Diário da República n.º 18, Série I, de 2020-01-27
Acórdão n.º 774/2019, de 27 de janeiro
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019 – Inconstitucionalidade de parte do n.º 2 do artigo 398.º do CSC
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Diploma
Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente à data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro); limita os efeitos da inconstitucionalidade, de modo a que se produzam apenas a partir da publicação do presente Acórdão
Acórdão n.º 774/2019, de 27 de janeiro
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 – O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novem bro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora ou de outra com que esta esteja em relação de domínio ou de grupo.
De forma a legitimar o seu pedido, alega o requerente que tal norma já foi julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional, respetivamente nos Acórdãos n.ºs 1018/1996, da 2.ª Secção, 626/2011, da 2.ª Secção, e 53/2019, da 3.ª Secção (por mero lapso de escrita referenciado no requerimento como 53/2018), que confirmou a Decisão Sumária n.º 778/2018. De acordo com o requerimento do Ministério Público, as decisões referidas transitaram em julgado.
2 – Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos conjugados dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
3 – Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
4 – De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da LTC, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, previsto nesta mesma Lei.
Importa determinar, em primeiro lugar, se estão preenchidos os pressupostos para que o Tribunal possa tomar conhecimento do objeto do pedido.
5 – Não havendo dúvidas quanto à legitimidade ativa do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma contestada foi efetivamente julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em três casos, sobre que incidiram os Acórdãos n.ºs 1018/1996, 626/2011 e 53/2019 (que confirmou a Decisão Sumária n.º 778/2018). Acresce não existir divergência quanto aos fundamentos de inconstitucionalidade, assentando os três juízos na violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente à data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro), a que correspondem as atuais alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º
Deve sublinhar-se que a formulação normativa julgada inconstitucional nos três arestos acima referidos conheceu diferentes expressões linguísticas: no Acórdão n.º 1018/1996 o juízo incidiu sobre a “a norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, na parte em que considera extintos os contratos de trabalho, subordinado ou autónomo, celebrados há menos de um ano contado desde a data da designação de uma pessoa como administrador e a sociedade que, com aquela, estejam em relação de domínio ou de grupo"; no Acórdão n.º 626/2011, sobre “o artigo 398.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, enquanto estabelece a extinção dos contratos de trabalho – celebrados há menos de um ano – de que seja titular o trabalhador de uma sociedade, que venha a ser designado como administrador dessa sociedade"; e no Acórdão n.º 53/2019, confirmando a Decisão Sumária n.º 778/2018, apreciou-se “a norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte que determina a extinção do contrato de trabalho de que seja titular o trabalhador de uma sociedade, que venha a ser designado administrador dessa sociedade antes de decorrido um ano desde a celebração do contrato".
Ora, ainda que através de diferentes enunciações, é inequívoca a identidade do segmento normativo em causa: nos três arestos foi julgada inconstitucional a norma que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora – apenas o Acórdão n.º 1018/1996 se referindo a sociedade que com aquela esteja em relação de domínio ou de grupo. Tal norma decorre, de forma muito clara, do teor literal do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Nestes termos, há que concluir que nada obsta ao conhecimento do pedido, circunscrito à norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora.
6 – O n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais disciplina as consequências da designação como administrador de uma pessoa que exerça, até esse momento, funções laborais na mesma sociedade anónima ou em outra que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo.
Tal preceito estabelece a suspensão ou extinção do contrato de trabalho (subordinado ou autónomo, nos termos do n.º 1), consoante este haja sido celebrado há mais ou menos de um ano:
Exercício de outras atividades
[…]
2 – Quando for designada administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.
[…]»
O teor do preceito em causa, constante da versão originária do CSC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, não foi objeto de alteração pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, que apenas aditou à versão originária do artigo 398.º do CSC, que integrava os números 1 e 2 (ora sindicado), os novos números 3 a 5 do preceito, nos termos seguintes (cf. artigo 2.º Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março):
[…]
1 – […]
2 – […]
3 – Na falta de autorização da assembleia geral, os administradores não podem exercer por conta própria ou alheia atividade concorrente da sociedade nem exercer funções em sociedade concorrente ou ser designados por conta ou em representação desta.
4 – A autorização a que se refere o número anterior deve definir o regime de acesso a informação sensível por parte do administrador.
5 – Aplica-se o disposto nos n.ºs 2, 5 e 6 do artigo 254.º»
Nos presentes autos, está somente em causa o segmento normativo, constante da versão originária do n.º 2 do artigo 398.º do CSC, a qual se manteve até hoje inalterada, que estabelece a extinção dos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano, por ter sido esse o critério normativo que foi objeto dos três julgamentos de inconstitucionalidade.
6.1 – A regra fiscalizada associa-se à opção legislativa, consagrada no n.º 1 do artigo 398.º do CSC, de previsão de um princípio de incompatibilidade entre as funções de administrador e de trabalhador. Esta proibição de cúmulo foi positivada pela primeira vez no Código das Sociedades Comerciais, ainda que a jurisprudência anterior já concluísse maioritariamente por tal solução – v. g., entre muitos, os Acórdãos do STA de 10.03.1953 (Coleção de Acórdãos do STA n.º XII), de 18.10.1960 (Coleção de Acórdãos do STA n.º XV) e de 18.01.1972 (Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 124, p. 535) e do STJ de 15.10.1980 (BMJ, n.º 300, p. 227) e de 16.12.1983 (BMJ, n.º 332, p. 418).
A incompatibilidade entre o exercício de funções laborais e o exercício do cargo de administrador é usualmente justificada com base em três razões.
Em primeiro lugar, certa doutrina sustenta existir uma impossibilidade estrutural de acumulação das funções: serão inconciliáveis o estatuto de subordinação inerente à condição de trabalhador e o cargo de administrador, que se identifica com a posição de empregador (Paulo de Tarso Domingues, “Administradores trabalhadores – breves notas", Católica Law Review, vol. II, n.º 2, 2019; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, 2016, p. 72; José Engrácia Antunes, A proibição de cúmulo administrador/ trabalhador – da sua constitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2018, p. 19; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 17.11.2016, proc. 394/10.0TTTVD.L1.S1).
Em segundo lugar, e mesmo para a doutrina (hoje maioritária) que não considera haver impossibilidade, a opção visará proteger a independência dos administradores, prevenindo potenciais conflitos de interesses. Procurar-se-á assegurar que “o sujeito designado administrador exerce esse cargo sem as limitações que a posição no contrato de trabalho subordinado ou autónomo traria consigo" (cf. Alexandre Soveral Martins, “Comentário ao artigo 398.º", Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Coimbra, 2013, p. 336; Coutinho de Abreu, “Sobre o trabalhador/administrador", Para Jorge Leite – Escritos Jurídicos, vol. II, p. 5; Luís Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 575; Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I – Relações Individuais de Trabalho, 2007, p. 167, e “Da validade do contrato de trabalho uma sociedade de um grupo para o exercício de funções de administração social noutra sociedade do mesmo grupo", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 435 e 443; Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das sociedades por quotas e anónimas – organização e estatuto dos administradores, Lisboa Petrony, 1990, p. 304; Luís Miguel Monteiro, “Regime jurídico do trabalho em comissão de serviço", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, p. 512; Engrácia Antunes, cit. pp. 14 e 16; Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 16; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1018/1996; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1).
Por fim, alude-se a uma finalidade de preservação do modelo legal de governação das sociedades anónimas, que atribui ao Conselho de Administração (e não aos trabalhadores) a competência quanto às decisões fulcrais da empresa, assentando num princípio de livre destituição dos administradores. A confusão nas mesmas pessoas da posição de administrador e de trabalhador (cujo despedimento depende de justa causa) poria em causa tal arquétipo – cf. Engrácia Antunes, cit., p. 18; Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 307; Alexandra Marques Sequeira, “Da designação de trabalhador para membro de órgão estatutário da sociedade empregadora – efeitos no contrato de trabalho", Questões Laborais, n.º 46, 2015, p. 154; António José Sarmento Oliveira, “O contrato de administração. Sua natureza e possibilidade de cumulação com um contrato de trabalho", Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 5, 2005, p. 202.
Ora, a eficácia da opção legislativa da incompatibilidade entre as posições de trabalhador e administrador é garantida através de três normas: por um lado, pela proibição de os administradores celebrarem contratos de trabalho com a sociedade, ainda que com efeitos apenas para depois do cargo (n.º 1 do art. 398.º CSC) (i); por outro, no que tange aos trabalhadores que venham a ser designados como administradores, pela suspensão (ii) ou extinção (iii) do contrato de trabalho, consoante este tenha duração superior ou inferior a um ano (n.º 2 do artigo 398.º CSC).
É este último segmento normativo cuja constitucionalidade se discute. Ainda que o legislador haja usado qualquer nomen iuris, trata-se, indiscutivelmente, de uma causa de caducidade do contrato de trabalho, prevista especialmente em lei (cf. Jorge Leite, Direito do Trabalho, vol. 2, SASUC, Coimbra, 2003, p. 198; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado…, cit., pp. 72 e 80; Engrácia Antunes, cit., p. 29).
6.2 – A diferenciação do tratamento dos contratos celebrados há menos de um ano (que se extinguem, em vez de se suspenderem) radicará na dissuasão de condutas fraudulentas. O legislador terá querido prevenir que um sujeito estranho à sociedade celebrasse com esta um contrato de trabalho fictício, imediatamente antes da sua designação como administrador, com vista a assegurar a sua posição profissional depois das funções sociais, à custa da sociedade (cf. Coutinho de Abreu, “Administradores e trabalhadores de sociedades – cúmulos e não", Temas Societários, Almedina, Coimbra, 2006, p. 16, e Governação das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 66; Ricardo Costa, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2014, p. 806; Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 20, nota n.º 39; Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 193; Raul Ventura, “Nota sobre a interpretação do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais – exercício de outras atividades por administrador de sociedade anónima", O Direito, ano 125, n.º III-IV, 1993, p. 263).
Aliás, o propósito de evitar um aproveitamento da sociedade será igualmente a ratio legis da última parte da norma do n.º 1 do artigo 398.º, dedicado à situação paralela, mas inversa, de um administrador celebrar com a sociedade um contrato de trabalho para depois da cessação de funções como administrador: com vista a proteger a sociedade de uma conduta fraudulenta, proíbe-se a celebração do contrato, procurando impedir “aproveitamento do cargo de administrador para garantir o seu futuro à custa da sociedade administrada" (Coutinho de Abreu, “Administradores e trabalhadores…", cit., p. 20). Na síntese do Acórdão do STJ de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1, “o n.º 2 do art. 398.º do CSC estabelece a extinção do contrato por a escassa duração do vínculo fazer avolumar o receio de fraude. Embora a situação se não reconduza à contemplada no art. 398.º, n.º 1, in fine – em que o Administrador utiliza o cargo para obter um vínculo com a sociedade quando cessar funções – existe uma grande afinidade entre elas. É lícito, razoavelmente, temer que o Administrador tenha condicionado a aceitação da designação à obtenção de um vínculo que, apesar de anterior – ao menos formalmente – ao exercício do cargo, se projeta sobretudo no futuro, uma vez cessada a Administração. A questão com que se defronta em tais casos o ordenamento reside justamente em evitar celebrações de contratos temporalmente próximos da designação e presumivelmente fraudulentos, para conseguir a manutenção, após a cessação do cargo de Administrador, de um vínculo remunerado com a sociedade".
Em suma, o legislador presume iuris et de iure que a celebração de um contrato de trabalho em data próxima da designação como administrador constitui conduta fraudulenta, cujo escopo será o de acautelar a posição profissional futura do titular, a expensas da sociedade (Raul Ventura, “Nota sobre o desempenho doutras funções por administrador de sociedade anónima", Novos Estudos sobre sociedades anónimas e sociedades em nome coletivo, Almedina, Coimbra, 1994, p. 193; Engrácia Antunes, cit., p. 27). Sendo certo que a regra tem natureza imperativa, não relevando que os acionistas hajam manifestado o propósito de manutenção do vínculo contratual (cf. Acórdãos do STJ de 11.02.2004, proc. 03S4053, e de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1, e de 17.11.2016, proc. 394/10.0TTTVD.L1.S1; Raul Ventura, “Nota sobre a interpretação…", cit., p. 263).
No contexto do direito ordinário, a bondade solução vem sendo questionada. Por um lado, duvida-se da necessidade da sua previsão, uma vez que as regras gerais da invalidade do contrato de trabalho bastariam para acautelar a eventualidade de aproveitamento ilícito da sociedade; por outro, alega-se que esta caducidade pode também ser utilizada fraudulentamente, pois admite a designação de certo trabalhador como administrador justamente para fazer cessar a relação laboral fora dos casos legalmente previstos (Coutinho de Abreu, Governação…, cit., p. 67; Ricardo Costa, cit., p. 808; Luís Brito Correia, Os Administradores…, cit., p. 590).
6.3 – Quanto ao âmbito de aplicação da norma fiscalizada, subsiste alguma controvérsia.
Certa doutrina vem propondo uma interpretação restritiva, sufragando não dever a regra mobilizar-se quando, em sociedades em relação de domínio ou de grupo, o trabalhador da sociedade dominante seja designado administrador da sociedade dominada – Coutinho de Abreu, “Administradores e trabalhadores…", cit., p. 18, e Governação…, cit., p. 68; Raul Ventura, “Nota sobre o desempenho…", cit., p. 194; Júlio Gomes, “Da validade…", cit., p. 453; Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos Empresariais e Societários – Incidências Laborais, Almedina, Coimbra, 2008, p. 526).
Por outro lado, é debatida a sua aplicação analógica a outros tipos sociais – máxime a gerentes de sociedades por quotas. Alguns Autores sufragam dever ser mobilizada no contexto das sociedades por quotas (Paulo de Tarso Domingues, cit., p, 22); outros propõem a sua extensão analógica apenas quanto ao segmento normativo em que se estabelece a suspensão contratual (Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 314); outra corrente apela a uma ponderação do caso concreto (Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, p. 201; Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos…, cit., p. 521; Luís Brito Correia, “Admissibilidade de remuneração variável de um gerente de sociedade por quotas", Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, vol. 2, 2009, p. 14; Acórdão do STJ de 29.09.1999, Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 461, p. 762); enquanto que certa doutrina recusa a bondade daquela extensão aplicativa (Luís Miguel Monteiro, “Regime…", cit., p. 512; Alexandra Marques Sequeira, cit., p. 155; António José Sarmento Oliveira, cit., p. 205).
7 – Nos três Acórdãos proferidos em sede de fiscalização concreta – e que motivaram a organização do presente processo-, o juízo de inconstitucionalidade baseou-se na consideração de que a regra sob fiscalização, na parte em que determina a extinção dos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano, deve ser qualificada como legislação do trabalho, implicando por isso a audição das organizações representativas dos trabalhadores, nos termos das normas contidas na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente à data da edição da norma em crise (Lei Constitucional n.º 1/82).
O ordenamento jurídico vigente à data da aprovação do CSC não tinha qualquer norma positivada sobre o problema. Nessa época, as causas de extinção do contrato de trabalho estavam taxativamente determinadas no Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de julho (com alterações introduzidas pelos Decreto-Lei n.º 84/76, de 28 de janeiro, e n.º 841-C/76, de 7 de dezembro, e pela Lei n.º 48/77, de l de novembro): acordo das partes, despedimento e caducidade, não se prevendo que a designação como administrador originasse a caducidade do contrato. Assim, e como sublinhou o Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 1018/96 e 626/2011 e na Decisão Sumária n.º 778/2018, “a norma em questão veio ao fim e ao resto – na sua vertente de repercussão nos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano entre uma sociedade anónima e os seus trabalhadores (ou os das sociedades que se encontram numa relação de domínio ou de grupo com aquela), que foram designados para exercerem funções de administração – a estatuir uma nova causa de extinção, por caducidade, desses negócios jurídicos, causa essa não anteriormente contemplada". Por esta razão, entendeu-se que a introdução de uma nova causa de extinção do contrato de trabalho materializa “legislação do trabalho", sujeita ao direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores, cujo cumprimento não resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro (que aprova o Código das Sociedades Comerciais).
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional há, outrossim, três outros dados sobre o problema em causa.
Em primeiro lugar, releva o Acórdão n.º 259/2001 que incidiu sobre a parte do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais que estabelece a suspensão dos contratos de trabalho. Ainda que incidindo sobre norma distinta, o Tribunal aceitou que toda a regulação do n.º 2 do artigo 398.º (quer na parte em que estabelece a extinção, quer na parte que determina a mera suspensão) se qualificaria como legislação do trabalho. Todavia, entendeu não se verificar um vício procedimental quanto à aprovação do segmento normativo relativo à suspensão do contrato de trabalho por não constituir regulação inovatória face ao regime anterior. Isto é, entendeu-se que a jurisprudência infraconstitucional anterior à entrada em vigor do CSC já concluía pela suspensão dos contratos de trabalho, pelo que não reconheceu carácter inovatório àquele segmento normativo e não se impondo, em consequência, a audição das organizações representativas dos trabalhadores.
Em segundo lugar, importa frisar o que o Acórdão n.º 539/2007 não contradiz a jurisprudência referida, porquanto não incide sobre a mesma norma (contra, v. Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 21; Engrácia Antunes, cit., p. 91). Efetivamente, ali se considerou não existir qualquer inconstitucionalidade procedimental, formal ou material, na norma contida no n.º 1 do artigo 398.º (e não no seu n.º 2); a norma aí fiscalizada proíbe um administrador de celebrar um contrato de trabalho com a sociedade e não, como na regra ora em crise, a extinção de um contrato de trabalho anterior por força da designação de um trabalhador como administrador:
«As situações previstas no n.º 2 do artigo 398.º são diversas das contempladas no seu n.º 1:
enquanto que naquele estão em causa duas situações em que a pessoa que foi designada administrador da sociedade detinha, à data da designação, um vínculo laboral com a mesma sociedade, já na hipótese em apreço (a do n.º 1), previne-se a circunstância de o administrador designado adquirir, durante o exercício das funções de administração ou mesmo após a sua cessação, qualquer vínculo (laboral ou de prestação de serviços) com a sociedade administrada ou sociedades que com esta estejam numa relação de domínio ou de grupo.
Ou seja, na hipótese do n.º 1 do artigo 398.º não se verificam as razões em que o citado Acórdão n.º 1018/96 se fundamentou para incluir o n.º 2 do preceito, na parte citada, no conceito de legislação laboral.
Na verdade, o n.º 1 não regula posições jurídicas de trabalhadores, enquanto tais, nem tem qualquer efeito direto e imediato numa relação de índole laboral. Pelo contrário, a norma tem como destinatário o administrador da sociedade – nessa exata qualidade – e visa obstar a que este adquira a qualidade de trabalhador ou prestador de serviços da sociedade».
Isto é, a disciplina do n.º 1 do artigo 398.º (que proíbe o administrador de celebrar um contrato de trabalho) dissocia-se do objeto normativo ora fiscalizado (que extingue um contrato de trabalho por efeito da designação como administrador): ali não existe qualquer situação laboral que seja regulada, densificada, suspensa ou extinta – simplesmente se obstando ao administrador a aquisição da qualidade de trabalhador. Pelo contrário, a regra do n.º 2 produz efeitos numa relação jurídico-laboral existente, extinguindo-a quando o contrato haja sido celebrado há menos de um ano. No fundo, a única semelhança entre as duas normas é o seu propósito, dirigindo-se ambas a assegurar a combater condutas fraudulentas e a assegurar a regra da incompatibilidade entre a posição de trabalhador e a de administrador.
Em terceiro lugar, é relevante a Declaração de Voto do Conselheiro Pamplona de Oliveira aposta Acórdão n.º 626/2011, na qual se defende ser necessário “distinguir entre as intervenções legislativas diretamente votadas à definição de «legislação do trabalho» e as que, visando um outro objetivo, acabam por interferir, de forma acidental ou meramente episódica, em matéria de natureza laboral". Aplicando este critério, sustenta-se que “a análise da norma revela que a mesma não interfere na definição de qualquer tipo de direitos ou deveres dos trabalhadores que devesse reclamar a intervenção de representantes sindicais, e não altera o quadro legal em que se desenvolve o regime do contrato individual de trabalho, incluindo a sua cessação. Seria, por isso, de concluir que a norma, não interferindo em área que reclamasse a participação sindical, não ofende o citado princípio constitucional". Nestes termos, sustentou o Conselheiro Pamplona de Oliveira que a definição da legislação do trabalho – que é restrita, como se verá, às normas diretamente dirigidas à estatuição do regime laboral – não abrange aquelas regras que, visando disciplinar outras matérias, acabam por produzir efeitos no contrato de trabalho.
8 – Ao Tribunal Constitucional é posta, pois, a questão da qualificação da norma como integrante do conceito jurídico-constitucional como legislação do trabalho e, consequentemente, o problema da sua sujeição, no processo legislativo, à participação das associações sindicais e das comissões de trabalhadores. Conformando-se os atos normativos com o parâmetro constitucional no seu todo (material, formal e procedimental) importa saber se foi respeitado o procedimento jurídico-constitucional de formação normativa (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 919, 921 e 1321; Cardoso da Costa, “A justiça constitucional no quadro das funções do Estado vista à luz das espécies, conteúdo e efeitos das decisões sobre a constitucionalidade de normas jurídicas", Documentação e Direito Comparado – Boletim do Ministério da Justiça, n.º 27/28, 1987, p. 51).
A redação da Constituição vigente à data da edição da norma em crise (na versão da Lei Constitucional n.º 1/82), consagrava o direito de participação das comissões de trabalhadores e das associações sindicais na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º; ora, apesar de estas normas constitucionais não terem sofrido qualquer alteração de conteúdo (constando hoje, respetivamente, na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição), a apreciação de um eventual vício procedimental tem por referência, salvo eventuais casos excecionais, as normas constitucionais vigentes à data da edição da norma, em face do princípio tempus regit actum – “O princípio tempus regit actum leva a distinguir dois efeitos no tempo: a aprovação da norma rege-se pela lei constitucional vigente nesse momento; a aplicação da mesma norma tem de respeitar os princípios e normas constitucionais vigentes no momento em que se efetiva essa mesma aplicação". (Gomes Canotilho, cit. p. 1307; no mesmo sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 37; Rui Medeiros, “Valores jurídicos negativos da lei inconstitucional", O Direito, Ano 121-III, 1989, p. 517; Luis Maria Díez-Picaso, “Consideraciones en torno a la inconstitucionalidad sobrevenida de las normas sobre la producción jurídica y a la admisibilidad de la cuestión de inconstitucionalidad", Revista Española de Derecho Constitucional, n.º 13, 1985).
Em aplicação desta conceção, o Tribunal Constitucional vem fiscalizando o respeito pelo direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores na aprovação da legislação do trabalho por referência ao texto constitucional em vigor à data em que as normas foram dimanadas – cf. Acórdãos n.ºs 31/84, 451/87, 355/91, 446/91, 24/92, 93/92, 477/98, 517/98 e 634/98).
O direito de participação na elaboração da legislação do trabalho materializa uma das “formas de exercício da soberania popular que transcendem os clássicos direitos de votar, de eleger e de ser eleito" (Maria Lúcia Amaral, “Grupos de interesse", Nos dez anos da Constituição, 1986, p. 83), enquanto manifestação de um princípio de democracia participativa (Pedro Machete, A audiência dos interessados no procedimento administrativo, Universidade Católica Editora, 1995, p. 342). Trata-se de uma disposição inédita no direito constitucional comparado, ao “consignar uma limitação formal e procedimental do poder legislativo no ouvir obrigatório na matéria das organizações representativas dos trabalhadores" (Bernardo Lobo Xavier, “A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito do trabalho", XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 232).
Isto é, a Constituição prevê um condicionamento ao exercício da competência legiferante dos órgãos legislativos mediante a estatuição de um “direito de pressão legítima – que os órgãos não poderão deixar de reconhecer" (Francisco Lucas Pires, “Direito das comissões de trabalhadores de participar na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respetivo sector", Estudos sobre a Constituição, 1977, p. 378), dirigido à “autodefesa dos interesses dos trabalhadores" (João Caupers, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a Constituição, Almedina, Coimbra, 1985, p. 136).
A isto acresce que, independentemente da questão de saber se constitui um direito fundamental em sentido próprio ou somente matéria de direitos fundamentais, faltando um radical subjetivo individual (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª Edição, 2016, p. 90), o Tribunal Constitucional vem determinando que a sua previsão no Título II da Constituição importa, nos termos do artigo 17.º, a mobilização do regime dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando assim de aplicabilidade direta independentemente de o legislador ordinário não haver consagrado adequadamente o modo da sua participação – Acórdãos n.ºs 31/84, 451/87 e 218/89; Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", Constituição Portuguesa Anotada, org. por Jorge Miranda e Rui Medeiros, vol. I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 1105; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Almedina, Coimbra, 1991, p. 194; Pedro Machete, cit., p. 356, nota n.º 751.
A mobilização deste instituto jurídico-constitucional suscita, para além da sua natureza jurídica, três problemas jurídicos (cf. Pedro Machete, cit., p. 356), a que a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem respondendo: a definição do conceito de legislação do trabalho (i), a concretização constitucionalmente adequada do direito de participação (ii) e os efeitos jurídicos da sua eventual preterição (iii).
8.1 – Uma vez que a Constituição não define “legislação do trabalho", necessário se torna determinar o respetivo âmbito de aplicação. É certo que o legislador ordinário veio fornecer uma noção, para efeitos de regulação do direito de participação (Lei n.º 16/79, de 26 de maio; bem como o Código do Trabalho de 2003 e o Código do Trabalho de 2009), mas a concretização operada pela lei não determina o regime jurídico-constitucional. Na verdade, não é ao legislador ordinário que cabe definir os temos da sua própria obrigação (Acórdão n.º 167/2003); em consequência, em abstrato, pode uma violação do sistema de participação definido em lei não implicar a transgressão do comando constitucional (Acórdãos n.º 360/2003 e 374/2004) e, simetricamente, o cumprimento dos trâmites legais não garante por si só a conformidade com o regime jurídico-constitucional (cf. Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", cit., p. 1106). Como se disse no Acórdão n.º 262/90:
«Não é, desde logo, legítimo o preenchimento do conceito constitucional de «legislação do trabalho» por referência ao normativo legal que veio disciplinar o processo de audição das comissões de trabalhadores e associações sindicais (Lei n.º 16/79, de 26 de Maio). A Constituição não se encontra, no «quadro das fontes», ao mesmo nível da legislação ordinária, a lei ordinária não se pode considerar constitutiva do processo constitucional. O suporte normativo da delimitação da extensão do conceito de «legislação do trabalho» será só a Constituição. Quando muito, o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 16/79 (onde se procede a uma enumeração aberta das situações suscetíveis de imprimir às normas que as regulam a qualificação de «legislação do trabalho») fornecerá alguns «subsídios» para a delimitação do conceito constitucional».
Acrescente-se que o ato legislativo disciplinador da participação das organizações representativas dos trabalhadores não constitui uma lei de valor reforçado (Acórdão n.º 374/2004), pelo que o controlo que cabe a este Tribunal é restrito ao cumprimento do comando jusconstitucional (Acórdão n.º 396/2011).
Assim, a “delimitação da noção material de legislação do trabalho deve buscar-se na teleologia das normas constitucionais que atribuem o direito de participação" (cf. Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", cit., p. 1112), o que envolverá invariavelmente a posição jurídica do trabalhador tal como constitucionalmente circunscrito na Constituição do trabalho – excluindo por isso as regras relativas a trabalhadores por conta própria (Acórdão n.º 355/91) ou o estatuto dos dirigentes na Administração Pública (Acórdão n.º 146/92). Isto é, apesar de a Constituição não oferecer um conceito de legislação do trabalho, oferece uma “determinação suficientemente percetível do núcleo essencial do direito em causa, de forma a ele poder ser exercido por parte das entidades a que se destina" (Acórdão n.º 31/84).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem identificando dois aspetos cuja regulação (não necessariamente em ato legislativo – Acórdão n.º 232/90)é abrangida pelo direito de participação: por um lado, a disciplina dos direitos fundamentais dos trabalhadores enquanto tais (e suas organizações) reconhecidos pela Constituição; por outro lado, a normação relativa ao estatuto jurídico dos trabalhadores (incluindo integrados em relações jurídicas de emprego público), designadamente concernente à disciplina do contrato de trabalho – Acórdão n.º 93/92). Na síntese do Acórdão n.º 119/99, “há que incluir dentro da «legislação do trabalho» normas sobre contrato individual de trabalho e relações coletivas de trabalho, organizações representativas de trabalhadores, direito a greve, salário mínimo nacional e horário nacional de trabalho, formação profissional, acidentes de trabalho c doenças profissionais e a ratificação de convenções internacionais, processo laboral, podendo, em geral, afirmar-se que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito abrange a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição". Igualmente neste sentido, entre muitos outros, cf. Acórdãos n.ºs 31/84; 451/87, 107/88, 218/89, 201/90, 203/90, 232/90, 262/90, 61/91, 355/91, 146/92, 124/93, 430/93, 229/94, 581/95, 345/96, 477/98, 173/2001, 368/2002, 167/2003, 360/2003, 104/2004, 626/2011, 828/2017.
Estes dois domínios, aliás, foram desde sempre reconhecidos pelo legislador ordinário, que previu a participação das organizações representativas dos trabalhadores para aprovação de normas que regulem “os direitos e obrigações dos trabalhadores e empregadores, enquanto tais, e as suas organizações" e, bem assim, os diplomas que regulem o “contrato de trabalho" (artigo 2.º da Lei n.º 16/79, de 26 de maio, vigente à data da aprovação do CSC; artigo 469.º do Código do Trabalho, atualmente em vigor). A isto acresce que, ainda que com importantes diferenças quanto ao âmbito do direito de participação para lá destes dois domínios, a doutrina concorda que pelo menos a regulação do contrato de trabalho (i) e a disciplina dos direitos fundamentais dos trabalhadores (ii) estão necessariamente abrangidos pelo conceito de legislação do trabalho – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., p. 724; Jorge Miranda, Funções…, cit., p. 413; Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", cit., p. 1112; Barbosa de Melo, “Discussão Pública pelas Organizações de Trabalhadores de Leis de Autorização Legislativa", Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXXI, n.º 3/4, p. 538; José Manuel Meirim, “A participação das organizações dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho", Revista do Ministério Público, n.º 52, pp. 11 e 15.
Todavia, a jurisprudência constitucional vem restringindo o direito de participação às normas que respeitem «diretamente a regulamentação e efetivação de todos os direitos fundamentais reconhecidos aos trabalhadores na Constituição, mas não já as normas que apenas tutelam indireta e reflexamente esses direitos» (Acórdão n.º 119/99). Por essa razão, excluem-se do conceito de legislação do trabalho as regras que apenas tenham uma repercussão indireta ou reflexa naquela matéria: será o caso das contraordenações em que incorre o empregador por violação de regras laborais (Acórdão n.º 201/90), das normas relativas à cisão das sociedades empregadora, com consequente alteração de identidade do empregador (Acórdão n.º 119/99), das normas de processo do trabalho sobre o valor da ação de impugnação do despedimento (Acórdão n.º 155/92), das leis de amnistia a infrações disciplinares em empresas públicas (Acórdão n.º 152/93) ou das regras sobre a fixação da base de cálculo das pensões de reforma (Acórdão n.º 173/2001).
Ademais, o Tribunal vem estabelecendo ser a participação das organizações representativas dos trabalhadores obrigatória apenas quanto a normas inovadoras, mas já não quanto a regras que deixem inalterado o estatuto dos trabalhadores (cf. Acórdãos n.ºs 157/88, 430/93, 229/94, 259/2001, 167/2003 e 104/2004).
8.2 – Em face deste conceito, a maioria da doutrina tomou posição sobre a qualificação do n.º 2 do artigo 398.º do CSC, na parte que estabelece a caducidade dos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano, como “legislação do trabalho", secundando os julgamentos de inconstitucionalidade por violação do direito de participação das organizações de representação dos trabalhadores.
Foi o caso de Coutinho de Abreu (“Administradores e trabalhadores…", cit., p. 16, e Governação…, cit., p. 67 – «a norma do n.º 2 do art. 398.º, na parte agora em questão, é (formalmente) inconstitucional, por ofensa dos preceitos da CRP que garantem aos organismos representativos dos trabalhadores o direito de participar na elaboração da legislação do trabalho»), Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, 8.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 344 – «O art. 398.º n.º 2, do CSC, na parte em que considera que contrato de trabalho se extingue se tiver durado menos de um ano, é inconstitucional, por não terem intervindo os organismos representativos dos trabalhadores na elaboração do preceito»), Paulo de Tarso Domingues (cit., p. 21 – «apesar de a norma estar sistematicamente localizada num diploma de natureza societária e a propósito do regime legal aplicável aos administradores, ela nada estatui quanto à relação de administração. Com efeito, esta norma regula a sorte da relação laboral do trabalhador que assume o cargo de administrador; a sua estatuição incide sobre a relação laboral [suspendendo-a ou extinguindo-a] e não sobre a relação de administração. Donde, aquela norma não pode deixar de ser materialmente considerada como uma norma de direito do trabalho») e Maria do Rosário Palma Ramalho (Grupos…, cit., p. 525, nota n.º 947, considerando ser acertado o julgamento de constitucionalidade “uma vez que está em causa a criação de uma nova forma de cessação do contrato de trabalho, o que faz deste comando uma norma de conteúdo materialmente laboral").
Na verdade, aplicando à norma os critérios que o Tribunal Constitucional estabeleceu de forma reiterada e uniforme, o estabelecimento de uma causa de caducidade do contrato de trabalho qualifica-se como “legislação do trabalho": por um lado, tendo em conta que é caracterizada como legislação do trabalho a disciplina relativa aos direitos fundamentais dos trabalhadores consagrados na Constituição, a previsão de uma causa de caducidade do contrato liga-se diretamente ao direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53.º da Constituição. Por outro lado, e ainda que assim não fosse, a regulação do contrato de trabalho está abrangida pelo conceito constitucional (Acórdãos n.ºs 345/96 e 178/97). Nesta disciplina compreende-se, pois, o regime da sua celebração, os deveres e obrigações das partes e a cessação do contrato (Acórdão n.º 64/91), incluindo os efeitos em matéria de aposentação (Acórdão n.º 360/2003) e, muito especificamente, a previsão de causas de caducidade do contrato (Acórdão n.º 104/2004).
Por qualquer destes critérios, a introdução de uma causa de caducidade do contrato, enquanto causa da sua extinção, não pode deixar de ser entendida como contida no conceito jurídico-constitucional de legislação do trabalho. Não haverá, provavelmente, outras matérias em que a caracterização como legislação laboral seja tão clara como, justamente, a da regulação da cessação dos contratos de trabalho.
8.3 – Em sentido oposto, porém, podem descobrir-se duas linhas de argumentação divergente, sustentando estar o legislador desonerado da obrigação de promover a participação das organizações representativas dos trabalhadores quanto a esta norma.
Por um lado, e independentemente da questão de saber se a introdução de uma causa de caducidade constitui legislação do trabalho, pode sufragar-se que a norma fiscalizada não é inovadora, não tendo produzido qualquer alteração no regime aplicável. Com efeito, caso se aceite a conceção segundo a qual é impossível a coexistência do vínculo laboral com a posição de administrador, pode defender-se que a regra em crise será somente uma especificação da regra estatuída no regime geral do trabalho [artigo 343.º, alínea b), do Código do Trabalho] segundo a qual caducam os contratos de trabalho “Por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber". Se assim for, a norma fiscalizada não materializa qualquer inovação: o legislador mais não teria feito do que repetir, no Código das Sociedades Comerciais, a regra geral de caducidade por impossibilidade. Razão pela qual não teria introduzido qualquer nova causa de caducidade.
Esta ideia é aflorada por Engrácia Antunes, que entende a impossibilidade definitiva como conceito jurídico, “abrangendo, designadamente, os casos em que a atividade que o trabalhador desempenhava vem a ser proibida por lei ou em que o trabalhador deixa de reunir os requisitos legais exigidos para o desempenho dessa atividade" (cit., p. 88), razão pela qual sustenta ser duvidoso que a estatuição da norma em crise constitua uma inovação face à regra de caducidade geral.
Uma segunda linha argumentativa sustenta que a norma fiscalizada é materialmente comercial, não só pela sua origem e inserção sistemática, mas principalmente pelas finalidades subjacentes, marcadamente societárias, razão pela qual a afetação do contrato de trabalho é meramente reflexa ou mediata (Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2011, p. 924; e Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª Edição, 2011, p. 1063; Engrácia Antunes, cit., pp. 73ss; Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2016, p. 795) Isto é, nesta orientação, a conformidade constitucional é asseverada pela adoção de um conceito mais restrito de “legislação de trabalho", daí excluindo as normas que, visando regular outras matérias, produzem efeitos reflexos no regime laboral.
A favor desta tese invocam-se, essencialmente, três argumentos.
Por um lado, alude-se à inserção sistemática da norma no Código das Sociedades Comerciais e finalidade subjacente (Menezes Cordeiro, ibidem; Olavo Cunha, cit., p. 795) e à circunstância de ela não ser especificamente dirigida ao contrato de trabalho, já que determina também a extinção de contratos de trabalho autónomo (assumam eles o figurino de mandato, prestação de serviços ou outro), denunciando-se o carácter reflexo da afetação do regime laboral (Engrácia Antunes, ibidem).
Em segundo lugar, lembra-se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional apenas classifica como legislação do trabalho as normas que diretamente afetam a posição dos trabalhadores, não tendo considerado abrangidas as regras relativas ao registo e comunicação do trabalho suplementar (Acórdão n.º 203/90) e à elaboração dos mapas de horário de trabalho (Acórdão 262/90), as atribuições e competências dos órgãos administrativos que controlam o cumprimento das regras laborais (Acórdão 355/91), as normas processuais sobre o valor da ação de impugnação do despedimento (Acórdão n.º 155/92), as leis de amnistia a infrações disciplinares em empresas públicas (Acórdão n.º 152/93), as normas sobre o enquadramento jurídico dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Acórdão n.º 229/94) e as normas sobre a fixação da base de cálculo das pensões de reforma (Acórdão n.º 173/2001).
Por fim, invoca ainda Engrácia Antunes que a interpretação contrária (que o Tribunal Constitucional seguiu nos três arestos de fiscalização concreta que motivaram os presentes autos) sempre implicaria a inconstitucionalidade de todas as normas do CSC que se referem a trabalhadores, como as que impõem à administração o dever de ponderar os interesses dos trabalhadores (art. 64.º, n.º 1, al. b)), que preveem o direito dos trabalhadores a consultar o projeto de fusão societária (art. 101.º, n.º 1), que determinam que um projeto de cisão se refira à atribuição da posição contratual da sociedade decorrente dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores (art. 119.º) ou que permite a redução judicial da remuneração dos sócios gerentes quando seja gravemente desproporcionada (art. 255.º) – cit., pp. 82 e 100 e ss.. Ademais, sustenta o Autor que a teoria dos limites imanentes sempre permitiria considerar excluído o direito de participação no que concerne a normas materialmente comerciais (ou, pelo menos, a sua restrição, nos termos gerais) – cit., p. 107.
Ainda que a maioria da jurisprudência haja recusado aplicar a norma em crise depois dos julgamentos de inconstitucionalidade (cf. Acórdão da Relação de Guimarães 16.02.2007, proc. 2443/ 16.9T8VNF.G1), a orientação ora exposta tem algum respaldo jurisprudencial, tendo sido seguida pelo STJ no Acórdão de 13.12.2006 (“não obstante a jurisprudência conhecida do Tribunal Constitucional, não vislumbramos que a norma em apreço, no segmento que determina, nos termos sobreditos, a extinção do contrato de trabalho, viole a Constituição da República Portuguesa, designadamente os seus arts. 54, n.º 5, alínea d) e 56.º, n.º 2, al. a), pois não está aqui em causa a criação de qualquer novo regime jurídico laboral ou de qualquer legislação laboral que venha regular as relações laborais, mas tão só matéria importante do foro comercial com reflexos no contrato de trabalho"), e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 29.01.2014 (“a previsão do n.º 2 do artigo 398.º do CSC visa disciplinar as sociedades, não na área laboral, mas sim na sua vida societária pois pretende uma especificação à regulação da administração dessa mesma sociedade, não estando em causa qualquer tipo de direitos ou deveres de trabalhadores, nem desenvolvendo o regime do contrato de trabalho, inclusive a sua cessão, razão pela qual esta norma nunca foi incluída no Código do Trabalho, trata-se antes de uma norma própria do Código das Sociedades Comerciais, constituindo uma norma especial para uma situação especial, não ofendendo nenhuma disposição ou princípio constitucional").
Importa tomar posição sobre o problema.
8.4 – Quanto à primeira conceção (segundo a qual a norma em crise não reveste carácter inovador, por ser mera repetição da caducidade por impossibilidade), a argumentação não colhe.
Em primeiro lugar, repare-se que o ordenamento jurídico prevê expressamente a viabilidade de manutenção do vínculo contratual com a designação para administrador na primeira parte do n.º 2 do artigo 398.º CSC, ao determinar a suspensão dos contratos celebrados há mais de um ano. Ora, se o ordenamento jurídico autoriza a conservação do vínculo laboral, está afastada a tese de que seria definitivamente impossível a sua subsistência, faltando assim um dos requisitos do regime geral de caducidade do contrato de trabalho. Pelo que, necessariamente, o legislador introduziu uma causa de caducidade distinta da “impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber" (art. 343.º, alínea b), do Código de Trabalho).
Ademais, “a entender-se que [a] mencionada proibição expressaria a incompatibilidade entre a natureza da prestação do administrador e a de trabalhador subordinado, ela teria de abranger os cargos diretivos noutros tipos societários, maxime, os gerentes das sociedades por quotas, porquanto não existem diferenças estruturais entre aqueles cargos" (Luís Miguel Monteiro, “Anotação ao artigo 161.º", Código do Trabalho Anotado, org. por Pedro Romano Martinez, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 424). Ora, como se viu, só por analogia (que é doutrinalmente debatida) se pode mobilizar o regime fiscalizado a tais tipos sociais, atestando não existir uma impossibilidade definitiva de conservação do vínculo laboral.
Em segundo lugar, não pode olvidar-se que, ao tempo em que o ordenamento jurídico não continha normas sobre a designação de trabalhador para a administração de uma sociedade anónima, a jurisprudência infraconstitucional concluía pela subsistência do contrato de trabalho. A positivação da extinção dos contratos de trabalho por força da designação como administrador – indiscutivelmente uma inovação do legislador de 1987 (cf. José Engrácia Antunes, cit., pp. 11 e 39) – significou, por isso, a introdução ex novo daquele efeito jurídico.
Efetivamente, até essa data a doutrina e a jurisprudência oscilavam entre a manutenção da plena eficácia do contrato de trabalho (Inocêncio Galvão Telles, “Anotação ao Acórdão do STJ de 21 de Abril de 1972", O Direito, Ano 104, 1972, p. 338; Acórdãos do STJ de 04.02.1972, BMJ, n.º 214, 1972, p. 103), a suspensão automática do contrato de trabalho (Acórdão do STA de 18.01.1972, Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 124, p. 535; Acórdão do STJ de 07.02.1986, BMJ, n.º 354, 1986, pp. 385 e 387; e Acórdão do STJ de 22 de outubro de 1997, publicado na Coletânea da Jurisprudência – Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, Tomo III, 1997, p. 271) ou a ponderação da viabilidade de manutenção da eficácia do vínculo laboral ou sua suspensão, por atenção às funções desempenhadas (Luís Brito Correia, Os Administradores…, cit., p. 588). Não se conhece qualquer decisão que houvesse concluído pela sua cessação, mesmo quando se concluía pela regra da incompatibilidade (cf. Acórdãos do STJ de 15.10.1980, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 300, 1980, p. 229, e de 16.12.1983, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, 1984, p. 420). O que é tanto mais relevante se se recordar que o regime de cessação do contrato de trabalho vigente até 1987 (Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de julho, com alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 84/76, de 28 de Janeiro, e n.º 841-C/76, de 7 de Dezembro, e pela Lei n.º 48/77, de l de Novembro) já previa a causa de caducidade por impossibilidade ora consagrada no Código do Trabalho (art. 8.º, n.º 1, alínea b)) sem que isso houvesse motivado a extinção de contratos de trabalho por efeito da designação de certo trabalhador como administrador.
Isto é, se a suspensão dos contratos de trabalho em curso – ainda que sem norma positivada – era uma resposta dada pelo sistema jurídico (quer aqueles houvessem sido celebrados há mais ou menos de um ano), a regra ora em crise materializou uma novidade do Código das Sociedades Comerciais. Como se disse no Acórdão do STJ de 22 de Outubro de 1997, “Antes da entrada em vigor do CSC vinha-se entendendo que, embora na lei nada impedisse que um trabalhador desempenhasse as funções de administrador, sem deixar de ter aquela qualidade, entendia-se como mais correto que o contrato de trabalho se suspendesse durante o período em que se exercessem as funções de administrador, independentemente da duração do contrato na altura da nomeação como administrador (cf. Acórdãos deste Supremo de 17/12/1983, 7/2/1986 e de 17/10/1986, em BMJ n.º 332/418, 254/380 e 360/499)", razão pela qual se concluiu que “o n.º 2 do art 398.º, em relação aos trabalhadores com um contrato com menos de um ano de vigência, veio acrescentar uma nova causa de caducidade. E apesar do estatuído na alínea b) do n.º 1 do art. 8.º [do Decreto-Lei n.º 372-A/75 – Lei dos Despedimentos], não pode a extinção do contrato prevista naquele n.º 2 aí se enquadrar, pois essa situação não preenche um dos seus requisitos: a impossibilidade definitiva" – cf. Coletânea da Jurisprudência – Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, Tomo III, 1997, pp. 271-272.
Por fim, deve ainda atender-se ao elemento histórico. Como ensina Raul Ventura (“Nota sobre a interpretação…", cit., p. 263), “Em Portugal tinha começado, pelo menos na década de 80, em algumas sociedades, a nomeação de administradores, durante o exercício desse cargo para funções (geralmente de quadros – por exemplo diretores) na mesma sociedade ou em sociedades daquela dependentes. A fim de evitar possíveis dificuldades jurídicas, esses contratos de trabalho previam que o seu início coincidiria com o termo das funções de administrador, por qualquer motivo. A intenção dessa prática é tão óbvia, que desnecessita explicações, mas era uma prática repugnante, pois implicava o aproveitamento do cargo de administrador para garantir o seu futuro, à custa da sociedade administrada". Ainda que esta preocupação se ligue, em primeira linha, ao n.º 1 do artigo 398.º do CSC (proibindo a aquisição do vínculo laboral pelo administrador), a previsão da regra fiscalizada – determinando a extinção dos contratos celebrados pouco antes do início das funções sociais – associa-se decisivamente à prevenção daquela prática, envolvendo aqueles contratos recentes no mesmo regime. Nestes termos, parece claro que o legislador interveio inovatoriamente para erradicar uma prática que, ao tempo da aprovação da norma, se vinha verificando ser permitida: “É manifesta a preocupação de evitar celebrações de contratos de trabalho com datas muito próximas da designação. e presumivelmente fraudulentos, para conseguir a manutenção, após cessar o cargo de administrador" (Raul Ventura, ibidem, p. 264).
Tanto basta para concluir, no seguimento dos Acórdãos n.ºs 1018/1996, 626/2011 e 53/2019 (que confirmou a Decisão Sumária n.º 778/2018), que a norma fiscalizada introduziu uma nova causa de caducidade do contrato, que não se confunde com a impossibilidade definitiva de prestação laboral.
8.5 – Quanto à segunda linha argumentativa, a questão que se põe é a de saber se a norma em crise, porque o seu escopo é societário (garantir a exclusividade dos administradores) e só reflexamente produz efeitos no contrato de trabalho, pode ficar fora do âmbito de legislação do trabalho. O argumento não procede.
Desde logo, deve sublinhar-se que a norma ora em crise “não tem por objeto a relação entre sociedade e administrador, enquanto administrador, mas a (im)possibilidade da coexistência daquele vínculo com outra relação jurídica de trabalho" (Luís Miguel Monteiro, “Anotação…", cit., p. 423, e “Regime…", cit., p. 513), pelo que é muito discutível que a sua matriz societária decorra somente da ratio legis ligada à governação das sociedades comerciais. Com efeito, e por comparação com outros ordenamentos jurídicos, torna-se claro que a opção legislativa foi a de atuar no contrato de trabalho em detrimento de outras eventuais soluções, igualmente dirigidas a assegurar o princípio de incompatibilidade, com matriz efetivamente societária. Atente-se, a título de exemplo, no artigo 93.º da Lei das Sociedades Comerciais francesa de 1966 – Loi n.º 66-573 du 24 juillet de 1966 sur les sociétés commerciales (entretanto revogada pela Lei Madelin): “Nesta, um trabalhador não pode ser designado administrador senão quando o seu contrato de trabalho for anterior em pelo menos dois anos a sua designação. A designação como administrador em violação dessa regra é nula, subsistindo, no entanto, o contrato de trabalho. Pelo contrário, perante a lei portuguesa, o efeito da designação como administrador de um trabalhador cujo contrato de trabalho tenha duração inferior a um ano não é a nulidade da designação mas a extinção do contrato de trabalho" (Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 307). Isto é, enquanto que o legislador francês interveio na relação jurídico-societária, determinando a nulidade da designação como administrador, a norma ora em crise produz efeitos no contrato de trabalho, fazendo-o caducar (Raul Ventura, “Nota sobre a interpretação…", cit., p. 263). O que torna difícil de aceitar que o escopo societário é suficiente para a qualificação da regra como comercial, apenas reflexamente produzindo efeitos no estatuto laboral.
Tendo o legislador intervindo no regime do contrato de trabalho (estatuindo uma causa de caducidade), ainda que com um escopo marcadamente societário, resta saber se essa atuação deve ter-se como meramente reflexa ou mediata. Com efeito, é incontroverso que a jurisprudência do Tribunal Constitucional restringe o direito de participação às normas que diretamente influam no estatuto dos trabalhadores, sendo esse o “conceito constitucionalmente adequado de legislação do trabalho" (Acórdãos n.ºs 203/90 e 263/90).
De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, o carácter direto da afetação é apreciado pelos seus efeitos: apenas se considera legislação do trabalho aquela que se repercuta diretamente na situação jurídica dos trabalhadores, motivando por isso a participação das suas organizações representativas (Acórdão n.º 203/90). Na síntese do Acórdão n.º 355/91:
“[…] normas que regulam diretamente as relações individuais (cujos sujeitos são o trabalhador e a entidade patronal, e cujo facto determinante é o contrato de trabalho celebrado entre estes) e coletivas de trabalho (em que os sujeitos da relação individual aparecem considerados no ângulo das categorias em que se inserem) e bem assim os direitos dos trabalhadores enquanto tais (v.g. direito à retribuição, a férias, ao horário de trabalho e descanso semanal, à segurança e higiene mio trabalho etc.) e suas organizações (os direitos das associações sindicais e das comissões de trabalhadores, previstos na Lei Fundamental). Noutros termos, no conceito de legislação do trabalho cabem as normas que respeitem diretamente à regulamentação e efetivação de todos os direitos fundamentais reconhecidos aos trabalhadores na Constituição seja a título de direitos liberdades e garantias, seja a título de «direitos económicos, sociais e culturais». Mas já não são abrangidas no conceito constitucional de «legislação laboral» aquelas disposições normativas que apenas tutelam indireta ou reflexamente os direitos fundamentais dos trabalhadores como sejam entre outras, as normas que se referem à organização administrativa do trabalho, às atribuições dos serviços e competências dos órgãos administrativos que têm a seu cargo o controlo da observância das normas jurídico-laborais pelos seus destinatários e ao regime jurídico da punição da infração aos preceitos laborais".
Deste modo, porque na regulação do contrato de trabalho se encontra o regime da extinção do contrato – enquanto matéria essencial da sua disciplina – o efeito jurídico da norma em crise afeta diretamente a relação individual de trabalho (Acórdão n.º 104/2004). O que faz da norma fiscalizada uma regra radicalmente distinta dos exemplos do CSC que Engrácia Antunes invoca deverem ser tidos como legislação do trabalho caso se aceitasse tal qualificação para esta norma (direitos dos trabalhadores à informação quanto à gestão da sociedade; normas relativas à ponderação do interesse dos trabalhadores pela administração) ou daqueles que o Tribunal Constitucional excluiu da participação (obrigações ao empregador de registo e comunicação às autoridades públicas do trabalho suplementar e dos mapas de horário de trabalho; regras processuais sobre o valor da ação de impugnação do despedimento; leis de amnistia que abrangem infrações laborais – cf., respetivamente, Acórdãos n.ºs 203/90; 262/90 e 155/92; 152/93). Diferentemente do que sucede em todos estes exemplos, a norma em crise não se limita a ter como destinatários os trabalhadores; ao invés, introduz uma causa de extinção da relação jurídico-laboral. O que é tido, justamente, como uma das matérias que dizem diretamente respeito ao estatuto jurídico-laboral (Acórdãos n.º 64/91 e 104/2004).
Mas ainda que assim não fosse, a sua qualificação como legislação de trabalho ainda poderia aceitar-se por força do segundo critério – as normas que regulam os direitos fundamentais dos trabalhadores constitucionalmente consagrados. Na verdade, a estatuição de uma causa de extinção do contrato de trabalho liga-se ao direito fundamental à segurança no emprego, garantido pelo artigo 53.º da Constituição. Não de forma reflexa ou mediata, mas diretamente, disciplinando as circunstâncias de extinção do contrato de trabalho. Nessa medida – e independentemente da sua compatibilidade material com a Constituição-, a regra fiscalizada poderia ainda estar abrangida pelo conceito jurídico-constitucional de legislação do trabalho, sujeitando-se por isso ao respetivo procedimento legislativo.
Em suma, uma norma que introduz uma causa de extinção do contrato de trabalho não pode deixar de considerar-se como específica, direta e materialmente laboral, para efeitos do direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores.
9 – No que concerne à concretização do direito de participação, a Constituição não transfere o poder decisório para as organizações representativas dos trabalhadores, apenas lhes conferindo o direito de, mediante as suas propostas, exercerem uma influência no conteúdo da legislação do trabalho através da sua audição em momento prévio à sua aprovação. O órgão legiferante não está, todavia, forçado a contemplar as propostas formuladas, ficando tão-somente na “obrigação de as tomar em consideração, acolhendo apenas aquelas que o justifiquem" (Parecer da Comissão Constitucional n.º 18/78; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 22/86; Acórdãos n.º 31/84, 124/93, 430/93; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., p. 723; Jorge Miranda, Funções, órgãos e actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 257; Pedro Machete, cit., p. 358; Nadir Palha Bicó, “O direito de participação das comissões de trabalhadores e das associações sindicais na legislação do trabalho", Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, Lisboa, 1993, p. 202; Alexandre Sousa Pinheiro, “O Governo: organização e funcionamento, reserva legislativa e procedimento legislativo", Revista Jurídica, n.º 23, 1999, p. 217; José Manuel Meirim, cit., p. 29; Jorge Bacelar Gouveia, “Os direitos de participação dos representantes dos trabalhadores na elaboração da legislação laboral", Novos Estudos de Direito Público, Âncora, Lisboa, 2002).
Nestes termos, perante uma norma qualificada como legislação do trabalho, importa saber se aquela audição teve lugar. Quanto a este problema, o Tribunal Constitucional vem considerando, de modo reiterado e uniforme, que a ausência de qualquer menção à participação das organizações representativas dos trabalhadores nos preâmbulos dos diplomas legais, presume que ela não ocorreu (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 31/84, 451/87, 201/90, 203/90, 232/90, 61/91, 355/91, 24/92, 93/92, 124/93, 229/94, 609/94, 109/95, 581/95, 345/96, 713/96, 178/97, 477/98 e 368/2002), presunção essa que pode ser ilidida pelo autor da norma (cf. Acórdãos n.º 93/92, 430/93, 609/94, 109/95, 713/96, 178/97). Do mesmo passo, a menção no preâmbulo da participação das organizações de trabalhadores gera a presunção de que aquela teve lugar, cabendo a estas afastá-la (Acórdão n.º 104/2004).
Ora, não constando do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro (que aprova do Código das Sociedades Comerciais, qualquer referência à audição prévia das organizações representativas dos trabalhadores, caberia ao autor da norma ilidir a presunção – cf. Acórdão n.º 93/92 e José Manuel Meirim, cit., p. 25). Tendo o Primeiro-Ministro, apesar de notificado, simplesmente oferecido o merecimento dos autos, não se pode ter por afastada tal presunção. Deve, pois, considerar-se preterida aquela obrigação constitucional, inquinando a norma de um vício de natureza formal.
10 – Quanto aos efeitos da preterição da participação das organizações representativas dos trabalhadores, o Tribunal Constitucional optou decisivamente pela tese da inconstitucionalidade, de forma “clara e única" (José Manuel Meirim, cit., p. 32). A jurisprudência do Tribunal Constitucional é unânime quanto a este problema, cominando com a inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento, a violação do direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores – cf., entre muitos, Acórdãos n.ºs 31/84, 451/87, 107/88, 157/88, 218/89, 232/90, 61/91, 64/91, 24/92, 93/92, 124/93, 430/93, 345/96, 360/2003. Também na doutrina, a tese da inconstitucionalidade encontra amplo consenso (Gomes Canotilho, cit., p. 1322; Jorge Miranda, Manual…, tomo VI, cit., p. 195; Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", cit., p. 1108, e “Valores jurídicos…", cit., p. 544; Pedro Machete, cit., p. 364; José Manuel Meirim, cit., p. 11; Bernardo Lobo Xavier, “A Constituição portuguesa como fonte do direito do trabalho e os direitos fundamentais dos trabalhadores", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Professor Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, p. 189; José João Abrantes, O Direito do Trabalho e a Constituição, Lisboa, AAFDL, 1990, p. 27.
Todavia, apesar de constituir um vício de natureza formal, a inconstitucionalidade assim gerada não implica necessariamente a invalidade de todo o ato normativo, afetando somente as normas que se qualifiquem como legislação do trabalho (Gomes Canotilho, cit., p. 960).
Pode, porém, questionar-se a bondade da apreciação a todo o tempo deste vício procedimental.
Na verdade, porque a fiscalização do procedimento legislativo pode ocorrer temporalmente muito desfasada do momento em que as normas foram aprovadas, é discutível a sua adequação: “Fará sentido que muitos anos depois de publicado, um diploma seja sujeito a escrutínio por não terem sido ouvidas algumas organizações representativas dos trabalhadores?" (Bernardo Lobo Xavier, “A jurisprudência…", cit., p. 233, nota n.º 66). É neste quadro que se vem alvitrando que o controlo da participação das organizações de trabalhadores seja submetido a um prazo ou que se venha a estabelecer um princípio de caso julgado negativo para os casos em que o Tribunal Constitucional tenha concluído pela não inconstitucionalidade formal (ibidem).
Independentemente da valia destas propostas, certo é que apenas são configuráveis de iure condendo, não podendo o Tribunal Constitucional, em face do ordenamento jurídico vigente, recusar-se a fiscalizar o cumprimento dos trâmites procedimentais de formação normativa, mesmo muitos anos depois da aprovação das regras sob fiscalização. Aliás, o Tribunal Constitucional por várias vezes concluiu pela inconstitucionalidade decorrente da violação do direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores apesar de o procedimento legislativo ter decorrido muitos anos antes da fiscalização (cf. Acórdãos n.ºs 178/97 [10 anos], 477/98 [14 anos], 24/92 [15 anos] e 517/98 e 634/98 [20 anos]). A ponderação que o Tribunal pode fazer desta dissociação temporal radica no instituto da limitação de efeitos (art. 282.º, n.º 4, da Constituição), “o qual permite atribuir relevância à diferente gravidade do vício que, no caso concreto, afeta a lei inconstitucional e, segundo parte da doutrina, consente inclusivamente uma limitação de efeitos in futuro ou, inclusivamente, uma decisão de provimento fictício" (Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 56.º", cit., p. 1109).
Será este, justamente, o caso. Desde a data da entrada em vigor da norma fiscalizada (há mais de 30 anos), podem ter caducado vários contratos de trabalho em execução da norma em apreço. Da declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc (artigo 282.º, n.º 1, da Constituição) resultaria a invalidade ou inexistência da caducidade desses contratos de trabalho.
E, independentemente da questão de saber se todos esses casos poderiam ainda vir a ser judicialmente apreciados, a verdade é que se suscitaria uma situação de indesejável insegurança jurídica. Nestes termos, e pesando também a gravidade do vício, é inteiramente justificável que, por razões de equidade e de segurança jurídica, sejam ressalvados os efeitos produzidos até à data da publicação da declaração de inconstitucionalidade, usando da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição.
11 – Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente à data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro); e
b) Limitar, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, os efeitos da inconstitucionalidade declarada na alínea anterior, de modo a que se produzam apenas a partir da publicação do presente Acórdão.