Doutrina Administrativa
Tributação do consumo

Processo n.º 6691

 

Assunto
Cessões a título oneroso ou gratuito de estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele.
Tipo: Informações Vinculativas
Data: 16 de Maio, 2014
Número: 6691
Diploma: CIVA

Doutrina

Cessões a título oneroso ou gratuito de estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele.

Tendo por referência o pedido de informação vinculativa solicitada, ao abrigo do art.º 68.º da Lei Geral Tributária (LGT), por «….A…», presta-se a seguinte informação.

I – Do pedido
1.
A exponente é uma sociedade de Direito Português, cujo objeto social consiste no "fabrico e comércio de medicamentos e outros produtos relacionados com a saúde e a higiene".

2. Conforme resulta da exposição apresentada, em virtude de um processo de reorganização e de reavaliação dos diversos ativos detidos pelo Grupo XX a nível internacional, foi entendido como prioritário centrar a estratégia de investimento e crescimento nas atividades em que o grupo assume uma posição de destaque, nas quais não se integra a unidade de negócio responsável pela atividade de diagnóstico clínico.

3. A exponente refere no ponto 9 da sua Descrição dos Factos que "(n)este contexto, o Grupo XX deu início a um processo de venda dos diversos ativos (e.g. partes de capital, ativos fixos tangíveis, direitos de propriedade inteletual, marcas, licenças, patentes, etc.) e passivos (e.g. dívidas e responsabilidades) afetos, à escala mundial (incluindo Portugal), à atividade de diagnóstico clínico".

4. "No âmbito deste processo de venda, o XX decidiu vender o ramo de atividade atrás referido ao Grupo YY (…)", cf. ponto 10 da Descrição dos Factos.

5. No ponto 11 da citada Descrição dos Factos, a exponente menciona que "(a)o abrigo deste contrato a celebrar entre a sua sociedade-mãe e o Grupo YY, a Exponente encontrar-se-á obrigada a transferir todos os ativos, passivos, direitos e interesses relevantes afetos à atividade de diagnóstico clínico para a entidade adquirente".

6. E esclarece no ponto 12 da mesma exposição que "(a)través da compra deste ramo de atividade e dos diversos ativos que o compõem, o Grupo YY e as suas subsidiárias estarão em condições de continuar a desenvolver a atividade de diagnóstico clínico nos mesmos moldes que esta atividade tem vindo a ser conduzida pelo Grupo XX".

7. O Grupo YY adquire, portanto, o ramo de atividade de diagnóstico clínico (e não a sociedade que desenvolve, atualmente, essa atividade), constituindo, para o efeito, sociedades para exercer especificamente aquela atividade. Em Portugal, está em processo de constituição a ZZZ.

8. Serão transferidas para esta sociedade em processo de constituição ZZZ, as diversas rubricas que atualmente a exponente tem registadas no seu balanço e que se encontram afetas à atividade de diagnóstico clínico, designadamente:
a. Clientes (com excepção dos saldos de clientes, que se mantêm na titularidade da exponente);
b. Fornecedores;
c. Ativo fixo tangível (e.g. equipamentos de diagnóstico);
d. Inventários;
e. Responsabilidades assumidas perante os seus futuros trabalhadores (e.g. decorrentes de planos de pensões atribuídos aos trabalhadores);

9. No âmbito desta operação, a ZZZ assumirá, ainda, a posição de empregador em todos os contratos de trabalho dos trabalhadores da exponente afetos ao desenvolvimento da atividade de diagnóstico clínico.

10. A ZZZ será um sujeito passivo normal de IVA, que irá realizar operações sujeitas a este imposto e que conferirão direito à dedução.

11. A exponente refere, ainda, que irá prestar à ZZZ um conjunto de serviços de "back office", de cariz administrativo e financeiro (e.g. contabilidade e finanças, cumprimento de obrigações fiscais e regulatórias), durante um período transitório, e que essa prestação de serviços, com cariz secundário face ao objeto da atividade transmitida, não prejudica a caraterização da operação como transmissão de um verdadeiro ramo de atividade autónomo.

12. Como suporte da transferência do ramo de atividade de diagnóstico clínico para a ZZZ, a exponente irá emitir a fatura devida.

13. Em face da situação exposta, pretende confirmar se a cedência a título definitivo do ramo de atividade de diagnóstico à ZZZ, porque configura um ramo de atividade independente, beneficia do regime de exclusão de tributação previsto no n.º 4 do artigo 3.º e no n.º 5 do artigo 4.º do CIVA.

II – Proposta de enquadramento jurídico-tributário
14.
A exponente apresentou a sua proposta de enquadramento, cuja parte com maior relevo se transcreve:
"1. Entende a Exponente que o enquadramento jurídico-tributário a conferir, em sede de IVA, ao trespasse do estabelecimento comercial em causa no presente pedido de informação vinculativa é uma matéria que não se revela de especial complexidade.

2. Com efeito, o enquadramento jurídico-tributário aqui proposto decorre da interpretação das normas contidas no Código do IVA, maxime do disposto nos seus artigos 3.º e 4.º. (…)

III. ENQUADRAMENTO PROPOSTO
28. Nestes termos, vem a Exponente propor o seguinte enquadramento jurídico-tributário em sede de IVA relativamente à operação a realizar entre a Exponente e a ZZZ e que se traduz na celebração de um contrato por efeitos do qual ocorre a transmissão definitiva de uma universalidade de bens e/ou de direitos:
a) Considerando que são transmitidos por efeitos do contrato a celebrar entre a Exponente e a ZZZ, designadamente: (i) Clientes (com exceção dos saldos de clientes, que se mantêm na titularidade da Exponente); (ii) Fornecedores; (iii) Ativo fixo tangível (e.g. equipamentos de diagnóstico); (iv) Inventários; (v) Responsabilidades assumidas perante os seus futuros trabalhadores (e.g. decorrentes de planos de pensões atribuídos aos trabalhadores).
b) Considerando que as normas do n.º 4 do artigo 3.º e do n.º 5 do artigo 4.º, ambos do Código do IVA, prevêem uma ficção de não transmissão que se traduz na não liquidação do IVA, cuja aplicação depende da verificação dos seguintes pressupostos: (i) Estar em causa a cessão definitiva, a título oneroso ou gratuito de um estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de parte dele; (ii) Ser o objeto da transmissão (leia-se, o estabelecimento comercial, totalidade de um património ou parte dele) suscetível de constituir um ramo de atividade independente; e (iii) O adquirente ser, ou vir a ser por efeitos da aquisição, um sujeito passivo de IVA para efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Código do IVA.
c) Considerando que está em causa a cessão definitiva a título oneroso de uma parte do património da Exponente, verifica-se o primeiro pressuposto de que depende o afastamento da liquidação do IVA.
d) Considerando ademais que o objeto da transmissão constitui, indubitavelmente e como ficou demonstrado, um ramo de atividade independente, verifica-se o segundo pressuposto de que depende o afastamento da liquidação do IVA previsto nos artigos 3.º n.º 4 e 4.º n.º 5 do Código do IVA.
e) Considerando, ainda que, por efeitos do contrato a celebrar entre a Exponente e a ZZZ, esta sociedade estará em condições de prosseguir a atividade de diagnóstico clínico nos mesmos moldes que esta atividade tem vindo a ser conduzida pelo Grupo XXX ao qual a Exponente pertence.
f) Considerando que a ZZZ, transmissária na operação em apreço, será, por efeitos da transmissão a realizar, um sujeito passivo de IVA, verifica-se o terceiro pressuposto de que os artigos 3.º, n.º 4 e 4.º n.º 5 do Código do IVA fazem depender o afastamento da liquidação do IVA aí previsto.
g) Assim, na medida em que todos os pressupostos enunciados nos artigos 3.º, n.º 4 e 4.º, n.º 5 do Código do IVA e dos quais depende o afastamento da liquidação do IVA na transmissão se encontram plenamente verificados in casu, deve ser admitido que a operação em causa se enquadra no âmbito de aplicação daqueles preceitos e, em consequência, a Exponente não deverá liquidar IVA na transmissão."

III – Análise do pedido
15.
O artigo 19.º, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro, usualmente designada por Diretiva IVA, concede a possibilidade aos Estados membros de estabelecerem que a transmissão de uma universalidade de bens ou parte dela não é considerada uma transmissão de bens.

16. Daqui resulta que, quando um Estado membro tenha feito uso desta faculdade, aquela transmissão não é considerada uma transmissão para efeitos da Diretiva e, consequentemente, não é sujeita a imposto.

17. Ao abrigo do segundo parágrafo da mesma disposição, e a fim de evitar distorções de concorrência, os Estados membros podem excluir da aplicação desta regra de não sujeição as transmissões de uma universalidade de bens a um adquirente que não seja considerado sujeito passivo nos termos da Diretiva ou que apenas atua como tal em relação a uma parte das suas atividades.

18. Por sua vez, o artigo 29.º da Diretiva IVA manda aplicar o disposto no seu artigo 19.º, nas mesmas condições, às prestações de serviços.

19. O conceito de "transferência de uma universalidade de bens ou parte dela" já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no Acórdão proferido, em 27 de novembro de 2003, no Processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange "a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma actividade económica autónoma, mas que não abrange a simples cessão de bens como a venda de stock de produtos."

20. Como resulta das conclusões do Advogado-Geral do citado acórdão, o conceito da "«parte de uma universalidade de bens» não se refere a um ou mais elementos singulares que compõem o estabelecimento como um todo, mas sim a uma combinação deles que seja suficiente para permitir o exercício de uma actividade económica, mesmo que esta actividade seja apenas um ramo de actividade mais ampla de que esta tenha sido destacada."

21. Este dispositivo de simplificação visa permitir aos Estados membros facilitar as transmissões de empresas ou de partes de empresas, evitando sobrecarregar a tesouraria do adquirente através de um encargo fiscal excessivo que, de qualquer forma, ele viria a recuperar através da dedução do IVA pago a montante.

22. Conforme referiu, ainda, o Advogado-geral nas suas conclusões, este tratamento especial justifica-se especialmente "porque o montante do IVA a ser adiantado por efeito da transmissão pode ser particularmente importante relativamente aos recursos do estabelecimento em questão".

23. O Código do IVA acolheu a faculdade conferida, à data, pelo artigo 8.º n.º 5 da Sexta Diretiva, prevendo no artigo 3.º n.º 4 do Código do IVA (doravante também designado CIVA) que "(n)ão são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º ".

24. O artigo 3.º n.º 5 do mesmo Código esclarece que "(p)ara efeitos do número anterior (n.º 4 do artigo 3.º), a administração fiscal adota as medidas regulamentares adequadas, nomeadamente a limitação do direito à dedução, quando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas."

25. E o artigo 4.º n.º 5 do Código do IVA prevê, também, que o "disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 3.º é aplicável, em idênticas condições, às prestações de serviços".

26. O artigo 3.º n.º 4 do CIVA, traduz-se, portanto, numa delimitação negativa da incidência do imposto, que abrange as cessões a título definitivo da totalidade de um património, que poderão englobar quer a cedência de elementos corpóreos quer de incorpóreos, recorrendo, para estes, à aplicação, em simultâneo, do disposto no n.º 5 do artigo 4.º, o qual manda aplicar, "em idênticas condições", às prestações de serviços o disposto naquele artigo, na medida em que a cedência de direitos consubstancia uma prestação de serviços, nos termos do Código do IVA, por força do conceito de "transmissão de bens" prevista no artigo 3.º n.º 1 do CIVA e do caráter residual do conceito de prestação de serviços previsto no artigo 4.º.

27. As disposições do n.º 4 do artigo 3.º e n.º 5 do artigo 4.º supra identificadas consagram, deste modo, um regime excecional dentro da mecânica do imposto sobre o valor acrescentado, consubstanciando medidas de simplificação, cujo objetivo é não criar obstáculos à transmissão de realidades empresariais no seu todo ou, pelo menos, dos seus elementos destacáveis como unidades independentes (p. ex: trespasse de estabelecimento comercial, transformação de uma exploração individual em sociedade ou a operação inversa, fusão, cisão ou transformação de sociedades).

28. A existência desta norma tem como fundamento, quer a continuidade do exercício da atividade transferida, quer a irrelevância que a tributação dessa transmissão teria ao nível da economia do imposto, isto é, sendo o adquirente um "sucessor" do transmitente o imposto que viesse a ser liquidado conferiria ao primeiro, nos termos do artigo 19.º e seguintes do CIVA, direito à dedução, sendo o resultado equivalente ao que se consegue com esta norma de exclusão de tributação.

29. No entanto, apenas está em condições de beneficiar da não sujeição a imposto a transmissão de um todo, ou parte de um todo, que constitua de per si uma atividade de negócio autónoma e independente, que reúna os elementos indispensáveis ao desenvolvimento dessa atividade por parte do adquirente, sendo assim possível, numa ótica de continuidade, manter e desenvolver a atividade subjacente à unidade alienada.

30. Neste contexto e tendo presente a letra da lei, considera-se que uma operação é enquadrável no âmbito da citada norma de delimitação negativa da incidência do imposto, se se verificarem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
(i) Existência de uma cessão a título definitivo;
(ii) O objeto da transmissão consistir num conjunto de ativos suscetíveis de permitir o prosseguimento de uma atividade económica independente; e
(iii) O adquirente ser ou vir a ser sujeito passivo de imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha a intenção de explorar o estabelecimento ou parte de património e não simplesmente liquidar a atividade ou vender os stocks, conforme resulta da parte final do ponto 1) da Parte Decisória do citado acórdão Zita Modes.

31. No caso sob análise e de acordo com a informação prestada no processo constata-se que:
i) A exponente vai vender ao grupo YYY, a nível mundial, os ativos e passivos afetos à atividade de diagnóstico clínico;
ii) O grupo YYY está a constituir, em Portugal, a sociedade ZZZ, para a qual a exponente transfere as diversas rubricas registadas no seu balanço e que se encontram, atualmente, afetas à atividade de diagnóstico clínico;
iii) A ZZZ será um sujeito passivo normal de IVA, que irá realizar operações sujeitas a imposto e que conferem direito à dedução;
iv) A exponente irá prestar à ZZZ um conjunto de serviços de "back office" de cariz administrativo e financeiro, durante um período transitório, serviços estes que são comummente subcontratados a entidades externas;
v) A exponente emitirá uma fatura destinada a suportar a transferência para a ZZZ do ramo de atividade de diagnóstico clínico.

32. O conjunto de serviços, denominados de "back office" e que se traduzem, como refere a exponente, em serviços de contabilidade, finanças, cumprimento de obrigações fiscais e regulatórias, prestados por si à ZZZ não obstam a que se considere que o património transmitido constitua um ramo de atividade autónomo.

33. Neste contexto e no sentido do entendimento proposto pela exponente, verificando-se que o património transmitido é susceptível de constituir um ramo de atividade autónomo e uma vez que o adquirente será um sujeito passivo de imposto dos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, a operação que consiste na transmissão para a ZZZ do património elencado no ponto 28 do enquadramento proposto por parte da exponente, beneficia do regime de exclusão preconizado no n.º 4 do artigo 3.º e do n.º 5 do artigo 4.º, ambos do CIVA.

IV – Conclusão
34.
A aplicação do artigo 3.º n.º 4 e 4.º n.º 5 ambos do Código do IVA depende da verificação dos seguintes pressupostos: a. Existência de uma cessão a título definitivo; b. de uma universalidade capaz de constituir um ramo de atividade independente; e c. que o adquirente seja ou venha a ser sujeito passivo de imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA.

35. A operação, tal como é descrita pela exponente, consiste numa transmissão de um ramo de atividade que tem por objeto o diagnóstico clínico, englobando:
(i) Clientes (com exceção dos saldos de clientes, que se mantêm na titularidade da Exponente);
(ii) Fornecedores;
(iii) Ativo fixo tangível (e.g. equipamentos de diagnóstico);
(iv) Inventários;
(v) Responsabilidades assumidas perante os seus futuros trabalhadores (e.g. decorrentes de planos de pensões atribuídos aos trabalhadores).

36. Uma vez que o património transmitido a título definitivo é suscetível de constituir um ramo de atividade autónomo e o adquirente será um sujeito passivo de imposto dos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, considera-se que estão reunidos os pressupostos para que a operação se enquadre no regime de exclusão preconizado no n.º 4 do artigo 3.º e do n.º 5 do artigo 4.º, ambos do CIVA.