interpretado no sentido de «impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal».
Apesar de ter sido essa a formulação de que se socorreu o Tribunal a quo para explicitar, no dispositivo da decisão recorrida, a interpretação do artigo 54.º do CPPT cuja aplicação foi recusada, tanto a configuração do litígio submetido à apreciação daquele tribunal, como a fundamentação ali consonantemente seguida, revelam que tal recusa incidiu sobre uma dimensão mais circunscrita daquele enunciado normativo, obrigando à consequente delimitação do objeto do recurso.
Antes, porém, de prosseguir nessa delimitação, importa atentar no teor do artigo 54.º do CPTT, que é o seguinte:

«Impugnação unitária
Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida».

E importa ter igualmente presente o disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 16.º do Código do Imposto do Rendimento Singular (“CIRS"), com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, onde se estabelece o seguinte:

«Residência

(…)
6 - Considera-se que não têm residência habitual em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, não tenham em qualquer dos cinco anos anteriores sido tributados como tal em sede de IRS.
7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos.»

Remetendo para o quadro legal acima descrito, o litígio submetido ao Tribunal arbitral teve na sua génese a impugnação do indeferimento tácito do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2010, com fundamento em ilegalidade resultante da não aplicação do regime dos residentes não habituais.
De acordo com a pretensão então formulada pelo ora recorrido, o pedido para reconhecimento da sua situação como residente fiscal não habitual, com efeitos para o ano de 2010, que, em 24.02.2011, submetera à Direção de Serviços de Registo de Contribuintes cumpria todos os requisitos estabelecidos no artigo 16.º, n.ºs 6 e 7, do Código do IRS, pelo que, ao indeferi-lo por extemporâneo, a referida entidade fizera uma errónea interpretação dos preceitos legais aplicáveis; tal circunstância, segundo sustentado ainda, implicaria que a liquidação do IRS referente ao ano de 2010 devesse ser anulada por erro sobre os respetivos pressupostos de facto e de direito, traduzido na não aplicação do regime dos residentes não habituais.
À pretensão em tais termos formulada, opôs a ora recorrente o argumento segundo o qual a sindicância judicial do ato administrativo que indeferira a inscrição do ora recorrido como residente não habitual em Portugal, com efeitos ao ano de 2010, teria de ter sido efetuada através de ação administrativa especial, nos termos do artigo 97.º, n.º 2 do CPPT; não tendo sido impugnada a decisão que indeferira tal pedido, a legalidade da liquidação de IRS não poderia ser posta em causa com base em vícios que, não sendo próprios desta, resultariam daquela anterior decisão da AT, a seu tempo não impugnada.
Depois de assim ter definido os termos do litígio a dirimir, o Tribunal a quo não teve dúvidas em afirmar que a posição sustentada pela ora recorrente - de acordo com a qual, repete-se, a sindicância judicial do ato administrativo que indeferira a inscrição do ora recorrido como residente não habitual em Portugal deveria ter sido levada a cabo através de ação administrativa especial, sob pena de não poderem ser invocados os vícios próprios daquele ato no âmbito da impugnação judicial da liquidação do correspondente imposto - era aquela que resultava do artigo 54.º do CPPT.
Não sem antes relembrar que ali se encontra consagrado o princípio da impugnação unitária - de acordo com o qual, em regra, só cabe impugnação contenciosa do ato final do procedimento-, o Tribunal arbitral considerou, todavia, que o indeferimento do pedido de inscrição ora recorrido como residente não habitual em Portugal, no ano de 2010, constituía um «ato lesivo suscetível de impugnação autónoma», consubstanciando, por isso, uma exceção àquele princípio. E que, à luz do direito infraconstitucional aplicável, tal decisão deveria ter sido autonomamente impugnada para que a legalidade da liquidação objeto do pedido de pronúncia pudesse ser apreciada com base no vício que lhe era imputado.
Entendendo, contudo, que tal solução, por precludir a possibilidade de apreciação «da legalidade da decisão de indeferimento do pedido de inclusão [do ora recorrido] no regime dos residentes não habituais», que se havia materializado «na liquidação do IRS do ano de 2010», era incompatível com os princípios dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, o Tribunal a quo recusou a aplicação do artigo 54.º do CPPT, no segmento em que considerou dele resultar que «o requerente que não impugnou autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal (…) deixa de poder impugnar a liquidação do IRS com fundamento em vícios daquele ato».
A própria fundamentação seguida pelo Tribunal a quo revela, assim, que a interpretação normativa, extraída do artigo 54.º do CPP, em cuja desaplicação reside a ratio decidendi do pronunciamento recorrido é mais restrita do que aquela que a enunciação constante da fórmula decisória poderia fazer supor. De acordo com a caracterização do critério decisório tido por incompatível com os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 da CRP, trata-se, na realidade, do artigo 54.º do CPPT, quando interpretado no sentido de que a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele.
É essa, portanto, a dimensão normativa que cumpre seguidamente confrontar com a Constituição.

7 - Antes, porém, de prosseguir na apreciação do mérito da causa, um outro aspeto relativo ao objeto do recurso importa esclarecer ainda.
Decorre das respetivas alegações que a ora recorrente, para além de contestar o juízo com base no qual o Tribunal a quo concluiu pela inconstitucionalidade da asserção cuja aplicação foi recusada no caso sub judice, pretende ver reconhecida por este Tribunal a inconstitucionalidade da solução que, em consequência dessa recusa, acabou por ser sufragada na decisão recorrida.
Afirma-o, aliás, de forma expressa.
Na referida peça processual, a recorrente conclui a exposição dos seus argumentos, pedindo a este Tribunal que julgue inconstitucional «a norma do 54.º, n.º 1, 1.ª parte do CPPT (…), por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça (artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP), quando interpretada no sentido de que a referência à impugnação de atos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não acionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjetivo dos sujeitos passivos de discutir um ato administrativo-tributário que se sedimentou na ordem jurídica»
Tal questão não integra, porém, o objeto do presente recurso de constitucionalidade, razão pela qual não poderá ser conhecida.
Com efeito, o recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos funda-se na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual “[c]abe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais" “[q]ue recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade".
A norma cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal recorrido - e cuja apreciação foi por isso submetida a este Tribunal - é, conforme decorre do que ficou já exposto, de sentido inverso àquela que, de acordo com a pretensão expressa nas alegações, a recorrente pretende ver complementarmente sindicada.
Apesar de sobre ambas incidirem as alegações apresentadas - já que nelas se sustenta tanto a não inconstitucionalidade da asserção recusada aplicar pelo Tribunal arbitral como a inconstitucionalidade da norma que, em consequência dessa recusa, foi efetivamente aplicada na dirimição do litígio-, apenas a primeira integra, conforme se viu, o objeto do presente recurso, tal como definido no respetivo requerimento de interposição.
De acordo com o entendimento estavelmente sedimentado na jurisprudência deste Tribunal, ao enunciar no requerimento de interposição de recurso a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, o recorrente delimita, em termos definitivos, o respetivo objeto, não lhe sendo permitido ampliá-lo (mas apenas restringi-lo) em momento ulterior, mormente nas alegações produzidas (cf. Acórdãos n.º 487/2008 e 283/2014, acessíveis, como os demais referidos, em www.tribunalconstitucional.pt).
Encontrando-se vedada à recorrente a ampliação do objeto do recurso, a única questão que pode ser por este Tribunal conhecida é aquela que, incidindo sobre a norma desaplicada pelo Tribunal a quo enunciada no requerimento de interposição - com a delimitação que resulta do que acima ficou já dito - supõe a aferição da viabilidade constitucional da interpretação extraída do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial do ato administrativo de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele.
É essa, portanto, a única questão que importa solucionar em seguida.

B. DO MÉRITO
8 - Conforme se assinalou já, subjacente à desaplicação do critério normativo sob sindicância encontra-se o juízo, formulado pelo Tribunal a quo, de acordo com o qual do princípio da impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do CPPT - mais rigorosamente, dos termos em que o mesmo aí é excecionado - resultaria para o ora recorrido o ónus de impugnação autónoma do «ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, para o ano de 2010», com consequente preclusão da possibilidade de «impugnação da liquidação do IRS de 2010 com fundamento em vícios daquele ato» no caso de aquela não ter sido efetuada.
É sabido que a este Tribunal não cabe pronunciar-se sobre a correção jurídica do resultado interpretativo cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal Arbitral. Ao Tribunal Constitucional apenas cabe verificar se a norma concretamente desaplicada na decisão recorrida viola ou não alguma das normas constitucionais com as quais foi considerada incompatível pelo Tribunal a quo, ou eventualmente outras, ainda que expressamente não convocadas na decisão recorrida
Não cumpre, por isso, apontar aqui qual a melhor interpretação (ou a interpretação preferível) do artigo 54.º do CPPT - isto é, se a exceção ao princípio da impugnação unitária aí ressalvada deve ser entendida como um ónus ou antes como uma faculdade; assim como não cumpre indagar se seria, efetivamente, no âmbito do artigo 54.º do CPPT que deveria encontrar-se resposta para a questão de saber se, não impugnado o ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente habitual em Portugal, poderia o ora recorrido contestar a legalidade do ato de liquidação do IRS com base nos vícios daquele.
De ambos os referidos pontos de vista, a solução perfilhada pelo Tribunal a quo apresenta-se como um dado indiscutido para este Tribunal, cuja função é apenas a de verificar se existe fundamento para confirmar o juízo que, considerando imposta pelo artigo 54.º do CPPT a regra segundo a qual a não impugnação judicial do ato administrativo de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, concluiu pela respetiva incompatibilidade com os princípios da tutela judicial efetiva, respetivamente inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição.

9 - Conforme decorre da fundamentação constante da decisão recorrida, para concluir pela desconformidade constitucional da asserção recusada aplicar - de acordo com a qual, repete-se, a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele-, o Tribunal arbitral socorreu-se do julgamento realizado através do Acórdão Tribunal Constitucional n.º 410/2015, que se pronunciou pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, da interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, «qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles».
Apesar de se inscrever no mesmo âmbito problemático, a dimensão interpretativa julgada inconstitucional através do Acórdão n.º 410/2015 não coincide, porém, nem formal nem materialmente, com aquela que agora cumpre sindicar.
Conforme do mesmo resulta, o Acórdão n.º 410/2015 foi proferido na sequência de um recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de uma decisão proferida pelo Tribunal Arbitral em Matéria Tributária, na parte em que, interpretando e aplicando o artigo 54.º do CPPT, qualificara como um ónus, e não como uma faculdade, a possibilidade de o contribuinte impugnar autonomamente os atos considerados imediatamente lesivos dos seus direitos.
Tendo considerado que o ato de cessação do benefício fiscal ali em causa tinha em natureza interlocutória - isto é, que se inseria «verdadeiramente no âmbito do procedimento administrativo visando a prática do ato tributário final, a liquidação do imposto»-, o Tribunal, no referido acórdão, entendeu que «o efeito preclusivo da não impugnação do referido ato relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária, inviabilizando a invocação nesta de vícios daquele outro», era incompatível com o «princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP».
Tanto a dimensão normativa julgada inconstitucional no Acórdão n.º 410/2015, como o juízo subjacente a tal julgamento, assentam, pois, no pressuposto segundo o qual o ato cuja não impugnação faz precludir a possibilidade de invocação dos respetivos vícios no âmbito da impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto é um ato interlocutório, inserido, como tal, no próprio procedimento tributário que culmina naquela decisão.
Tal qualificação - que procede, de resto, do plano estritamente infraconstitucional - não integra, contudo, a proposição normativa que constitui o objeto do presente recurso, nem constitui, conforme seguidamente se verá, um seu pressuposto necessário.

10 - Para melhor caracterizar o ato através do qual é reconhecido (ou negado o reconhecimento) do estatuto fiscal de residente não habitual - e, em particular, a sua relação procedimental com a liquidação do imposto respetivo-, há um enquadramento geral a que é conveniente proceder-se.
Conforme é sabido, é relativamente comum, no ordenamento jurídico, a existência de procedimentos administrativos organizados de uma forma “escalonada" ou “faseada", no âmbito dos quais se autonomizam, ainda antes de terminado o procedimento, “atos prévios" e “decisões parciais". Trata-se de procedimentos que servem para decidir questões de elevada complexidade, «quer pelo número de destinatários (procedimentos de massa), quer pelo caráter duradouro das relações em causa, quer ainda pelo tecnicismo da decisão» (cf. Vasco Pereira da Silva, Em busca do ato administrativo perdido, Coimbra: Almedina, 1998, p. 462; Filipa Urbano Calvão, Os atos precários e os atos provisórios no direito administrativo, Braga: UCP, 1998, pp. 45 ss).
A este nível, é possível identificar diversas hipóteses procedimentais.
É possível, desde logo, identificar atos praticados no quadro de procedimentos simples, sem qualquer relação com outros atos ou procedimentos administrativos. É possível, igualmente, identificar atos praticados ao longo do procedimento que definem, ainda que parcialmente, a situação jurídica dos interessados, determinando o direito aplicável a determinada questão ou a determinado aspeto de uma questão, em termos que já não podem ser objeto de reapreciação em momento ulterior do procedimento (cf. Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 190). E é possível ainda encontrar atos praticados no âmbito de procedimentos administrativos distintos, mas que se encontram relacionados entre si, designadamente por um deles constituir um pressuposto de direito para a emissão do outro.
Tais possibilidades refletem-se diretamente na conformação do procedimento tributário, que mais não é do que um procedimento administrativo especial.

11 - No que ao procedimento tributário para reconhecimento do estatuto do residente não habitual diz concretamente respeito, não parece estar em causa um procedimento complexo - no âmbito do qual se possa dizer que o ato de reconhecimento daquele estatuto constitui um mero ato preparatório do procedimento de liquidação do imposto-, mas antes dois procedimentos tributários autónomos.
É essa a conclusão para que aponta o regime fiscal para o residente não habitual, instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, que aditou os n.ºs 6 a 9 ao artigo 16.º do Código do IRS.
De acordo com o regime que resultou desse aditamento, na versão anterior às modificações subsequentemente introduzidas pela Lei n.º 20/2012, de 14.05, e aplicável ao caso dos presentes autos, verificado o preenchimento dos requisitos estabelecidos no n.º 6 do artigo 16.º do Código do IRS e solicitada a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos (cf. n.º 7), qualquer sujeito passivo pode obter o estatuto de residente não habitual, alcançando, por essa via, determinados benefícios fiscais, que àquele estatuto se encontram associados. Benefícios que se consubstanciam, desde logo, na tributação à taxa especial de 20%, a que alude o n.º 6 do artigo 72.º do Código do IRS, dos rendimentos das categorias A e B provenientes das atividades de elevado valor acrescentado, com caráter científico, artístico ou técnico, elencadas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, bem como na aplicação aos rendimentos da categoria H do mecanismo de eliminação da dupla tributação jurídica internacional contemplado no n.º 5 do artigo 81.º do mesmo diploma legal.
No caso de o pedido ser deferido - isto é, na hipótese de o sujeito passivo vir a ser considerado residente não habitual-, o mesmo adquire o direito a ser tributado como tal no período de 10 anos consecutivos, desde que em cada um desses 10 anos seja considerado residente para efeitos de IRS (cf. artigo 16.º, n.ºs 7 e 8, do Código do IRS, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23.09, com correspondência nos n.ºs 7 e 9.º do referido artigo 16.º, na redação resultante da Lei n.º 20/2012, de 14.05, e atualmente em vigor).
Do ponto de vista da autonomia do procedimento para reconhecimento do estatuto de residente não habitual relativamente ao procedimento de liquidação do imposto, o significado do deferimento do pedido não é despiciendo: em caso de reconhecimento daquele estatuto, o contribuinte adquire, no âmbito daquele procedimento, o direito a ser tributado como residente não habitual no período de 10 anos consecutivos, o que, perante a anualidade do procedimento de liquidação do imposto sobre os rendimentos singulares, não deixa de ser revelador da autonomia existente entre um e outro.
Do regime legal que acaba de expor-se parece, assim, extrair-se com segurança que o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto - isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, “cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constitu[ir] um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo" (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação unitária do ato tributário", in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19, ainda que a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais).
A relação entre os dois atos reside apenas na dependência que intercede entre o efeito produzido - o desagravamento do imposto - e a circunstância que lhe dá causa - o reconhecimento administrativo daquele estatuto-, não sendo tal conclusão, de resto, contrariada pelo disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 54.º da Lei Geral Tributária (doravante, «LGT»).
Com efeito, depois de estabelecer que “[o] procedimento tributário compreende toda a sucessão de atos dirigida à declaração de direitos tributários", o n.º 1 do artigo 54.º da LGT elenca, ainda que de forma não taxativa, o conjunto dos atos por tal procedimento abrangidos, no mesmo incluindo, a par do “reconhecimento ou revogação dos benefícios fiscais" [alínea d)], um amplo conjunto de atos de natureza muito distinta, certos dos quais poderão integrar o mesmo procedimento em sentido estrito e outros claramente não - é o que sucede com os atos, ali igualmente elencados, referentes a procedimentos administrativo-tributários de 2º grau, que são naturalmente autónomos.
As variações que ocorrem ao nível da categorização dos atos administrativos, bem como da relação que entre eles intercede, resulta, aliás, da ampla margem de liberdade de conformação que ao legislador ordinário é reconhecida no âmbito da delineação destes procedimentos, o que - pode antecipar-se desde já - não pode deixar de incluir a definição da forma e do momento que devem ser observados na reação judicial que a cada um deles faça caber.

12 - O artigo 54.º do CPPT - preceito do qual o Tribunal a quo extraiu a preclusão da possibilidade de contestação da legalidade do ato de liquidação do imposto mediante a invocação de vícios atribuídos ao ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal - consagra o chamado princípio da impugnação unitária.
Conforme referido já, ali se estabelece que, “[s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida".
Do artigo 54.º do CPPT decorre, assim, a regra segundo a qual a impugnação judicial deverá recair sobre a decisão final do procedimento tributário e não, de imediato, também sobre os chamados atos preparatórios ou interlocutórios; estes apenas são impugnáveis de modo indireto, mediante impugnação da correspondente decisão final.
A justificação para a tal regra é simples: “os atos preparatórios dos atos tributários, por via de regra, limitam os seus efeitos ao procedimento em que são praticados, repercutindo-os, todavia, para a frente na decisão final, sendo esta e apenas esta a que, por afetar diretamente a esfera dos destinatários do ato, pode lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos destes" (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., pp. 19 e 20).
Excecionalmente, contudo, sob condição de os atos preparatórios ou interlocutórios daquelas decisões se afigurarem imediatamente lesivos ou visarem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas - caso em que estaremos perante atos destacáveis (sejam atos destacáveis por natureza ou atos destacáveis por força da lei)-, a sua impugnação direta e autónoma encontra-se assegurada (cf. primeira parte do artigo 54.º do CPPT).
Ora, configurando o ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, como se viu, um ato administrativo autónomo, com efeitos próprios e que se estendem para além do ato de liquidação do imposto que imediatamente se lhe segue, nada parece haver de anómalo, do ponto de vista da ratio subjacente a um tal regime, que a sua impugnação autónoma constitua para o contribuinte um ónus e não uma mera faculdade; ou, numa formulação mais próxima da seguida pela recorrente nas suas alegações, na regra segundo a qual, se aquele ato não for judicialmente impugnado, no prazo legalmente fixado para o efeito, não mais o poderá ser, excluindo-se a possibilidade de impugnação do ato consequente - como o de liquidação do tributo-, com fundamento em vícios que atinjam aquele seu ato pressuposto.
Em matéria de impugnação dos atos que indefiram o reconhecimento de benefícios fiscais, é também esse o sentido para que apontam tanto a doutrina como a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.

13 - No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, é prevalecente o entendimento segundo o qual, sempre que estejam em causa benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, a impugnação do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónoma em relação à impugnação do ato de liquidação, precludindo a possibilidade de discutir a questão do direito ao benefício no âmbito do processo de impugnação.
Atente-se, título ilustrativo, no acórdão de 15 de novembro de 2000, relativo ao recurso n.º 25.432, proferido pela Secção do Contencioso Tributário daquele Tribunal, no qual escreveu o que «a isenção de cont. Autárquica não está (…) dependente de um mero juízo declarativo mas, antes, «de um juízo que, embora vinculado à lei, tem eficácia constitutiva, quer dizer, a respetiva decisão é, ela própria, condição legal da isenção». Em tais hipóteses, há, pois, que obter decisão administrativa, quanto à isenção, em sentido favorável, ou contenciosamente, através de recurso contencioso, do ato que a denegue. (…) Não se tendo, assim, obtido, por decisão administrativa, ou em via de recurso contencioso, a pretendida isenção, não se poderá impugnar, com fundamento nesta, o ato tributário consequente já que, como se disse, se poria em causa o referido caso decidido ou o caso julgado, então formado».
Em igual sentido se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 15/12/2004, relativo ao Processo n.º 0211/04, onde, relativamente a uma isenção do pagamento de sisa, se afirmou que “[a] falada isenção não estava, pois, dependente de um mero juízo declarativo, antes, de um juízo que, embora vinculado à lei, tem eficácia constitutiva, quer dizer, a respetiva decisão é, ela própria, condição legal da isenção. Em tais hipóteses, há, pois, que obter decisão administrativa, quanto à isenção, em sentido favorável, ou contenciosamente, através de recurso contencioso, do ato que a denegue. Não se tendo, assim, obtido, por decisão administrativa, ou em via de recurso contencioso, a pretendida isenção, não se poderá impugnar, com fundamento nesta, o ato tributário consequente."
Mais recentemente, em acórdão de 18 de novembro de 2015, proferido no âmbito do Processo n.º 0459/14, voltou o mesmo Tribunal a reafirmar a orientação segundo a qual, no caso de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, a impugnação do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónoma em relação à impugnação do ato de liquidação, não podendo a questão do direito ao benefício ser discutida no âmbito do processo de impugnação.
O mesmo entendimento é, de resto, partilhado na doutrina.
Segundo escreve Lopes de Sousa, «nestes casos de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento», «o recurso contencioso do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónomo em relação à impugnação do ato de liquidação, não podendo a questão do direito ao beneficio ser discutida no processo de impugnação». Nesta hipótese, «[o] reconhecimento tem eficácia constitutiva e não meramente declarativa, pelo que, se não for obtido o reconhecimento, por via administrativa ou em impugnação contenciosa do ato que o negar, não poderá o benefício fiscal ser considerado na liquidação do tributo a que respeitar» (cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, I Vol., 6ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, p. 597).
Perspetiva semelhante é, como acima se evidenciou já, sustentada por Casalta Nabais, autor segundo o qual os atos tributários resultantes do procedimento de reconhecimento e extinção de benefícios fiscais são autónomos relativamente ao procedimento que tem como desfecho a liquidação do imposto respetivo. Entre os atos relativos aos benefícios fiscais e os atos relativos à liquidação do imposto existe, assim, uma relação de mera pressuposição, o que explica que aqueles primeiros devam ser obrigatoriamente impugnados de forma autónoma, nos termos gerais, sob pena de o eventual vício verificado deixar de poder ser invocável judicialmente (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., pp. 19 ss.).
O meio de reação ao dispor do contribuinte para aquele efeito é - escreve, por último, Joaquim Freitas da Rocha - a «ação administrativa especial», que deverá ser utilizada «nas situações em que esteja em causa a apreciação de atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação (por exemplo, o ato de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, ou um despacho de sujeição a determinado regime tributação)» (cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 318).
Do entendimento prevalecente tanto na doutrina como na jurisprudência em matéria de impugnabilidade dos atos relativos ao reconhecimento e extinção de benefícios fiscais, extrai-se, assim, que a norma cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal a quo é, afinal, aquela que é ali tida por mais consonante com a natureza autónoma do ato pressuposto - no caso sub judicio, aquele que aprecia o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual. Constatação que, não deixando de contribuir para um melhor enquadramento da norma sob sindicância, não dispensa obviamente a verificação autónoma da respetiva constitucionalidade, em especial no confronto com os princípios da tutela jurisdicional efetiva e da justiça, expressamente invocados pelo Tribunal recorrido para fundamentar a recusa da sua aplicação ao caso sub judicie.

14 - De acordo com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, a norma recusada aplicar - isto é, a norma constante do artigo 54.º do CPPT, na interpretação segundo a qual a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele ­-, na medida em que permite a consolidação na ordem jurídica de atos que prejudicam gravemente o contribuinte, é contrária ao princípio constitucional da tutela judicial efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição.
O problema de saber em que condições ou sob que pressupostos deverá poder concluir-se por uma lesão do princípio da tutela jurisdicional efetiva está longe de ser novo na jurisprudência constitucional.
Na síntese formulada no Acórdão n.º 440/94, pode dizer-se que o âmbito normativo do direito de acesso aos tribunais ou à tutela juris­dicional, implicando a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, se ancora em quatro diferentes dimensões. São elas: «(a) o direito de ação no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c)o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas».
No caso em presença, é à primeira das referidas dimensões - o direito de ação enquanto direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional - que se refere o essencial da argumentação subjacente ao juízo formulado pelo Tribunal a quo.
É essa argumentação que não podemos acompanhar.
Tendo por certo que os atos administrativos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual consubstanciam um ato meramente pressuposto dos atos de liquidação do imposto - inscrevendo-se cada um deles no âmbito de um procedimento administrativo-tributário próprio e autónomo-, o que importa determinar, do ponto de vista do direito de ação, é se ao contribuinte ora recorrido foi conferida efetiva possibilidade de reação contenciosa contra o ato que indeferiu o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal - isto é, se, relativamente àquele ato, lhe foi assegurada uma tutela jurisdicional efetiva.
Considerados os meios através dos quais o ordenamento jurídico faculta ao destinatário a possibilidade de reagir judicialmente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, a resposta é indubitavelmente afirmativa.
Uma vez que a decisão que incidiu sobre o pedido de reconhecimento consubstancia um ato administrativo com repercussões na esfera jurídica do interessado, a mesma é passível de impugnação contenciosa imediata, nos termos do disposto no artigo 95.º, n.º 1, da LGT.
Na ausência de uma regra específica, a impugnação judicial dos atos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual encontra-se sujeita aos prazos previstos para a impugnação de atos administrativos em geral - isto é, aqueles que constam do artigo 58.º do CPTA. Assim, se estiverem em causa atos nulos, a impugnação pode ter lugar a todo o tempo (cf. 1ª parte do n.º 1); se estiverem em causa atos anuláveis, a impugnação tem lugar no prazo de um ano, se promovida pelo Ministério Público, e de três meses, nos restantes casos (cf. alíneas a) e b) do n.º 1).
De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 58.º do CPTA, a impugnação poderá ser ainda excecionalmente admitida, para além do prazo geral de três meses imposto para os particulares, nos seguintes casos: nas situações em que ocorra justo impedimento, nos termos previstos na lei processual civil; no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro; ou quando, não tendo ainda decorrido um ano sobre a data da prática do ato ou da sua publicação, se obrigatória, o atraso deva ser considerado desculpável, atendendo à ambiguidade do quadro normativo aplicável ou às dificuldades que, no caso concreto, se colocavam quanto à identificação do ato impugnável, ou à sua qualificação como ato administrativo ou como norma (cf. alíneas a) a c) do n.º 3 do mesmo artigo) (neste sentido, cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de…, cit., p. 597; José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., p. 21).
Ora, tendo tido o contribuinte ora recorrido plena possibilidade de reagir contenciosamente, nos termos que ficaram expostos, contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do benefício fiscal que apresentou, não se vê como a exclusão da possibilidade de invocação dos vícios deste em momento ulterior - isto é, no âmbito da impugnação da legalidade do ato de liquidação do imposto - possa violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva.
Do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, tal conclusão só poderia ser diferente se estivéssemos perante uma situação em que, por força do regime globalmente aplicável, o contribuinte não tivesse tido oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto. Como sucederia, por exemplo, em caso de desconsideração, no âmbito da liquidação do imposto, de uma situação de deficiência fiscalmente relevante, atempadamente comunicada à Autoridade Tributária e Aduaneira: se, por alguma razão, aquela situação não fosse tida em conta pela Administração para efeitos de deduções em sede de IRS, tal facto apenas poderia ser invocado no âmbito da impugnação da própria liquidação do imposto, não sendo consequentemente legítima, à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a exclusão dessa possibilidade.
Não é essa, conforme se viu, a situação em causa nos presentes autos.
Nestes, trata-se tão-só da impossibilidade de o contribuinte que não impugne diretamente o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto fiscal pretendido o poder vir a fazer ainda a posteriori, em sede de impugnação do ato de liquidação do respetivo imposto, apesar de expirado o prazo legal para a invocação do vício relativo ao primeiro ato. Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior.
Contendo-se tal efeito dentro dos limites a cuja imposição se encontra indissociavelmente ligada a função inerentemente disciplinadora de qualquer ordenamento jurídico-processual, não se vê que ocorra qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição.

15 - De acordo com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, a norma extraída do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, é incompatível ainda com o princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
É sabido que a norma constante do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição - de acordo com a qual “[é] garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas" - constitui uma mera concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva, agora com referência aos direitos e interesses dos particulares na específica relação destes com Administração.
Da tutela jurisdicional efetiva especialmente contemplada no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição - que assume, conforme se viu, particular relevância no quadro da jurisdição administrativa-, decorre uma exigência de contencioso pleno, que inclui o reconhecimento e proteção dos direitos e interesses dos particulares, a impugnação de quaisquer atos administrativos lesivos desses direitos e interesses, a existência de meios de condenação à prática de atos devidos, bem como a consagração de medidas cautelares adequadas (cf., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 828 ss.).
No que toca ao processo tributário, impõem-se exatamente as mesmas quatro exigências.
Lato sensu, a imposição constitucional de um contencioso em sede tributária traduz-se no reconhecimento aos contribuintes da faculdade processual de, “em geral, defender em as suas posições jurídicas em todas as situações em que a sua esfera jurídica se encontre afetada, seja nas situações em que existe uma atuação administrativa (…), seja nas situações em que essa atuação, devendo existir, não existe (…)" (cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de…, cit., p. 248).
O que acaba de dizer-se encontra plena concretização no plano infraconstitucional.
Em consonância com a exigência de contencioso pleno no plano tributário, consagrada no 9.º da LGT, o n.º 1 do respetivo artigo 95.º reconhece a qualquer interessado o direito de impugnar ou recorrer de qualquer ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, por potencialmente lesivos para esse efeito tomando, entre outros, os atos de liquidação de tributos (cf. alínea a), do n.º 2) ou o indeferimento de pedidos de isenção ou de benefícios fiscais sempre que a sua concessão esteja dependente de procedimento autónomo (cf. alínea f) do n.º 2 ).
Ora, em face dos meios de reação facultados pelo ordenamento, as considerações que se deixaram feitas acerca da eventual violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva têm aqui inteira aplicação: na medida em que o particular ora recorrido dispôs de uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, o comando cuja aplicação foi recusada não restringe intoleravelmente a garantia de defesa, perante os tribunais, dos seus direitos e interesses legítimos.
Uma última palavra se deixe para o princípio da justiça, enquanto diretiva dirigida ao intérprete/aplicador no sentido de, na resolução das questões que lhe são colocadas, privilegiar a justiça material em detrimento de soluções excessivamente formais.
Por força da imposição que decorre de outros princípios igualmente aplicáveis - como seja o princípio da segurança jurídica ou o próprio princípio da separação de poderes-, qualquer ponderação com o intuito de verificar se a justiça material deverá orientar uma dada solução terá de ser feita em concreto, à luz de todas as propriedades relevantes do caso, sem fazer tábua rasa das exigências que decorram do regime processual aplicável (neste sentido, cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de…, cit., p. 255).
A questão a que, também deste ponto de vista, importa responder não é, por isso, diferente daquela que acima ficou já enunciada: sob incidência da norma que constitui o objeto do presente recurso, de acordo com a qual a não impugnação judicial do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, aos contribuintes é negada a faculdade de impugnar contenciosamente os atos da Administração Tributária e Aduaneira que possam violar os seus direitos ou interesses legalmente protegidos?
Tendo em conta as várias possibilidades impugnatórias de que o contribuinte poderia ter lançado mão no caso sub judice - embora o não tenha feito-, a resposta é, conforme se viu já, negativa.
Por isso, a solução recusada pelo Tribunal a quo, ainda que possa não ser, de entre as abstratamente configuráveis, aquela que maior nível de proteção assegura aos particulares, não é censurável à luz do princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
O recurso deverá, pois, ser julgado procedente.

III – DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:

a)Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles;
e, em consequência,
b)Julgar procedente o recurso interposto pela AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa, 15 de novembro de 2017 – Joana Fernandes Costa - Maria Clara Sottomayor – João Pedro Caupers – Maria José Rangel de Mesquita – Gonçalo de Almeida Ribeiro (Vencido, nos termos da declaração em anexo)

DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido.

1 - O Acórdão acolhe expressamente o princípio, afirmado de modo reiterado na jurisprudência deste Tribunal, da incognoscibilidade pela jurisdição constitucional das questões de direito ordinário controvertidas nos autos. Porém, acaba inevitavelmente - pelo caminho percorrido na fundamentação - por desrespeitá-lo.
Não é necessário encarecer a relevância do princípio da incognoscibilidade na repartição de competências entre a justiça comum e a justiça constitucional e na definição funcional do Tribunal Constitucional na arquitetura do Estado de direito democrático. Ele corresponde ao reconhecimento do papel que, nesse âmbito, é atribuído a este Tribunal. Um papel especialíssimo, por duas ordens de razão complementares.
Em primeiro lugar, porque lhe cabe a autoridade suprema em matéria de interpretação de uma lei com características singulares - a Constituição-, que reclama uma metódica diversa da que caracteriza a interpretação, concretização e aplicação do direito ordinário de fonte legal e uma legitimidade diversa da que desfrutam os tribunais comuns. Em segundo lugar, porque embora a intervenção do Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta, seja um incidente de um processo em que são dirimidas pretensões subjetivas, a questão que lhe compete decidir é exclusivamente a de saber se uma ou mais normas de direito ordinário aplicáveis no caso concreto são conformes à Constituição, o que atribui ao recurso de constitucionalidade um pendor objetivista. São, essencialmente, estas duas características da justiça constitucional - a natureza fundamental do parâmetro jurídico cuja garantia lhe está confiada e a natureza normativa do objeto sobre o qual incidem os seus juízos - que previnem qualquer confusão funcional entre ela e a justiça comum.
O princípio da incognoscibilidade das questões de direito ordinário é um corolário lógico dessa premissa radical e um instrumento indispensável à sua administração judicial. O seu alcance é, simplesmente, o seguinte: para decidir a questão de constitucionalidade que constitui o objeto do recurso, não deve o Tribunal Constitucional percorrer o caminho que a decisão recorrida percorreu para resolver qualquer das questões de direito ordinário que lhe tenham sido colocadas, devendo tomar a resposta a tais questões como um dado inquestionável - o juízo definitivo das autoridades jurisdicionais competentes sobre o direito ordinário de fonte legal - e confrontá-lo com os parâmetros constitucionais relevantes.
É certo que este princípio admite uma exceção. Nos casos em que a norma extraída da lei pela decisão recorrida não tem com o teor literal daquela um mínimo de correspondência ou em que a norma legal aplicada não é evidentemente aplicável nos autos, o Tribunal Constitucional tem entendido que se justifica recusar a admissão do recurso de constitucionalidade (v. o Acórdão n.º 677/2016 e a jurisprudência nele citada). Sem dúvida que tal implica a sindicância da decisão recorrida no plano do direito ordinário, ainda que dentro dos estreitos limites de um controlo de evidência. Todavia, importa notar que essa possibilidade é ainda uma consequência natural da premissa radical em que se baseia o princípio da incognoscibilidade das questões de direito ordinário: nesses casos, por definição excecionais, o Tribunal Constitucional não se substitui ao tribunal recorrido na decisão da causa, antes recusa a admissão de um recurso de constitucionalidade que não tem cabimento, porque o seu objeto constitui, sem margem para dúvidas, uma realidade meramente virtual. É a própria natureza da jurisdição constitucional - como guardião da ordem constitucional e contrapeso do poder legislativo - que justifica essa prerrogativa de exceção, a qual opera como meio de defesa do Tribunal contra o risco de instrumentalização processual do recurso de constitucionalidade.

2 - A decisão recorrida comporta necessariamente duas afirmações no plano do direito ordinário.
Em primeiro lugar, a de que a correta interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) é a de que os atos interlocutórios imediatamente lesivos de direitos devem ser objeto de impugnação imediata e autónoma, de tal modo que os seus vícios não podem ser invocados na impugnação da decisão final do procedimento em que estejam inseridos; por outras palavras, a exceção ao princípio da impugnação unitária constitui um ónus e não uma faculdade. Essa é a premissa maior do silogismo decisório.
Em segundo lugar - e é esta a premissa menor-, a de que o indeferimento do pedido de atribuição de benefício fiscal apresentado pelo recorrido constitui um ato interlocutório, imediatamente lesivo de direitos, para efeitos do artigo 54.º do CPPT. Este juízo de qualificação é um dado seguro e inquestionável: é seguro, porque, tendo a decisão recorrida aplicado o artigo 54.º do CPPT, que diz apenas respeito a atos interlocutórios, não pode deixar de ter concluído pela natureza interlocutória do ato impugnado; e é um dado inquestionável, porque foi proferido no plano do direito ordinário, na medida em que diz exclusivamente respeito a matéria de direito administrativo e tributário, no âmbito da qual se distinguem atos autónomos de atos interlocutórios do procedimento. Foi por ter reconhecido natureza interlocutória ao indeferimento do pedido de atribuição de benefício fiscal, que a decisão recorrida não pôde deixar de determinar o sentido do artigo 54.º do CPPT - o qual dispõe sobre o regime de impugnação dos atos interlocutórios - e de confrontar esse sentido com o artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, designadamente nos termos do Acórdão n.º 410/2015, em que o Tribunal proferiu nessa matéria um juízo de inconstitucionalidade.
O que o Tribunal faz neste Acórdão - e o que me leva a dele divergir - é sindicar esse juízo de qualificação, com o propósito evidente de distinguir a questão colocada neste recurso daquela sobre a qual recaiu o Acórdão n.º 410/2015. O caminho percorrido compreende duas etapas essenciais. A primeira é a de, sob a aparência de redução do objeto do recurso, reabrir uma das questões de direito ordinário à qual a decisão recorrida deu resposta, a da natureza interlocutória ou autónoma do ato tributário cujos vícios o recorrido pretendeu arguir após a liquidação do imposto sobre o seu rendimento referente ao ano de 2010. A segunda, amplamente documentada na fundamentação por jurisprudência e doutrina administrativas e tributárias, é a de responder a essa questão no sentido contrário ao da decisão recorrida, ou seja, de que o ato tributário em questão não constitui um ato interlocutório, mas um ato autónomo que pôs termo a um procedimento independente. Completadas estas duas etapas, a questão de constitucionalidade com a qual a decisão recorrida se debateu - aquela sobre a qual recaiu o Acórdão n.º 410/2015 e que diz respeito à compatibilidade do ónus de impugnação autónoma dos atos interlocutórios imediatamente lesivos de direitos com o direito à tutela jurisdicional efetiva dos administrados - ficou esvaziada de sentido. Com efeito, ao concluir que o ato tributário não possui natureza interlocutória, o Tribunal Constitucional excluiu o caso do domínio de aplicação do artigo 54.º do CPPT e, consequentemente, de qualquer controvérsia constitucional que a respeito dela se possa ter formado.
Sem prejuízo do elevado nível da argumentação, todo esse percurso excede, segundo creio, os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, contribuindo para a confusão entre a função do juiz comum e a do juiz constitucional. O recurso de constitucionalidade foi, ao longo desse percurso, transformado num recurso ordinário.

3 - Entendo que este recurso admitia apenas duas possibilidades de decisão.
Se o Tribunal chegasse à conclusão de que a qualificação do ato como interlocutório constitui, evidentemente, um erro de apreciação, deveria ter recusado a admissão do recurso, no uso da prerrogativa excecional já referida.
Se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão - aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida-, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão - «ato imediatamente lesivo de direitos»-, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto: «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.»

Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente.

Acórdão n.º 718/2017, de 15 de fevereiro

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I. RELATÓRIO
1 – Nos presentes autos, vindos de Tribunal Arbitral constituído junto do Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente a AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante «LTC»), em 12 de setembro de 2016, da sentença proferida por aquele Tribunal, em 17 de agosto de 2016, que recusou a aplicação, com fundamento na «violação do princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP», do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quando interpretado no sentido de «impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal», e, em consequência dessa recusa, concedeu provimento ao pedido formulado pelo ora recorrido, considerando «ilegal o ato de indeferimento presumido do pedido de revisão oficiosa, e consequentemente, a liquidação de IRS (…), por erro sobre os pressupostos de facto e direito e violação das normas do regime dos residentes não habituais em Portugal», e determinando a respetiva anulação.

2 – Através do recurso interposto, pretende-se que este Tribunal aprecie a questão que decorre do excerto que seguidamente se transcreve:

«(…)

6 – Em sede de Resposta, pugnou a ora Recorrente pelo acolhimento da tese de que o indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual se trata de um ato imediatamente lesivo que, nos termos do artigo 54.º do CPPT, é suscetível de impugnação autónoma, ato prévio e destacável à impugnação do ato final de liquidação.

7 – Na aplicação do direito, todavia, o Tribunal Arbitral concluiu que as aludidas exceções deveriam improceder, sustentando que, e escorando-se no teor do Acórdão n.º410/2015, «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT».

8 – Mais acrescentando àquele raciocínio a tese de que a posição da ora Recorrente surge como demasiadamente onerosa para o aí Autor, pois que, a obter sucesso, permitiria a consolidação na ordem jurídica de atos que prejudicam gravemente os contribuintes, 9. sendo que, por esse facto, a impugnação autónoma destacável da decisão de deferimento ou indeferimento do benefício fiscal se apresenta como «uma faculdade de impugnar e não um ónus».

10 – A ora Recorrente não se conforma com a decisão arbitral sob recurso por entender ter sido erroneamente interpretado o artigo 54.º do CPPT, designadamente a exceção que consta na primeira parte do dito preceito, que dispõe que «Salvo quando forem ¡mediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente».

11 – Aqui chegados, e porque a desaplicação pelo Tribunal arbitral do artigo 54.º do CPPT – isso com base na violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça-, se revelou determinante para a improcedência das exceções dilatórias invocadas, outra conclusão se não retira que não seja a de que, in casu, consubstanciou, nos termos no artigo 70.º, n.º 1, al. a) da LTC, uma verdadeira recusa da aplicação da citada norma, com fundamento em inconstitucionalidade.

12 – Conforme julgado pelo Acórdão n.º 216/91, do Tribunal Constitucional, o recurso para a instância constitucional justifica-se sempre que a decisão se tenha revelado como relevante para a decisão da questão de fundo.

13 – Assim, a decisão da questão constitucional tem de influir na dita questão de fundo, o que acontece, como se disse, sempre que o Tribunal a quo tiver rejeitado, com fundamento em inconstitucionalidade, na aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico constante de uma determinada norma jurídica.

14 – Concluindo, solicita-se, nestes termos, a admissão do presente recurso contra aquela decisão arbitral na parte em que julgou inconstitucional o artigo 54.ºdo CPPT, por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, o que, por consequência, redundou na decisão de fazer improceder as exceções de incompetência material do Tribunal e, bem assim, de caducidade do direito de ação».

3 – Na parte em que releva para a decisão a proferir, consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«19 – Como é amplamente conhecido, no contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária, nos termos do qual, em regra, só há impugnação contenciosa do ato final do procedimento, uma vez que é este ato que afeta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte e onde vem fixada a posição final da administração tributária perante este, definindo os seus direitos e deveres (cfr. artigo 54.º do CPPT e 66.º da LGT).
Por outro lado, de acordo com Jorge Lopes de Sousa, estando o artigo 54.º do CPPT “inserido entre as disposições gerais aplicável à generalidade dos procedimentos" o princípio da impugnação unitária visa inclusivamente “a prolação de atos administrativos sobre questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação, relativamente aos quais se prevê que a impugnação contenciosa siga os termos da ação administrativa especial." (cfr. in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 6.ª Edição de 2011, Áreas Editora, pág. 467).
Entendimento este corroborado pela Requerida.
O mesmo autor, escreve ainda que “Nos procedimentos tributários que conduzem a um ato de liquidação de um tributo, a esfera jurídica dos interessados apenas é atingida por esse ato e, por isso, em regra, será ele e apenas ele o ato lesivo e contenciosamente impugnável. No entanto, como se referiu, no presente artigo 54.º do CPPT ressalvam-se situações em que haja “disposição expressa em sentido diferente". E, com efeito, por vezes, a lei prevê a impugnabilidade contenciosa imediata de atos anteriores ao ato final de procedimento, que têm especial relevo para condicionar a decisão final. Esses atos preparatórios da decisão final, que são direta e imediatamente impugnáveis por via contenciosa, assumem a natureza de atos destacáveis. Os atos destacáveis são atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, a condicionam irremediavelmente, justificando-se que sejam impugnados por forma autónoma, principalmente nos casos em que são praticados por entidades distintas da que deve proferir a decisão final. No entanto, a sua impugnação contenciosa autónoma só ocorrerá quando esteja prevista na lei, por forma expressa, como se exige neste artigo, só havendo impugnabilidade imediata de atos procedimentais independentemente de norma expressa quando tais atos procedimentais sejam imediatamente lesivos." (cfr. ob. cit., pág. 468).
Daqui parece resultar a interpretação no sentido apontado pela Requerida, de que o indeferimento do pedido de inscrição do Requerente como residente não habitual em Portugal, no ano de 2010, é um ato lesivo suscetível de impugnação autónoma, consubstanciando-se uma exceção ao princípio da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT. Pelo que, tal decisão deveria ter sido necessariamente impugnada, para que a liquidação objeto do pedido de pronúncia pudesse ser apreciada por este Tribunal Arbitral. Assim, não tendo sido efetuada tal impugnação necessária, não caberia no âmbito da competência deste Tribunal apreciar da legalidade da decisão de indeferimento da inclusão do Requerente no regime dos residentes não habituais, que se materializou na liquidação do IRS do ano de 2010, objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
Contudo, admitimos que ao aceitar esta interpretação da Requerida, fiquem lesados os princípios constitucionais da tutela judicial efetiva e da justiça, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. Isto é, o efeito preclusivo da não impugnação do ato de cessação do benefício relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária (liquidação de IRS de 2010), inviabilizando a invocação nesta de vícios daquele outro, não é compatível com os direitos assegurados nos artigos 20.º e 268, n.º 4 da CRP.
A posição sustentada pela AT tem como consequência que o Requerente que não impugnou autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal, para o ano de 2010, deixa de poder impugnar a liquidação do IRS de 2010 com fundamento em vícios daquele ato.
Efetivamente, como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar, no Acórdão 410/2015, de 19 de novembro, “Não pode deixar de se reconhecer que se trata de uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente (…) com a impossibilidade de impugnar o ato de cessação do benefício fiscal, no âmbito do processo de impugnação do ato de liquidação do imposto. Este prejuízo causado ao contribuinte ocorreu num contexto legal em que vigora inquestionavelmente o princípio da impugnação unitária e em que a impugnação autónoma de atos lesivos ou interlocutórios praticados no âmbito do procedimento administrativo tributário é configurada pela lei como uma faculdade do contribuinte, apenas justificada no quadro do reforço das suas garantias.
O contribuinte poderia ter impugnado autonomamente a cessação do benefício fiscal. A sua escolha em não o fazer, porém, foi, naquele quadro legal, perfeitamente legítima: não só não se encontra qualquer norma legal que tenha operado a transformação da faculdade de impugnar em ónus de impugnar, como, tratando-se, como se tratou, de ato lesivo, nem sequer seria admissível a existência de tal norma.".
Concluindo que, “ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.", julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT.

20 – Nesta cadência, não podemos acompanhar, salvo o devido respeito, a posição da Requerida, de que o Requerente ao não impugnar autonomamente o ato que determinou a sua não inscrição no regime fiscal dos residentes não habituais, deixa de poder impugnar a consequente liquidação do IRS de 2010, com fundamento em vícios daquele ato.
Efetivamente, o Requerente poderia ter impugnado autonomamente o ato de não inscrição como residente não habitual para efeitos fiscais, tendo em conta o inquestionável princípio da impugnação unitária, não podendo deixar-se de reconhecer que a posição da Requerida é muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente.
Contudo, a sua escolha em não o fazer, é uma faculdade de impugnar e não um ónus.
Assim sendo, atento os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, o Requerente não pode ser impedido de impugnar o ato de liquidação do IRS de 2010, com vícios próprios do ato da sua não inscrição como residente não habitual para efeitos fiscais».

4 – Notificada para o efeito, a recorrente produziu alegações, em 20 de dezembro de 2016, de onde se extraem as seguintes conclusões:

“CONCLUSÕES

A. Por acórdão arbitral de 17-08-2016, foi julgado totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2010, com o n.º 20114001613163.
B. No âmbito da sua Resposta, entre o mais, tratou a ora Recorrente de deduzir a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral e caducidade do direito da ação, porquanto, atendendo a que o pedido do aí Autor, ora Recorrido, recaía sobre o indeferimento do pedido da sua inscrição como residente não habitual para o ano de 2010, não podia tal matéria ser discutida em sede arbitral.
C. Em sede de Resposta, pugnou a ora Recorrente pelo acolhimento da tese de que o indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual se trata de um ato imediatamente lesivo que, nos termos do artigo 54.º do CPPT, é suscetível de impugnação autónoma, ato prévio e destacável à impugnação do ato final de liquidação.
D. O Tribunal Arbitral concluiu que as aludidas exceções deveriam improceder, sustentando que, de acordo com o teor do Acórdão n.º 410/2015 do Tribunal Constitucional, «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP, julgando inconstitucional tal interpretação o artigo 54.º do CPPT».
E. Entendeu ainda o Tribunal que a impugnação autónoma destacável da decisão de deferimento ou indeferimento do benefício fiscal se apresenta como «uma faculdade de impugnar e não um ónus».
F. Conforme consta na salvaguarda ao artigo 54.º do CPPT, são judicialmente impugnáveis todos os atos que sejam lesivos da esfera jurídica dos contribuintes, pelo que são impugnáveis os atos que visem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas.
G. O ato administrativo-tributário que negou a concessão do benefício fiscal de residente não habitual ao Recorrido não se apresenta como um ato preparatório do ato de liquidação em sede de IRS para 2010, mas apresenta-se antes como um ato que lhe é pressuposto, autónomo, com efeitos próprios, e cuja impugnação contenciosa surge como um verdadeiro dever, sob pena de posterior impugnabilidade.
H. Não podem ser impugnados, designadamente, aquando e a título de eventual impugnação do ato consequente, pois este apenas poderá ser impugnado relativamente a vícios próprios e não com base em vícios que atinjam o ato pressuposto.
I. Observada a factualidade dada como assente, temos que foi observado o princípio constitucional previsto nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, ambos da CRP, segundo o qual «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.» J. Tendo existido essa oportunidade impugnatória, a que acresce o fato de, como se disse, o indeferimento de um benefício fiscal ser um ato pressuposto e autónomo face ao ato de liquidação em sede de IRS do Recorrido, infere-se que no ato de impugnação arbitral, deduzido contra o ato tributário em sentido estrito, não mais é possível discutir matéria que se sedimentou, há muito, horizontal e definitivamente na ordem jurídica.
K. A impugnação judicial da legalidade de um tal ato não pode deixar de ter por objeto o ato administrativo pressuposto, a extinção do benefício fiscal, reportando-se, por conseguinte, a essa impugnação os correspondentes pressupostos processuais, como seja o prazo da correspondente ação administrativa.
L. Não faz sentido que se possa ficar à espera da consequente liquidação do imposto para, em sede da impugnação deste ato, se atacarem os efeitos que, embora decorrentes daquele ato, se repercutem inteiramente no ato de liquidação.
M. Devem, por conseguinte, ser atacados autonomamente, não podendo ser posteriormente atacados, aquando da correspetiva liquidação de imposto.
N. Como ato administrativo autónomo que é, a decisão que indeferiu o pedido de residência não habitual é um ato judicialmente impugnável, cuja impugnação contenciosa deve ser desencadeada no prazo de 3 meses, sendo que a impugnação ocorrerá através de uma ação administrativa dirigida contra o ato administrativo relativo ao benefício fiscal em causa e não contra o ato de liquidação do correspondente imposto.
O. A decisão arbitral de quem vem interposto o recurso, ao rejeitar a aplicação do artigo 54.º, n.º 1, primeira parte do CPPT, violou os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, designadamente na dimensão normativa tal como interpretada pelo Tribunal arbitral, designadamente por ter entendido (mal) que a impugnação de um ato imediatamente lesivo como foi o despacho de indeferimento do pedido de benefício fiscal se apresenta como uma faculdade e não um incontornável ónus, que, omitido, coarta a impugnação da correspetiva liquidação, com os vícios próprios do ato de indeferimento.
P. O artigo 20.º e o artigo 268.º, n.º 4 da CRP, concatenados com os artigos 54.º e 97.º, n.º 1, al. p) do CPPT, permitem aos sujeitos passivos impugnar atos administrativos tributários que não comportem a apreciação da legalidade das liquidações, sendo que, nos termos do artigo 54.º, n.º 1 primeira parte e do artigo 65.º do CPPT, sempre que os atos sejam imediatamente lesivos dos direitos dos contribuintes, devem ser logo atacados, sob pena de preclusão do prazo de reação.
Nestes termos, deve a norma do 54.º, n.º 1, 1.ª parte do CPPT ser julgada inconstitucional, por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça (artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP), quando interpretada no sentido de que a referência à impugnação de atos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não acionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjetivo dos sujeitos passivos de discutir um ato administrativo-tributário que se sedimentou na ordem jurídica».

5 – Notificado para o efeito, o recorrido apresentou as suas contra-alegações, em 20 de janeiro de 2017, aí concluindo nos termos seguintes:

«IV – Conclusões
A. De acordo com o entendimento plasmado no acórdão do Tribunal Arbitral Tributário, a impugnação autónoma do ato interlocutório deve ser qualificada como um direito (faculdade) e não como uma obrigação (ónus) atribuído ao sujeito passivo.
B. O artigo 54.º do CPPT estabelece, como corolário do contencioso Tributário, o princípio da impugnação unitária.
C. As exceções previstas no artigo 54.ºdo CPPT são exceções à obrigação de impugnação unitária, mas não exceções ao direito de impugnação a final. São, no fundo, exceções a uma obrigação, pelo que a sua função é alargar um direito, e não restringi-lo.
D. O efeito útil do artigo 54.ºdo CPPT, reside, assim, na opção conferida ao contribuinte de poder impugnar autonomamente o ato que lhe seja imediatamente lesivo, antecipando assim a sua discussão, ou remeter essa discussão para a impugnação do ato final do procedimento.
E. No que respeita ao princípio constitucional da tutela judicial efetiva, o artigo 20.º da CRP consagra o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
F. Por seu turno, o artigo 268.º, n.º4 da CRP garante a tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses dos particulares em relação à Administração.
G. Ou seja, quer o artigo 20.º, quer o n.º 4 do artigo 268.º, garantem a possibilidade de o contribuinte apelar para uma decisão judicial acerca de uma questão que o oponha à Administração.
H. De acordo com o princípio da tutela judicial efetiva, o Tribunal não deverá deixar de conhecer e de reconhecer um direito do contribuinte com base numa interpretação restritiva do direito à impugnação.
I. interpretar o artigo 54.º do CPPT no sentido de impor ao contribuinte a obrigação (e não a faculdade) de impugnar autonomamente o ato interlocutório restringe o direito à impugnação e nessa medida constituiu uma violação do princípio da tutela efetiva e do princípio da justiça.
J. O artigo 54.ºdo CPPT prevê dois momentos impugnatórios alternativos, mas não preclusivos. A regra estabelecida neste preceito é a da impugnação unitária e tal regra não anula a faculdade concedida ao contribuinte de impugnar autonomamente.
K. Pelo que, ao interpretar o direito à impugnação autónoma, não como uma obrigação, mas sim como um direito, o Tribunal Arbitral Tributário dá cumprimento ao princípio da tutela judicial efetiva.
L. Na verdade, o artigo 54.º do CPPT visa única e exclusivamente conferir direitos acrescidos de impugnação, não podendo resultar em contraposição ù atribuição desses direitos, sem apoio expresso na lei, a restrição de um outro direito (a impugnação a fina1 com base em invalidades dos atos interlocutórios).
M. Interpretar o artigo 54.º do CPPT no sentido de que todos os atos interlocutórios lesivos e todos aqueles que constassem de norma expressa como autonomamente impugnáveis teriam de ser impugnados de forma autónoma – sob pena de preclusão da invocação dos respetivos vícios na impugnação final – seria equivalente a desfigurar uma garantia conferida de forma evidente pela lei – a possibilidade de impugnação autónoma-, transformando-a num ónus de impugnação fracionada, incerto e inequivocamente penalizador dos particulares.
N. Em suma, numa interpretação do artigo 54.º do CPPT conforme à Constituição, deverá entender-se que a impugnação autónoma de atos lesivos constitui um direito (uma faculdade) e não uma obrigação (um ónus) do contribuinte.
O. A atribuição de um efeito preclusivo da não impugnação do ato de indeferimento do pedido de inscrição no regime fiscal dos não residentes habituais relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária (liquidação de IRS de 2010), inviabilizando deste modo a invocação nesta de vícios daquele outro, não é compatível com os direitos assegurados pelo principio da tutela efetiva e pelo principio da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
P. A posição sustentada pela AT relativa à interpretação do artigo 54.º do CPPT é não conforme à Constituição, em particular com os princípios da tutela efetiva e da justiça – invocados pela AT para fundamentar o presente recurso – uma vez que restringe, sem que tal esteja expressamente previsto na lei, o direito de acesso dos contribuintes à justiça tributária, no caso concreto, o direito do Recorrido de impugnar a sua (ilegal) liquidação do IRS de 2010, sem que tivesse previamente impugnado autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal, para o ano de 2010.
Q. O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 410/2015, processo n.º 592/14, 1ª Secção, já se pronunciou sobre esta matéria tendo julgado “inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qua1ficando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa".
R. Face ao exposto, dúvidas não restam de que a interpretação e aplicação feita pelo Tribunal Arbitral Tributário do artigo 54.º do CPPT, considerando a impugnação autónoma do ato interlocutório um direito (faculdade) e não uma obrigação (ónus) atribuído ao sujeito passivo, é conforme com o princípio constitucional da tutela judicial efetiva e com o princípio da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 da CRP».

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
6.
Tal como definido no respetivo requerimento de interposição, o objeto do recurso nos presentes autos interposto é integrado pelo artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante «CPPT»), quando interpretado no sentido de «impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal».
Apesar de ter sido essa a formulação de que se socorreu o Tribunal a quo para explicitar, no dispositivo da decisão recorrida, a interpretação do artigo 54.º do CPPT cuja aplicação foi recusada, tanto a configuração do litígio submetido à apreciação daquele tribunal, como a fundamentação ali consonantemente seguida, revelam que tal recusa incidiu sobre uma dimensão mais circunscrita daquele enunciado normativo, obrigando à consequente delimitação do objeto do recurso.
Antes, porém, de prosseguir nessa delimitação, importa atentar no teor do artigo 54.º do CPTT, que é o seguinte:

«Impugnação unitária
Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida».

E importa ter igualmente presente o disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 16.º do Código do Imposto do Rendimento Singular (“CIRS"), com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, onde se estabelece o seguinte:

«Residência

(…)
6 – Considera-se que não têm residência habitual em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, não tenham em qualquer dos cinco anos anteriores sido tributados como tal em sede de IRS.
7 – O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos.»

Remetendo para o quadro legal acima descrito, o litígio submetido ao Tribunal arbitral teve na sua génese a impugnação do indeferimento tácito do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2010, com fundamento em ilegalidade resultante da não aplicação do regime dos residentes não habituais.
De acordo com a pretensão então formulada pelo ora recorrido, o pedido para reconhecimento da sua situação como residente fiscal não habitual, com efeitos para o ano de 2010, que, em 24.02.2011, submetera à Direção de Serviços de Registo de Contribuintes cumpria todos os requisitos estabelecidos no artigo 16.º, n.ºs 6 e 7, do Código do IRS, pelo que, ao indeferi-lo por extemporâneo, a referida entidade fizera uma errónea interpretação dos preceitos legais aplicáveis; tal circunstância, segundo sustentado ainda, implicaria que a liquidação do IRS referente ao ano de 2010 devesse ser anulada por erro sobre os respetivos pressupostos de facto e de direito, traduzido na não aplicação do regime dos residentes não habituais.
À pretensão em tais termos formulada, opôs a ora recorrente o argumento segundo o qual a sindicância judicial do ato administrativo que indeferira a inscrição do ora recorrido como residente não habitual em Portugal, com efeitos ao ano de 2010, teria de ter sido efetuada através de ação administrativa especial, nos termos do artigo 97.º, n.º 2 do CPPT; não tendo sido impugnada a decisão que indeferira tal pedido, a legalidade da liquidação de IRS não poderia ser posta em causa com base em vícios que, não sendo próprios desta, resultariam daquela anterior decisão da AT, a seu tempo não impugnada.
Depois de assim ter definido os termos do litígio a dirimir, o Tribunal a quo não teve dúvidas em afirmar que a posição sustentada pela ora recorrente – de acordo com a qual, repete-se, a sindicância judicial do ato administrativo que indeferira a inscrição do ora recorrido como residente não habitual em Portugal deveria ter sido levada a cabo através de ação administrativa especial, sob pena de não poderem ser invocados os vícios próprios daquele ato no âmbito da impugnação judicial da liquidação do correspondente imposto – era aquela que resultava do artigo 54.º do CPPT.
Não sem antes relembrar que ali se encontra consagrado o princípio da impugnação unitária – de acordo com o qual, em regra, só cabe impugnação contenciosa do ato final do procedimento-, o Tribunal arbitral considerou, todavia, que o indeferimento do pedido de inscrição ora recorrido como residente não habitual em Portugal, no ano de 2010, constituía um «ato lesivo suscetível de impugnação autónoma», consubstanciando, por isso, uma exceção àquele princípio. E que, à luz do direito infraconstitucional aplicável, tal decisão deveria ter sido autonomamente impugnada para que a legalidade da liquidação objeto do pedido de pronúncia pudesse ser apreciada com base no vício que lhe era imputado.
Entendendo, contudo, que tal solução, por precludir a possibilidade de apreciação «da legalidade da decisão de indeferimento do pedido de inclusão [do ora recorrido] no regime dos residentes não habituais», que se havia materializado «na liquidação do IRS do ano de 2010», era incompatível com os princípios dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, o Tribunal a quo recusou a aplicação do artigo 54.º do CPPT, no segmento em que considerou dele resultar que «o requerente que não impugnou autonomamente o ato de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal (…) deixa de poder impugnar a liquidação do IRS com fundamento em vícios daquele ato».
A própria fundamentação seguida pelo Tribunal a quo revela, assim, que a interpretação normativa, extraída do artigo 54.º do CPP, em cuja desaplicação reside a ratio decidendi do pronunciamento recorrido é mais restrita do que aquela que a enunciação constante da fórmula decisória poderia fazer supor. De acordo com a caracterização do critério decisório tido por incompatível com os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 da CRP, trata-se, na realidade, do artigo 54.º do CPPT, quando interpretado no sentido de que a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele.
É essa, portanto, a dimensão normativa que cumpre seguidamente confrontar com a Constituição.

7 – Antes, porém, de prosseguir na apreciação do mérito da causa, um outro aspeto relativo ao objeto do recurso importa esclarecer ainda.
Decorre das respetivas alegações que a ora recorrente, para além de contestar o juízo com base no qual o Tribunal a quo concluiu pela inconstitucionalidade da asserção cuja aplicação foi recusada no caso sub judice, pretende ver reconhecida por este Tribunal a inconstitucionalidade da solução que, em consequência dessa recusa, acabou por ser sufragada na decisão recorrida.
Afirma-o, aliás, de forma expressa.
Na referida peça processual, a recorrente conclui a exposição dos seus argumentos, pedindo a este Tribunal que julgue inconstitucional «a norma do 54.º, n.º 1, 1.ª parte do CPPT (…), por violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça (artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP), quando interpretada no sentido de que a referência à impugnação de atos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não acionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjetivo dos sujeitos passivos de discutir um ato administrativo-tributário que se sedimentou na ordem jurídica»
Tal questão não integra, porém, o objeto do presente recurso de constitucionalidade, razão pela qual não poderá ser conhecida.
Com efeito, o recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos funda-se na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual “[c]abe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais" “[q]ue recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade".
A norma cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal recorrido – e cuja apreciação foi por isso submetida a este Tribunal – é, conforme decorre do que ficou já exposto, de sentido inverso àquela que, de acordo com a pretensão expressa nas alegações, a recorrente pretende ver complementarmente sindicada.
Apesar de sobre ambas incidirem as alegações apresentadas – já que nelas se sustenta tanto a não inconstitucionalidade da asserção recusada aplicar pelo Tribunal arbitral como a inconstitucionalidade da norma que, em consequência dessa recusa, foi efetivamente aplicada na dirimição do litígio-, apenas a primeira integra, conforme se viu, o objeto do presente recurso, tal como definido no respetivo requerimento de interposição.
De acordo com o entendimento estavelmente sedimentado na jurisprudência deste Tribunal, ao enunciar no requerimento de interposição de recurso a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, o recorrente delimita, em termos definitivos, o respetivo objeto, não lhe sendo permitido ampliá-lo (mas apenas restringi-lo) em momento ulterior, mormente nas alegações produzidas (cf. Acórdãos n.º 487/2008 e 283/2014, acessíveis, como os demais referidos, em www.tribunalconstitucional.pt).
Encontrando-se vedada à recorrente a ampliação do objeto do recurso, a única questão que pode ser por este Tribunal conhecida é aquela que, incidindo sobre a norma desaplicada pelo Tribunal a quo enunciada no requerimento de interposição – com a delimitação que resulta do que acima ficou já dito – supõe a aferição da viabilidade constitucional da interpretação extraída do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial do ato administrativo de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele.
É essa, portanto, a única questão que importa solucionar em seguida.

B. DO MÉRITO
8 – Conforme se assinalou já, subjacente à desaplicação do critério normativo sob sindicância encontra-se o juízo, formulado pelo Tribunal a quo, de acordo com o qual do princípio da impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do CPPT – mais rigorosamente, dos termos em que o mesmo aí é excecionado – resultaria para o ora recorrido o ónus de impugnação autónoma do «ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, para o ano de 2010», com consequente preclusão da possibilidade de «impugnação da liquidação do IRS de 2010 com fundamento em vícios daquele ato» no caso de aquela não ter sido efetuada.
É sabido que a este Tribunal não cabe pronunciar-se sobre a correção jurídica do resultado interpretativo cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal Arbitral. Ao Tribunal Constitucional apenas cabe verificar se a norma concretamente desaplicada na decisão recorrida viola ou não alguma das normas constitucionais com as quais foi considerada incompatível pelo Tribunal a quo, ou eventualmente outras, ainda que expressamente não convocadas na decisão recorrida
Não cumpre, por isso, apontar aqui qual a melhor interpretação (ou a interpretação preferível) do artigo 54.º do CPPT – isto é, se a exceção ao princípio da impugnação unitária aí ressalvada deve ser entendida como um ónus ou antes como uma faculdade; assim como não cumpre indagar se seria, efetivamente, no âmbito do artigo 54.º do CPPT que deveria encontrar-se resposta para a questão de saber se, não impugnado o ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente habitual em Portugal, poderia o ora recorrido contestar a legalidade do ato de liquidação do IRS com base nos vícios daquele.
De ambos os referidos pontos de vista, a solução perfilhada pelo Tribunal a quo apresenta-se como um dado indiscutido para este Tribunal, cuja função é apenas a de verificar se existe fundamento para confirmar o juízo que, considerando imposta pelo artigo 54.º do CPPT a regra segundo a qual a não impugnação judicial do ato administrativo de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, concluiu pela respetiva incompatibilidade com os princípios da tutela judicial efetiva, respetivamente inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição.

9 – Conforme decorre da fundamentação constante da decisão recorrida, para concluir pela desconformidade constitucional da asserção recusada aplicar – de acordo com a qual, repete-se, a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele-, o Tribunal arbitral socorreu-se do julgamento realizado através do Acórdão Tribunal Constitucional n.º 410/2015, que se pronunciou pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, da interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, «qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles».
Apesar de se inscrever no mesmo âmbito problemático, a dimensão interpretativa julgada inconstitucional através do Acórdão n.º 410/2015 não coincide, porém, nem formal nem materialmente, com aquela que agora cumpre sindicar.
Conforme do mesmo resulta, o Acórdão n.º 410/2015 foi proferido na sequência de um recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de uma decisão proferida pelo Tribunal Arbitral em Matéria Tributária, na parte em que, interpretando e aplicando o artigo 54.º do CPPT, qualificara como um ónus, e não como uma faculdade, a possibilidade de o contribuinte impugnar autonomamente os atos considerados imediatamente lesivos dos seus direitos.
Tendo considerado que o ato de cessação do benefício fiscal ali em causa tinha em natureza interlocutória – isto é, que se inseria «verdadeiramente no âmbito do procedimento administrativo visando a prática do ato tributário final, a liquidação do imposto»-, o Tribunal, no referido acórdão, entendeu que «o efeito preclusivo da não impugnação do referido ato relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária, inviabilizando a invocação nesta de vícios daquele outro», era incompatível com o «princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP».
Tanto a dimensão normativa julgada inconstitucional no Acórdão n.º 410/2015, como o juízo subjacente a tal julgamento, assentam, pois, no pressuposto segundo o qual o ato cuja não impugnação faz precludir a possibilidade de invocação dos respetivos vícios no âmbito da impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto é um ato interlocutório, inserido, como tal, no próprio procedimento tributário que culmina naquela decisão.
Tal qualificação – que procede, de resto, do plano estritamente infraconstitucional – não integra, contudo, a proposição normativa que constitui o objeto do presente recurso, nem constitui, conforme seguidamente se verá, um seu pressuposto necessário.

10 – Para melhor caracterizar o ato através do qual é reconhecido (ou negado o reconhecimento) do estatuto fiscal de residente não habitual – e, em particular, a sua relação procedimental com a liquidação do imposto respetivo-, há um enquadramento geral a que é conveniente proceder-se.
Conforme é sabido, é relativamente comum, no ordenamento jurídico, a existência de procedimentos administrativos organizados de uma forma “escalonada" ou “faseada", no âmbito dos quais se autonomizam, ainda antes de terminado o procedimento, “atos prévios" e “decisões parciais". Trata-se de procedimentos que servem para decidir questões de elevada complexidade, «quer pelo número de destinatários (procedimentos de massa), quer pelo caráter duradouro das relações em causa, quer ainda pelo tecnicismo da decisão» (cf. Vasco Pereira da Silva, Em busca do ato administrativo perdido, Coimbra: Almedina, 1998, p. 462; Filipa Urbano Calvão, Os atos precários e os atos provisórios no direito administrativo, Braga: UCP, 1998, pp. 45 ss).
A este nível, é possível identificar diversas hipóteses procedimentais.
É possível, desde logo, identificar atos praticados no quadro de procedimentos simples, sem qualquer relação com outros atos ou procedimentos administrativos. É possível, igualmente, identificar atos praticados ao longo do procedimento que definem, ainda que parcialmente, a situação jurídica dos interessados, determinando o direito aplicável a determinada questão ou a determinado aspeto de uma questão, em termos que já não podem ser objeto de reapreciação em momento ulterior do procedimento (cf. Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 190). E é possível ainda encontrar atos praticados no âmbito de procedimentos administrativos distintos, mas que se encontram relacionados entre si, designadamente por um deles constituir um pressuposto de direito para a emissão do outro.
Tais possibilidades refletem-se diretamente na conformação do procedimento tributário, que mais não é do que um procedimento administrativo especial.

11 – No que ao procedimento tributário para reconhecimento do estatuto do residente não habitual diz concretamente respeito, não parece estar em causa um procedimento complexo – no âmbito do qual se possa dizer que o ato de reconhecimento daquele estatuto constitui um mero ato preparatório do procedimento de liquidação do imposto-, mas antes dois procedimentos tributários autónomos.
É essa a conclusão para que aponta o regime fiscal para o residente não habitual, instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, que aditou os n.ºs 6 a 9 ao artigo 16.º do Código do IRS.
De acordo com o regime que resultou desse aditamento, na versão anterior às modificações subsequentemente introduzidas pela Lei n.º 20/2012, de 14.05, e aplicável ao caso dos presentes autos, verificado o preenchimento dos requisitos estabelecidos no n.º 6 do artigo 16.º do Código do IRS e solicitada a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos (cf. n.º 7), qualquer sujeito passivo pode obter o estatuto de residente não habitual, alcançando, por essa via, determinados benefícios fiscais, que àquele estatuto se encontram associados. Benefícios que se consubstanciam, desde logo, na tributação à taxa especial de 20%, a que alude o n.º 6 do artigo 72.º do Código do IRS, dos rendimentos das categorias A e B provenientes das atividades de elevado valor acrescentado, com caráter científico, artístico ou técnico, elencadas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, bem como na aplicação aos rendimentos da categoria H do mecanismo de eliminação da dupla tributação jurídica internacional contemplado no n.º 5 do artigo 81.º do mesmo diploma legal.
No caso de o pedido ser deferido – isto é, na hipótese de o sujeito passivo vir a ser considerado residente não habitual-, o mesmo adquire o direito a ser tributado como tal no período de 10 anos consecutivos, desde que em cada um desses 10 anos seja considerado residente para efeitos de IRS (cf. artigo 16.º, n.ºs 7 e 8, do Código do IRS, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23.09, com correspondência nos n.ºs 7 e 9.º do referido artigo 16.º, na redação resultante da Lei n.º 20/2012, de 14.05, e atualmente em vigor).
Do ponto de vista da autonomia do procedimento para reconhecimento do estatuto de residente não habitual relativamente ao procedimento de liquidação do imposto, o significado do deferimento do pedido não é despiciendo: em caso de reconhecimento daquele estatuto, o contribuinte adquire, no âmbito daquele procedimento, o direito a ser tributado como residente não habitual no período de 10 anos consecutivos, o que, perante a anualidade do procedimento de liquidação do imposto sobre os rendimentos singulares, não deixa de ser revelador da autonomia existente entre um e outro.
Do regime legal que acaba de expor-se parece, assim, extrair-se com segurança que o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto – isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, “cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constitu[ir] um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo" (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação unitária do ato tributário", in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19, ainda que a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais).
A relação entre os dois atos reside apenas na dependência que intercede entre o efeito produzido – o desagravamento do imposto – e a circunstância que lhe dá causa – o reconhecimento administrativo daquele estatuto-, não sendo tal conclusão, de resto, contrariada pelo disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 54.º da Lei Geral Tributária (doravante, «LGT»).
Com efeito, depois de estabelecer que “[o] procedimento tributário compreende toda a sucessão de atos dirigida à declaração de direitos tributários", o n.º 1 do artigo 54.º da LGT elenca, ainda que de forma não taxativa, o conjunto dos atos por tal procedimento abrangidos, no mesmo incluindo, a par do “reconhecimento ou revogação dos benefícios fiscais" [alínea d)], um amplo conjunto de atos de natureza muito distinta, certos dos quais poderão integrar o mesmo procedimento em sentido estrito e outros claramente não – é o que sucede com os atos, ali igualmente elencados, referentes a procedimentos administrativo-tributários de 2º grau, que são naturalmente autónomos.
As variações que ocorrem ao nível da categorização dos atos administrativos, bem como da relação que entre eles intercede, resulta, aliás, da ampla margem de liberdade de conformação que ao legislador ordinário é reconhecida no âmbito da delineação destes procedimentos, o que – pode antecipar-se desde já – não pode deixar de incluir a definição da forma e do momento que devem ser observados na reação judicial que a cada um deles faça caber.

12 – O artigo 54.º do CPPT – preceito do qual o Tribunal a quo extraiu a preclusão da possibilidade de contestação da legalidade do ato de liquidação do imposto mediante a invocação de vícios atribuídos ao ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal – consagra o chamado princípio da impugnação unitária.
Conforme referido já, ali se estabelece que, “[s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida".
Do artigo 54.º do CPPT decorre, assim, a regra segundo a qual a impugnação judicial deverá recair sobre a decisão final do procedimento tributário e não, de imediato, também sobre os chamados atos preparatórios ou interlocutórios; estes apenas são impugnáveis de modo indireto, mediante impugnação da correspondente decisão final.
A justificação para a tal regra é simples: “os atos preparatórios dos atos tributários, por via de regra, limitam os seus efeitos ao procedimento em que são praticados, repercutindo-os, todavia, para a frente na decisão final, sendo esta e apenas esta a que, por afetar diretamente a esfera dos destinatários do ato, pode lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos destes" (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., pp. 19 e 20).
Excecionalmente, contudo, sob condição de os atos preparatórios ou interlocutórios daquelas decisões se afigurarem imediatamente lesivos ou visarem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas – caso em que estaremos perante atos destacáveis (sejam atos destacáveis por natureza ou atos destacáveis por força da lei)-, a sua impugnação direta e autónoma encontra-se assegurada (cf. primeira parte do artigo 54.º do CPPT).
Ora, configurando o ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, como se viu, um ato administrativo autónomo, com efeitos próprios e que se estendem para além do ato de liquidação do imposto que imediatamente se lhe segue, nada parece haver de anómalo, do ponto de vista da ratio subjacente a um tal regime, que a sua impugnação autónoma constitua para o contribuinte um ónus e não uma mera faculdade; ou, numa formulação mais próxima da seguida pela recorrente nas suas alegações, na regra segundo a qual, se aquele ato não for judicialmente impugnado, no prazo legalmente fixado para o efeito, não mais o poderá ser, excluindo-se a possibilidade de impugnação do ato consequente – como o de liquidação do tributo-, com fundamento em vícios que atinjam aquele seu ato pressuposto.
Em matéria de impugnação dos atos que indefiram o reconhecimento de benefícios fiscais, é também esse o sentido para que apontam tanto a doutrina como a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.

13 – No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, é prevalecente o entendimento segundo o qual, sempre que estejam em causa benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, a impugnação do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónoma em relação à impugnação do ato de liquidação, precludindo a possibilidade de discutir a questão do direito ao benefício no âmbito do processo de impugnação.
Atente-se, título ilustrativo, no acórdão de 15 de novembro de 2000, relativo ao recurso n.º 25.432, proferido pela Secção do Contencioso Tributário daquele Tribunal, no qual escreveu o que «a isenção de cont. Autárquica não está (…) dependente de um mero juízo declarativo mas, antes, «de um juízo que, embora vinculado à lei, tem eficácia constitutiva, quer dizer, a respetiva decisão é, ela própria, condição legal da isenção». Em tais hipóteses, há, pois, que obter decisão administrativa, quanto à isenção, em sentido favorável, ou contenciosamente, através de recurso contencioso, do ato que a denegue. (…) Não se tendo, assim, obtido, por decisão administrativa, ou em via de recurso contencioso, a pretendida isenção, não se poderá impugnar, com fundamento nesta, o ato tributário consequente já que, como se disse, se poria em causa o referido caso decidido ou o caso julgado, então formado».
Em igual sentido se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 15/12/2004, relativo ao Processo n.º 0211/04, onde, relativamente a uma isenção do pagamento de sisa, se afirmou que “[a] falada isenção não estava, pois, dependente de um mero juízo declarativo, antes, de um juízo que, embora vinculado à lei, tem eficácia constitutiva, quer dizer, a respetiva decisão é, ela própria, condição legal da isenção. Em tais hipóteses, há, pois, que obter decisão administrativa, quanto à isenção, em sentido favorável, ou contenciosamente, através de recurso contencioso, do ato que a denegue. Não se tendo, assim, obtido, por decisão administrativa, ou em via de recurso contencioso, a pretendida isenção, não se poderá impugnar, com fundamento nesta, o ato tributário consequente."
Mais recentemente, em acórdão de 18 de novembro de 2015, proferido no âmbito do Processo n.º 0459/14, voltou o mesmo Tribunal a reafirmar a orientação segundo a qual, no caso de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, a impugnação do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónoma em relação à impugnação do ato de liquidação, não podendo a questão do direito ao benefício ser discutida no âmbito do processo de impugnação.
O mesmo entendimento é, de resto, partilhado na doutrina.
Segundo escreve Lopes de Sousa, «nestes casos de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento», «o recurso contencioso do ato que recair sobre o pedido de reconhecimento é autónomo em relação à impugnação do ato de liquidação, não podendo a questão do direito ao beneficio ser discutida no processo de impugnação». Nesta hipótese, «[o] reconhecimento tem eficácia constitutiva e não meramente declarativa, pelo que, se não for obtido o reconhecimento, por via administrativa ou em impugnação contenciosa do ato que o negar, não poderá o benefício fiscal ser considerado na liquidação do tributo a que respeitar» (cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, I Vol., 6ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, p. 597).
Perspetiva semelhante é, como acima se evidenciou já, sustentada por Casalta Nabais, autor segundo o qual os atos tributários resultantes do procedimento de reconhecimento e extinção de benefícios fiscais são autónomos relativamente ao procedimento que tem como desfecho a liquidação do imposto respetivo. Entre os atos relativos aos benefícios fiscais e os atos relativos à liquidação do imposto existe, assim, uma relação de mera pressuposição, o que explica que aqueles primeiros devam ser obrigatoriamente impugnados de forma autónoma, nos termos gerais, sob pena de o eventual vício verificado deixar de poder ser invocável judicialmente (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., pp. 19 ss.).
O meio de reação ao dispor do contribuinte para aquele efeito é – escreve, por último, Joaquim Freitas da Rocha – a «ação administrativa especial», que deverá ser utilizada «nas situações em que esteja em causa a apreciação de atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação (por exemplo, o ato de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, ou um despacho de sujeição a determinado regime tributação)» (cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 318).
Do entendimento prevalecente tanto na doutrina como na jurisprudência em matéria de impugnabilidade dos atos relativos ao reconhecimento e extinção de benefícios fiscais, extrai-se, assim, que a norma cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal a quo é, afinal, aquela que é ali tida por mais consonante com a natureza autónoma do ato pressuposto – no caso sub judicio, aquele que aprecia o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual. Constatação que, não deixando de contribuir para um melhor enquadramento da norma sob sindicância, não dispensa obviamente a verificação autónoma da respetiva constitucionalidade, em especial no confronto com os princípios da tutela jurisdicional efetiva e da justiça, expressamente invocados pelo Tribunal recorrido para fundamentar a recusa da sua aplicação ao caso sub judicie.

14 – De acordo com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, a norma recusada aplicar – isto é, a norma constante do artigo 54.º do CPPT, na interpretação segundo a qual a não impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele ­-, na medida em que permite a consolidação na ordem jurídica de atos que prejudicam gravemente o contribuinte, é contrária ao princípio constitucional da tutela judicial efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição.
O problema de saber em que condições ou sob que pressupostos deverá poder concluir-se por uma lesão do princípio da tutela jurisdicional efetiva está longe de ser novo na jurisprudência constitucional.
Na síntese formulada no Acórdão n.º 440/94, pode dizer-se que o âmbito normativo do direito de acesso aos tribunais ou à tutela juris­dicional, implicando a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, se ancora em quatro diferentes dimensões. São elas: «(a) o direito de ação no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c)o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas».
No caso em presença, é à primeira das referidas dimensões – o direito de ação enquanto direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional – que se refere o essencial da argumentação subjacente ao juízo formulado pelo Tribunal a quo.
É essa argumentação que não podemos acompanhar.
Tendo por certo que os atos administrativos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual consubstanciam um ato meramente pressuposto dos atos de liquidação do imposto – inscrevendo-se cada um deles no âmbito de um procedimento administrativo-tributário próprio e autónomo-, o que importa determinar, do ponto de vista do direito de ação, é se ao contribuinte ora recorrido foi conferida efetiva possibilidade de reação contenciosa contra o ato que indeferiu o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal – isto é, se, relativamente àquele ato, lhe foi assegurada uma tutela jurisdicional efetiva.
Considerados os meios através dos quais o ordenamento jurídico faculta ao destinatário a possibilidade de reagir judicialmente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, a resposta é indubitavelmente afirmativa.
Uma vez que a decisão que incidiu sobre o pedido de reconhecimento consubstancia um ato administrativo com repercussões na esfera jurídica do interessado, a mesma é passível de impugnação contenciosa imediata, nos termos do disposto no artigo 95.º, n.º 1, da LGT.
Na ausência de uma regra específica, a impugnação judicial dos atos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual encontra-se sujeita aos prazos previstos para a impugnação de atos administrativos em geral – isto é, aqueles que constam do artigo 58.º do CPTA. Assim, se estiverem em causa atos nulos, a impugnação pode ter lugar a todo o tempo (cf. 1ª parte do n.º 1); se estiverem em causa atos anuláveis, a impugnação tem lugar no prazo de um ano, se promovida pelo Ministério Público, e de três meses, nos restantes casos (cf. alíneas a) e b) do n.º 1).
De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 58.º do CPTA, a impugnação poderá ser ainda excecionalmente admitida, para além do prazo geral de três meses imposto para os particulares, nos seguintes casos: nas situações em que ocorra justo impedimento, nos termos previstos na lei processual civil; no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro; ou quando, não tendo ainda decorrido um ano sobre a data da prática do ato ou da sua publicação, se obrigatória, o atraso deva ser considerado desculpável, atendendo à ambiguidade do quadro normativo aplicável ou às dificuldades que, no caso concreto, se colocavam quanto à identificação do ato impugnável, ou à sua qualificação como ato administrativo ou como norma (cf. alíneas a) a c) do n.º 3 do mesmo artigo) (neste sentido, cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de…, cit., p. 597; José Casalta Nabais, “A impugnação…", cit., p. 21).
Ora, tendo tido o contribuinte ora recorrido plena possibilidade de reagir contenciosamente, nos termos que ficaram expostos, contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do benefício fiscal que apresentou, não se vê como a exclusão da possibilidade de invocação dos vícios deste em momento ulterior – isto é, no âmbito da impugnação da legalidade do ato de liquidação do imposto – possa violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva.
Do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, tal conclusão só poderia ser diferente se estivéssemos perante uma situação em que, por força do regime globalmente aplicável, o contribuinte não tivesse tido oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto. Como sucederia, por exemplo, em caso de desconsideração, no âmbito da liquidação do imposto, de uma situação de deficiência fiscalmente relevante, atempadamente comunicada à Autoridade Tributária e Aduaneira: se, por alguma razão, aquela situação não fosse tida em conta pela Administração para efeitos de deduções em sede de IRS, tal facto apenas poderia ser invocado no âmbito da impugnação da própria liquidação do imposto, não sendo consequentemente legítima, à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a exclusão dessa possibilidade.
Não é essa, conforme se viu, a situação em causa nos presentes autos.
Nestes, trata-se tão-só da impossibilidade de o contribuinte que não impugne diretamente o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto fiscal pretendido o poder vir a fazer ainda a posteriori, em sede de impugnação do ato de liquidação do respetivo imposto, apesar de expirado o prazo legal para a invocação do vício relativo ao primeiro ato. Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior.
Contendo-se tal efeito dentro dos limites a cuja imposição se encontra indissociavelmente ligada a função inerentemente disciplinadora de qualquer ordenamento jurídico-processual, não se vê que ocorra qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição.

15 – De acordo com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, a norma extraída do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, é incompatível ainda com o princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
É sabido que a norma constante do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição – de acordo com a qual “[é] garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas" – constitui uma mera concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva, agora com referência aos direitos e interesses dos particulares na específica relação destes com Administração.
Da tutela jurisdicional efetiva especialmente contemplada no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição – que assume, conforme se viu, particular relevância no quadro da jurisdição administrativa-, decorre uma exigência de contencioso pleno, que inclui o reconhecimento e proteção dos direitos e interesses dos particulares, a impugnação de quaisquer atos administrativos lesivos desses direitos e interesses, a existência de meios de condenação à prática de atos devidos, bem como a consagração de medidas cautelares adequadas (cf., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 828 ss.).
No que toca ao processo tributário, impõem-se exatamente as mesmas quatro exigências.
Lato sensu, a imposição constitucional de um contencioso em sede tributária traduz-se no reconhecimento aos contribuintes da faculdade processual de, “em geral, defender em as suas posições jurídicas em todas as situações em que a sua esfera jurídica se encontre afetada, seja nas situações em que existe uma atuação administrativa (…), seja nas situações em que essa atuação, devendo existir, não existe (…)" (cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de…, cit., p. 248).
O que acaba de dizer-se encontra plena concretização no plano infraconstitucional.
Em consonância com a exigência de contencioso pleno no plano tributário, consagrada no 9.º da LGT, o n.º 1 do respetivo artigo 95.º reconhece a qualquer interessado o direito de impugnar ou recorrer de qualquer ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, por potencialmente lesivos para esse efeito tomando, entre outros, os atos de liquidação de tributos (cf. alínea a), do n.º 2) ou o indeferimento de pedidos de isenção ou de benefícios fiscais sempre que a sua concessão esteja dependente de procedimento autónomo (cf. alínea f) do n.º 2 ).
Ora, em face dos meios de reação facultados pelo ordenamento, as considerações que se deixaram feitas acerca da eventual violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva têm aqui inteira aplicação: na medida em que o particular ora recorrido dispôs de uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, o comando cuja aplicação foi recusada não restringe intoleravelmente a garantia de defesa, perante os tribunais, dos seus direitos e interesses legítimos.
Uma última palavra se deixe para o princípio da justiça, enquanto diretiva dirigida ao intérprete/aplicador no sentido de, na resolução das questões que lhe são colocadas, privilegiar a justiça material em detrimento de soluções excessivamente formais.
Por força da imposição que decorre de outros princípios igualmente aplicáveis – como seja o princípio da segurança jurídica ou o próprio princípio da separação de poderes-, qualquer ponderação com o intuito de verificar se a justiça material deverá orientar uma dada solução terá de ser feita em concreto, à luz de todas as propriedades relevantes do caso, sem fazer tábua rasa das exigências que decorram do regime processual aplicável (neste sentido, cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de…, cit., p. 255).
A questão a que, também deste ponto de vista, importa responder não é, por isso, diferente daquela que acima ficou já enunciada: sob incidência da norma que constitui o objeto do presente recurso, de acordo com a qual a não impugnação judicial do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, aos contribuintes é negada a faculdade de impugnar contenciosamente os atos da Administração Tributária e Aduaneira que possam violar os seus direitos ou interesses legalmente protegidos?
Tendo em conta as várias possibilidades impugnatórias de que o contribuinte poderia ter lançado mão no caso sub judice – embora o não tenha feito-, a resposta é, conforme se viu já, negativa.
Por isso, a solução recusada pelo Tribunal a quo, ainda que possa não ser, de entre as abstratamente configuráveis, aquela que maior nível de proteção assegura aos particulares, não é censurável à luz do princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
O recurso deverá, pois, ser julgado procedente.

III – DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:

a)Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles;
e, em consequência,
b)Julgar procedente o recurso interposto pela AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa, 15 de novembro de 2017 – Joana Fernandes Costa – Maria Clara Sottomayor – João Pedro Caupers – Maria José Rangel de Mesquita – Gonçalo de Almeida Ribeiro (Vencido, nos termos da declaração em anexo)

DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido.

1 – O Acórdão acolhe expressamente o princípio, afirmado de modo reiterado na jurisprudência deste Tribunal, da incognoscibilidade pela jurisdição constitucional das questões de direito ordinário controvertidas nos autos. Porém, acaba inevitavelmente – pelo caminho percorrido na fundamentação – por desrespeitá-lo.
Não é necessário encarecer a relevância do princípio da incognoscibilidade na repartição de competências entre a justiça comum e a justiça constitucional e na definição funcional do Tribunal Constitucional na arquitetura do Estado de direito democrático. Ele corresponde ao reconhecimento do papel que, nesse âmbito, é atribuído a este Tribunal. Um papel especialíssimo, por duas ordens de razão complementares.
Em primeiro lugar, porque lhe cabe a autoridade suprema em matéria de interpretação de uma lei com características singulares – a Constituição-, que reclama uma metódica diversa da que caracteriza a interpretação, concretização e aplicação do direito ordinário de fonte legal e uma legitimidade diversa da que desfrutam os tribunais comuns. Em segundo lugar, porque embora a intervenção do Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta, seja um incidente de um processo em que são dirimidas pretensões subjetivas, a questão que lhe compete decidir é exclusivamente a de saber se uma ou mais normas de direito ordinário aplicáveis no caso concreto são conformes à Constituição, o que atribui ao recurso de constitucionalidade um pendor objetivista. São, essencialmente, estas duas características da justiça constitucional – a natureza fundamental do parâmetro jurídico cuja garantia lhe está confiada e a natureza normativa do objeto sobre o qual incidem os seus juízos – que previnem qualquer confusão funcional entre ela e a justiça comum.
O princípio da incognoscibilidade das questões de direito ordinário é um corolário lógico dessa premissa radical e um instrumento indispensável à sua administração judicial. O seu alcance é, simplesmente, o seguinte: para decidir a questão de constitucionalidade que constitui o objeto do recurso, não deve o Tribunal Constitucional percorrer o caminho que a decisão recorrida percorreu para resolver qualquer das questões de direito ordinário que lhe tenham sido colocadas, devendo tomar a resposta a tais questões como um dado inquestionável – o juízo definitivo das autoridades jurisdicionais competentes sobre o direito ordinário de fonte legal – e confrontá-lo com os parâmetros constitucionais relevantes.
É certo que este princípio admite uma exceção. Nos casos em que a norma extraída da lei pela decisão recorrida não tem com o teor literal daquela um mínimo de correspondência ou em que a norma legal aplicada não é evidentemente aplicável nos autos, o Tribunal Constitucional tem entendido que se justifica recusar a admissão do recurso de constitucionalidade (v. o Acórdão n.º 677/2016 e a jurisprudência nele citada). Sem dúvida que tal implica a sindicância da decisão recorrida no plano do direito ordinário, ainda que dentro dos estreitos limites de um controlo de evidência. Todavia, importa notar que essa possibilidade é ainda uma consequência natural da premissa radical em que se baseia o princípio da incognoscibilidade das questões de direito ordinário: nesses casos, por definição excecionais, o Tribunal Constitucional não se substitui ao tribunal recorrido na decisão da causa, antes recusa a admissão de um recurso de constitucionalidade que não tem cabimento, porque o seu objeto constitui, sem margem para dúvidas, uma realidade meramente virtual. É a própria natureza da jurisdição constitucional – como guardião da ordem constitucional e contrapeso do poder legislativo – que justifica essa prerrogativa de exceção, a qual opera como meio de defesa do Tribunal contra o risco de instrumentalização processual do recurso de constitucionalidade.

2 – A decisão recorrida comporta necessariamente duas afirmações no plano do direito ordinário.
Em primeiro lugar, a de que a correta interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) é a de que os atos interlocutórios imediatamente lesivos de direitos devem ser objeto de impugnação imediata e autónoma, de tal modo que os seus vícios não podem ser invocados na impugnação da decisão final do procedimento em que estejam inseridos; por outras palavras, a exceção ao princípio da impugnação unitária constitui um ónus e não uma faculdade. Essa é a premissa maior do silogismo decisório.
Em segundo lugar – e é esta a premissa menor-, a de que o indeferimento do pedido de atribuição de benefício fiscal apresentado pelo recorrido constitui um ato interlocutório, imediatamente lesivo de direitos, para efeitos do artigo 54.º do CPPT. Este juízo de qualificação é um dado seguro e inquestionável: é seguro, porque, tendo a decisão recorrida aplicado o artigo 54.º do CPPT, que diz apenas respeito a atos interlocutórios, não pode deixar de ter concluído pela natureza interlocutória do ato impugnado; e é um dado inquestionável, porque foi proferido no plano do direito ordinário, na medida em que diz exclusivamente respeito a matéria de direito administrativo e tributário, no âmbito da qual se distinguem atos autónomos de atos interlocutórios do procedimento. Foi por ter reconhecido natureza interlocutória ao indeferimento do pedido de atribuição de benefício fiscal, que a decisão recorrida não pôde deixar de determinar o sentido do artigo 54.º do CPPT – o qual dispõe sobre o regime de impugnação dos atos interlocutórios – e de confrontar esse sentido com o artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, designadamente nos termos do Acórdão n.º 410/2015, em que o Tribunal proferiu nessa matéria um juízo de inconstitucionalidade.
O que o Tribunal faz neste Acórdão – e o que me leva a dele divergir – é sindicar esse juízo de qualificação, com o propósito evidente de distinguir a questão colocada neste recurso daquela sobre a qual recaiu o Acórdão n.º 410/2015. O caminho percorrido compreende duas etapas essenciais. A primeira é a de, sob a aparência de redução do objeto do recurso, reabrir uma das questões de direito ordinário à qual a decisão recorrida deu resposta, a da natureza interlocutória ou autónoma do ato tributário cujos vícios o recorrido pretendeu arguir após a liquidação do imposto sobre o seu rendimento referente ao ano de 2010. A segunda, amplamente documentada na fundamentação por jurisprudência e doutrina administrativas e tributárias, é a de responder a essa questão no sentido contrário ao da decisão recorrida, ou seja, de que o ato tributário em questão não constitui um ato interlocutório, mas um ato autónomo que pôs termo a um procedimento independente. Completadas estas duas etapas, a questão de constitucionalidade com a qual a decisão recorrida se debateu – aquela sobre a qual recaiu o Acórdão n.º 410/2015 e que diz respeito à compatibilidade do ónus de impugnação autónoma dos atos interlocutórios imediatamente lesivos de direitos com o direito à tutela jurisdicional efetiva dos administrados – ficou esvaziada de sentido. Com efeito, ao concluir que o ato tributário não possui natureza interlocutória, o Tribunal Constitucional excluiu o caso do domínio de aplicação do artigo 54.º do CPPT e, consequentemente, de qualquer controvérsia constitucional que a respeito dela se possa ter formado.
Sem prejuízo do elevado nível da argumentação, todo esse percurso excede, segundo creio, os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, contribuindo para a confusão entre a função do juiz comum e a do juiz constitucional. O recurso de constitucionalidade foi, ao longo desse percurso, transformado num recurso ordinário.

3 – Entendo que este recurso admitia apenas duas possibilidades de decisão.
Se o Tribunal chegasse à conclusão de que a qualificação do ato como interlocutório constitui, evidentemente, um erro de apreciação, deveria ter recusado a admissão do recurso, no uso da prerrogativa excecional já referida.
Se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão – aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida-, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão – «ato imediatamente lesivo de direitos»-, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto: «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.»

Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente.