Diploma

Diário da República n.º 111, Série II, de 2018-06-11
Acórdão n.º 267/2017, de 31 de maio

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017 – Processo n.º 466/16

Tipo: Acórdão
Número: 267/2017
Publicação: 15 de Junho, 2018
Disponibilização: 31 de Maio, 2017
III. Decisão Pelo exposto, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que[...]

Diploma

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório
1 - A. Lda., recorrida nos presentes autos em que é recorrente a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT"), requereu em 11 de dezembro de 2015 a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT"), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciação da ilegalidade da autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC") relativa ao exercício de 2012, «no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma em IRC de € 13 901,43, com a sua consequente anulação nesta parte por afastamento indevido das deduções à coleta, atenta a manifesta ilegalidade da liquidação nesta parte […]». Subsidiariamente, para o caso de se entender que o artigo 90.º do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro (“CIRC"), não se aplica às tributações autónomas, pediu a declaração da ilegalidade e consequente anulação «da liquidação das tributações autónomas […] por ausência de base legal para a sua efetivação (cfr. artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da LGT, e artigo 103.º, n.º 3» da Constituição.

Para justificar o seu pedido de pronúncia arbitral, a ora recorrida invocou, em síntese, o seguinte:
– Que entregou no dia 17 de maio de 2013 a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2012, tendo apurado um montante de tributações autónomas no valor de €13.901,43, já pago;
– Que, a título de pagamento especial por conta (“PEC") referente ao mesmo exercício, pagou uma soma total no valor de € 27 848,08;
– Que se viu impedida pelo sistema informático da AT de inscrever o valor das referidas taxas de tributação autónoma em IRC, de modo a deduzir à coleta de IRC resultante dessas mesmas taxas o montante acumulado de PEC;
– O que resultou num excesso de IRC pago por referência ao exercício de 2012;
– Com efeito, abrangendo a coleta de IRC (também) a coleta das tributações autónomas em IRC, negarse a dedução do PEC à coleta em IRC das tributações autónomas viola a alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

Aceite o pedido e constituído o tribunal arbitral em 22 de fevereiro de 2016, foi a AT notificada para responder. Em 5 de abril de 2016, a AT respondeu invocando, além do mais, o disposto no artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016 – LOE 2016), que procedeu a diversas alterações ao CIRC, bem como o disposto no artigo 135.º daquele mesmo diploma. O mencionado artigo 133.º aditou ao artigo 88.º do CIRC o n.º 21, estabelecendo que a liquidação das tributações autónomas em IRC deve ser efetuada nos termos do artigo 89.º e que, ao montante global apurado na sequência dessa liquidação, não devem ser feitas quaisquer deduções. Por outro lado, o artigo 135.º da LOE 2016 conferiu natureza interpretativa à redação dada ao artigo 88.º, n.º 21, do CIRC.

Em alegações, a então requerente, ora recorrida, sustentou, no que ora releva, que a citada alteração legal, a ter eficácia retroativa, seria inconstitucional por violação da proibição da retroatividade da lei fiscal.

2 - Por decisão de 3 de maio de 2016, o tribunal arbitral julgou procedente o pedido principal, isto é, «pedido de anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada relativamente ao ato de autoliquidação de IRC referente ao ano de 2012, na parte correspondente à dedução à coleta das taxas de tributação autónoma, no valor de € 13 901,43» e condenou a AT a restituir à requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios (fls. 15).

O tribunal começou por fixar a interpretação do artigo 90.º do CIRC, n.ºs 1 (liquidação do IRC) e 2, alínea d) (dedução do PEC ao montante apurado nos termos do número anterior, isto é, à coleta do IRC), considerando que o PEC deve ser deduzido à coleta de IRC apurada, a qual abrange as taxas de tributação autónoma devidas. A autonomia desta tributação «restringe-se às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efetuado nos termos do artigo 90.º» (fls 13). E acrescentou:

«Tal como já foi longamente explicitado pela Jurisprudência, o propósito subjacente à criação das taxas de tributação autónoma é o combate à evasão fiscal, visando-se com a sua criação obviar à transferência para a esfera das empresas de despesas que têm subjacentes intuito remuneratório, de modo a melhorar o enquadramento fiscal dos rendimentos da esfera pessoal, ou a obviar a que sejam contabilizados custos que não têm uma causa empresarial.
Esse objetivo é prosseguido através da tributação autónoma, não sendo desvirtuado pelo facto desse imposto poder ser satisfeito pelo imposto cobrado através do PEC.
Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, não se vê de que modo se possa entender existir um conflito de normas e daí retirar como consequência a impossibilidade de dedução do PEC à coleta, aí incluindo as tributações autónomas.
Na verdade, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, esta deverá processar-se nos termos gerais previstos no Código do IRC, por força do princípio da legalidade tributária, que resulta do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, que impedem que a liquidação de imposto se efetue sem base legal.
Conclui-se, assim, que, contrariamente ao defendido, nesta situação, pela AT, a norma prevista no artigo 90.º, n.º 1 e 2 d) do Código do IRC, deve ser interpretada no sentido de se considerar que a coleta de IRC abrange as taxas de tributação autónoma, que são também IRC.» (fls. 13)
Seguidamente, a decisão recorrida analisa as alterações introduzidas neste enquadramento jurídico pela LOE 2016, designadamente, em resultado do aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC pelo artigo 133.º e do artigo 135.º, respetivamente com a seguinte redação:
– «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.» – «A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa»

Começou por considerar-se naquela decisão, quanto ao novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC:

«Atenta a nova redação dada ao artigo 88.º, n.º 21 do Código do IRC, verifica-se que o legislador veio, então, considerar que a liquidação das tributações autónomas em sede de IRC deve ser efetuada nos termos gerais, mas que não podem ser efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.
Deste modo, parece poder concluir-se que, à luz da nova redação do artigo 88.º do Código do IRC, o PEC previsto no artigo 90.º, n.º 2 d) do Código do IRC não pode ser deduzido à coleta das tributações autónomas» (fls. 13, v.º)

Porém, relativamente à natureza interpretativa de tal preceito estatuída no artigo 135.º da LOE 2016 entendeu-se:

«[A] matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que esclarece que A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores parece ter verdadeira natureza interpretativa, conquanto tal entendimento, para além de resultar da Lei, como se defende nesta decisão, tem um caráter genericamente consensual pelos aplicadores daquela.
Contudo, a matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que pretende esclarecer que não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, não parece ser uma verdadeira norma interpretativa, uma vez que não existe um entendimento constante e pacífico sobre essa discussão.
Ademais, a existir um certo entendimento sobre a questão “interpretada" poder-se-á dizer que tal seria no sentido contrário (Decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015).
Razão pela qual se considera que não é possível concluir que “se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga".
[…]
Acresce que, não havendo base legal anterior aplicável especificamente à liquidação das tributações autónomas, não há, também, na verdade, uma norma especificamente interpretada, na qual se possa integrar a designada norma interpretativa, ou pelo menos, a perceção sobre a norma interpretada é bastante dificultada.
Também por isso, entende-se que os contribuintes não podiam contar com a norma criada pelo disposto na 2.º parte do n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, razão pela qual a norma em causa pode violar expectativas seguras e legitimamente fundadas.
Assim sendo, a 2.º parte da norma em causa não pode ser considerada uma norma interpretativa em sentido autêntico, sendo, portanto, proibida a sua retroatividade.
Atento o exposto, conclui-se que a 2.º parte da norma em análise não pode ser aplicada ao caso sub judice, cujo ato impugnado se reporta ao ano 2012, sob pena de violação do disposto no artigo 103.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 12.º da LGT».

3 - É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), para apreciação da norma constante do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pelo artigo 133.º da LOE 2016 com os efeitos previstos no artigo 135.º da mesma Lei.

Admitido o recurso (fls. 25), e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para produzirem alegações.

3.1. São as seguintes as conclusões essenciais da alegação apresentada pela AT:
«[D. A norma da 2.ª parte do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC com os efeitos previstos no artigo 135.º da LOE 2016] veio clarificar positivando, como se evidenciou supra, o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT.
E. Pelo que qualquer interpretação dissonante seria materialmente inconstitucional.
F. Mormente aquela perfilhada na decisão arbitral que desaplicou aquela norma com fundamento em inconstitucionalidade.
G. É axiomático que a norma em apreço tendo um caráter interpretativo integra-se na lei interpretada (cfr.
art.º 13.º do Código Civil), formando ambas um conjunto incindível […].
M. Verificando-se que, de facto e insofismavelmente, o novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC tem caráter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência,
N. pelo que este Colendo Tribunal terá que concluir pela não desconformidade da norma com a CRP, expurgando, em consequência, do ordenamento jurídico da decisão do Tribunal Arbitral Singular que decidiu a sua desaplicação com fundamento em inconstitucionalidade. […]
P. Antes de mais, há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroatividade da lei, previstos no art.º 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende a Recorrente que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
Q. Da mesma forma que se considera que, face à mais recente jurisprudência deste Colendo Tribunal em matéria de interpretação e delimitação da amplitude do princípio da proibição da retroatividade fiscal Acórdão n.º 310/2012, de 20 de junho, e acórdão 399/2010, de 27 de outubro, as conclusões do acórdão n.º 172/2000, de 22-03-2000, proferido no proc. 762/98, não justificarão uma proibição absoluta de leis interpretativas.
R. A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal – tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal – deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respetivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial) do imposto.
S. E a verdade é que a prática jurisprudencial, de que são exemplos os acórdãos do STA de 21-03-2012, proc. n.º 830/11, e de 16-05-2012, proc. n.º 675/11, tem admitido a existência de leis interpretativas de âmbito fiscal.
T. Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efetivamente perante uma lei interpretativa conforme as disposições constitucionais, U. o que, nos parece por demais evidente, tal como foi reforçado e evidenciado ao longo dos autos pela ora Recorrente.
V. Considera-se que, em consonância com a doutrina citada no presente excurso, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:

(i) existir uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e
(ii) o legislador consagrar uma solução interpretativa que resolva a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.

W. Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012, pode e deve aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa que se faz no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, conforme a CRP, ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, à luz dos ensinamentos de Batista Machado, porquanto a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor, i, e.:

(i) a solução que resultava do teor literal do artigo 93.0, n.º 1, do CIRC era controvertida e a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia;
(ii) o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário otimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.

X. Ademais, não se antevê ou vislumbra que o regime que resulta do n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC encerre qualquer contradição na medida em que, segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de tributações autónomas devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efetuadas deduções.
Y. Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e se foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do art.º 88.º que a Recorrida e, aliás, sublinhe-se, todos os contribuintes, sem que fosse alvitrada qualquer questiúncula, preencheram as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição percetível.
Z. Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos inelutavelmente obrigados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa.
AA. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC era controversa e incerta ao nível jurisprudencial (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Recorrida), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015, consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/
BB. Já a nível do quadro normativo em vigor e da factualidade que enformaram ao longo de anos o procedimento de autoliquidação do imposto de IRC, nunca houve controvérsia, sendo um dado adquirido que as tributações autónomas, em face da sua própria génese hermenêutica, não seriam suscetíveis de qualquer dedução.
CC. É certo que a solução consagrada legalmente não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.
DD. Contra este entendimento não procederá a alegação da Recorrida de que, para se estar perante uma efetiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador, o que não se verificaria na presente situação, com exceção da mencionada decisão arbitral proferida no âmbito do processo n,º 113/2015-T, todos os acórdãos mencionados pela ora Recorrida são posteriores à alteração legislativa, nenhum tendo aderido à tese por esta propugnada.
EE. Essencial é, pois, que a solução consagrada pelo legislador pudesse ser apurada pelo intérprete ou julgador dentro do quadro normativo em vigor e no âmbito da controvérsia ou incerteza gerada pela norma – a qual foi suscitada em 2015 (no processo arbitral n.º 113/2015-T supra mencionado)
FF. Aliás, como veio a ser.
GG. Tal como já vem ante exposto, a verdade é que a solução consagrada pelo legislador corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais), vidé, entre outras, as decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.º 673/2015-T; processo n.º 722/2015-T; processo n.º 736/2015-T; processo n.º 745/2015-T; processo n.º 751/2015-T processo n.º 767/2015-T; processo n.º 774/2015-T; processo n.º 783/2015-T. Acresce que,
HH. Esta conclusão quanto ao caráter interpretativo do novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC, com inerente aplicação da mesma nos termos do art. 13.º do Código Civil, não viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal decorrente do n.º 3 do art. 103.º da CRP, como alegado pela Recorrida por se entender que poria em causa a coleta de tributações autónomas cujos factos tributários se consumaram no ano de 2012.
II. No entender da Recorrida, caso se aplique retroativamente a norma introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, tal afetará a liquidação e apuramento das ditas coletas, levando ao pagamento de mais tributação autónoma em IRC para os exercícios em causa.
JJ. Ora, salvo melhor opinião, a questão em discussão nos autos não contende com a coleta a título de tributações autónomas do ano de 2012, que se manterá sempre inalterada qualquer que seja a decisão sobre possibilidade de dedução do PEC.
KK. Isto porque, contrariamente ao que resulta da posição da Recorrida, não há necessária correspondência conceptual entre coleta de imposto e imposto a pagar na sequência da entrega da declaração de rendimentos prevista no art.º 120.º do CIRC.
LL. Nessa medida, mesmo que o pedido efetuado pela Recorrida fosse deferido, esta estaria sujeita exatamente ao mesmo nível de tributação (a coleta seria exatamente a mesma);
MM. o que diferiria seria o imposto a entregar ao Estado na sequência da autoliquidação efetuada no Mod.
22, porquanto seriam deduzidos a tal valor os montantes antecipadamente entregues a título de pagamentos especiais por conta.
NN. Acresce que, no entender da Recorrente a aceitação da natureza interpretativa da referida norma não viola o n.º 3 do art. 103.º da CRP porque, como supra referido, o princípio constitucional em causa proíbe a criação de impostos retroativos, cingindo, assim, o seu âmbito de aplicação às matérias de incidência subjetiva, objetiva, temporal e territorial.
OO. Ora, a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria coleta. Improcede, por isso, inconstitucionalidade invocada pela Recorrida por alegada violação da proibição da retroatividade do imposto.
PP. As normas que preveem os pagamentos especiais por conta não eram, em princípio, normas de incidência de IRC, mas sim sobre a sua liquidação e pagamento, pelo que, nessa medida, não estarão abrangidas pela proibição constitucional de retroatividade.
QQ. Mas, antes da redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, ao n.º 3 do artigo 93.º (A anterior redação é a do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que renumerou e republicou o CIRC e em que o art.º 93.º corresponde ao anterior art.º 87), na inviabilidade de dedução dos pagamentos especiais por conta no período a que se reportam e nos períodos subsequentes, aquelas normas podiam acabar por criar uma situação de incidência de IRC, autónoma em relação a qualquer outro facto tributário, se não viesse a ser permitido o reembolso nos termos do n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, que dependia do preenchimento de certas e determinadas condições.
RR. E, mesmo nesta hipótese, estar-se-á perante um facto tributário complexo de formação sucessiva, que é constituído pelo volume de negócios no ano a que se reportam os pagamentos especiais por conta conjugado com a inviabilidade de dedução nos períodos previstos na lei e o não reembolso nos termos previstos no artigo 93.º, n.º 3, do CIRC.
SS. À face deste regime, a situação jurídica criada com os pagamentos especiais por conta efetuados no ano de 2012 ainda não está estabilizada, o que, desde logo, afasta a violação da proibição de retroatividade das leis fiscais, na visão do Tribunal Constitucional, pois o facto tributário que a lei nova pretende regular não se verificou integralmente nem produziu todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga – veja-se, nesse sentido, o acórdão deste Venerando Tribunal Constitucional n.º 399/10, de 27-10-2010.
TT. Por fim, como também decidido no acórdão arbitral coletivo presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, proferido no proc. n.º 673/2015-T, consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/, citado pela Recorrida, não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porquanto,

(…) não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade [do pagamento especial por conta]à coleta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente poderia ser adotadas pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T.
Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à coleta das tributações autónomas.
"

UU. Face a tudo o que vem supra exposto supra, resta concluir pelo caráter interpretativo do n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que, sendo diretamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art.º 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Recorrida por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efetuadas quaisquer deduções.
VV. É manifesto portanto que a atribuição de natureza interpretativa à referida norma não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição da retroatividade pelo que não se pode julgar inconstitucional o art.º 135.º do referido diploma legal.
WW. E sempre se dirá, com toda a propriedade, que, na tese que a Recorrente aqui sufraga e, bem assim, nos autos, o legislador, ao aditar este n.º 21 ao art.º 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado, limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes, como ficou demonstrado pelo raciocínio supra exposto.
XX. De onde que, a existência da norma ora posta em causa, e sobretudo o efeito que lhe foi atribuído, se traduz numa mera evidência clarificadora. […]
ZZ. Para se poder afirmar que uma lei tem aquela natureza é necessário que, de substancial, ela nada tenha trazido em relação à lei interpretada e se tenha limitado a resolver uma incerteza ou controvérsia jurídicas, dandolhe um entendimento que a jurisprudência, se o tivesse querido, já poderia ter adotado.
AAA. A norma interpretativa que ora se questiona visa, pois, pôr fim à controvérsia que se instalou, por mera e exclusiva vontade deste douto mandatário da Recorrida, sobre o sentido que se devia dar a determinada lei, fixando ela própria o sentido que esta deve ter, a qual será vinculante.
BBB. Trata-se de uma interpretação autêntica que se destina a conferir uma maior certeza e igualdade na aplicação da lei.
CCC. Ora, no caso em apreço, reiterando o que já vimos a expor no presente excurso, se bem analisarmos o predito diploma legal, este mais não faz do que aclarar num raciocínio interpretativo, de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço (tributações autónomas), […]
EEE. Desde a criação das Tributações Autónomas, no início da década de 90, e a sua evolução legislativa, sempre foi pacífico por que as tributações autónomas não admitiam qualquer dedução.
FFF. Com efeito, a lei ao atribuir caráter interpretativo, não se afasta das soluções que já antes se viam firmadas quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, antes sim, interpreta e esclarece a aplicação prática dos dispositivos ora controvertidos, revelando uma solução não inovatória, de forma a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
GGG. É, pois, inquestionável que o julgador e o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar outra solução que não solução que a nova lei vem interpretar e que era já aquela que os contribuintes e a Recorrente adotavam,
HHH. Donde decorre, conclusivamente, que o aditamento ora em apreço apenas se limita a traduzir a axiomática evidência de toda a teleologia histórica da norma. […]
JJJ. O que, em última análise, dispensaria qualquer aplicação retroativa daquela norma e, por conseguinte, tornando inócua essa discussão e totalmente errática a decisão do Tribunal Arbitral Singular em desaplicar aquela norma.
KKK. Assim, terá de se concluir que a interpretação autêntica que se faz no n.º 21 do art.º 88.ºdo CIRC, na parte em que se reconduz à não dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta nas tributações autónomas, não ofende o princípio da não retroatividade na criação de impostos, entendido como reportando-se apenas à retroatividade autêntica, reportada a factos tributários que se completaram e produziram todos os seus efeitos no passado.»

3.2. A recorrida A., Lda., terminou as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
«A) [A] conclusão de que a norma do Código do IRC que prevê as deduções à coleta em IRC (artigo 90.º, n.º 2) abrange a coleta em IRC das tributações autónomas, é uma exigência, em primeiro lugar, da própria letra da lei, tal como entendida pela própria AT e por avassaladora jurisprudência tributária: conforme relatado supra a propósito do segundo Ato desta história, quer a AT, quer os tribunais arbitrais em dezenas de decisões arbitrais que deram razão à AT, entendem que a coleta da tributação autónoma em IRC é IRC, inclusive nos propósitos ou função que aquela serve (combate, através de tributação compensatória, a despesas e encargos de duvidosa empresarialidade, pelo menos na sua totalidade, mas não obstante deduzidas/os pelas empresas no apuramento do seu lucro tributável em IRC).
B) E é também uma exigência do princípio da coerência e da interpretação sistemática: não se pode simultaneamente concluir (sem lei que, previamente, crie a dissonância) que quando o Código do IRC se refere à coleta do IRC no seu artigo 45.º, n.º 1, alínea a) (na redação e numeração em vigor até 2013), aí se inclui, sem necessidade de nomeação própria, a coleta da tributação autónoma em IRC (e assim concluiu avassaladora jurisprudência tributária, a pedido da AT, no acima relatado segundo Ato desta história),
C) e nuns artigos mais à frente (artigo 90.º, n.º 2, do Código do IRC) concluir, em oposição, que a coleta do IRC não abrange a coleta da tributação autónoma em IRC.
D) Que essa incoerência interpretativa não é sustentável foi a conclusão, até à Lei do Orçamento do Estado para 2016 (LOE 2016), de 4 acórdãos arbitrais protagonizados por 8 árbitros, a cujo entendimento aderiu ainda um nono árbitro em voto de vencido num quinto acórdão arbitral de data também anterior à entrada em vigor da LOE 2016. Constitui esta atividade jurisprudencial o terceiro Ato desta história.
E) Deste consenso se desviou uma corrente minoritária constituída por este quinto acórdão arbitral, que seguiu uma outra decisão arbitral (tribunal singular), ambos com data anterior à entrada em vigor da LOE 2016 (e até esta data não há mais decisões arbitrais ou acórdãos sobre o âmbito de aplicação do artigo 90.º, n.º 2, do Código do IRC). Decisões divergentes estas que no seu conjunto obtiveram a adesão de apenas dois árbitros. […]
H) Donde que quer de um prisma de contagem de espingardas até à LOE 2016 (número de decisões arbitrais em cada um dos campos opostos), quer de um ponto de vista substantivo ou material, se possa e deva concluir que a correta interpretação (fundada no respeito pelo princípio da coerência exigida ao intérprete/aplicador da lei) era a de que na coleta do IRC a que se dirige o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC se abrange a coleta da tributação autónoma em IRC.
I) Mas há mais: onde se encontra a norma interpretada, o objeto da interpretação? De parte alguma da LOE 2016 resulta identificada a norma que a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC visaria interpretar. O que constitui mais um forte sintoma de que se está perante uma novidade normativa, por oposição a visão interpretativa de norma velha.
J) E há mais ainda: quer o artigo 89.º, quer o artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, do CIRC, referem-se ao IRC, a todo o IRC (nenhuma ressalva fazem ou faziam), e ambos se inserem na mesma fase lógica da regulamentação da liquidação do IRC, pós obtenção da coleta primária (apurada de acordo com os antecedentes oitenta e oito artigos).
K) Neste contexto (que é o real), como podem ambas as partes, 1 e 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC (introduzido pela LOE 2016), serem simultaneamente interpretativas do que dispõem os artigos 89.º e 90.º do CIRC, em sentidos opostos? Como podem ser simultaneamente interpretativas (nos dizeres do artigo 135.º da LOE 2016) no sentido de que o IRC do artigo 89.º inclui também as tributações autónomas (parte 1 do n.º 21 do artigo 88.º), e no sentido oposto de que o IRC do artigo 90.º, pelo menos o do seu n.º 2, não inclui as tributações autónomas?
L) Não podem, isso é uma impossibilidade lógica e sistémica. Uma das duas prescrições, ou a da parte 1, ou a da parte 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, não tem, e não tem necessariamente, por impossibilidade lógica, caráter interpretativo.
M) E sabendo-se da esmagadora jurisprudência, acompanhada pela AT, no sentido da qualificação da coleta da tributação autónoma em IRC como possuindo a natureza de IRC (conforme 2.º Ato desta história, atrás relatado), fácil é concluir que quem nesta dualidade de prescrições de sentido oposto tem natureza interpretativa é a parte 1. E que portanto, e necessariamente, a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem caráter inovatório (contracorrente, no caso contra a inserção da coleta primária da tributação autónoma na coleta do IRC).
N) Por todas estas razões, algumas das quais por si sós suficientes, crê-se, a recorrida julga ter podido demonstrar que não é materialmente interpretativa a exclusão das deduções à coleta da tributação autónoma constante da segunda parte do novo n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, introduzida pela LOE 2016.
O) Mas mesmo que não houvesse certeza a propósito da ausência de caráter interpretativo na nova norma, atento o papel garantístico, com dignidade constitucional, da proibição de retroatividade da lei fiscal, a dúvida razoável é suficiente: no mínimo, transfere o ónus (se é que não esteve Iá sempre, atentas as regras gerais do ónus da prova) para quem clama pela natureza interpretativa de uma lei fiscal e com isso pretenda aplicá-la retroativamente sem a oposição da norma constitucional que o proíbe, de mostrar (anulando a dúvida razoável) que é essa realmente, em substância, para lá da mera proclamação, a sua natureza.
P) Antes de prosseguir, e dando um passo atrás, refira-se ainda que, como se demonstrou supra, uma norma como a introduzida pela LOE 2016 (o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC), que impede haja deduções à coleta sobre a coleta da tributação autónoma em IRC, é um dos tipos de norma (entre muitos outros, conforme supra exemplificado) que interfere com o quantum do imposto a pagar por referência ao facto tributário/exercício fiscal em concreto em causa. Pelo que, provocando aumento do imposto a pagar, como sucede, está sujeita à proibição de retroatividade prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Q) No caso concreto da decisão arbitral recorrida aqui em causa, a imposição da nova norma traduz-se num agravamento do imposto final a pagar a título de tributação autónoma no exercício de 2012, no montante de € 13.901,43, conforme quantificado nos artigos 13.º e segs. do pedido de pronúncia arbitral (junto à cópia digital do processo arbitral).
R) Não é o PEC, e sua eventual recuperação mais tarde ao longo dos anos, que aqui estão em causa, mas, antes, o montante final da tributação autónoma a pagar em cada exercício fiscal/facto tributário agregado por exercício, montante final esse que aumenta em razão da eliminação (com pretensão retroativa) de deduções automáticas à coleta da tributação autónoma (deduções quer de PEC, quer de benefícios fiscais).
S) Em suma, o que a recorrente AT pretende obter neste recurso é uma declaração de não desconformidade à Constituição de um aumento de imposto por força de norma que, com caráter retroativo, eliminou as deduções à coleta da tributação autónoma em IRC, entre as quais se contam a dedução de PEC. […].
T) Prosseguindo, o que se relatou atrás nestas conclusões é sobretudo relevante para quem interprete o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, como excluindo do seu campo de aplicação leis fiscais materialmente (autenticamente) interpretativas, e nessa linha tente aferir se uma lei é ou não autenticamente interpretativa, elegendo para isso os critérios que repute de adequados (operação prévia em si mesma atreita a múltiplas opiniões e incertezas).
U) A decisão arbitral recorrida, pela sua parte e na esteira de outras que a precederam, entendeu que sem a interferência da LOE 2016 a interpretação da lei em vigor (existente) à data dos factos (2012) era a de que as deduções à coleta do IRC também se aplicam à coleta da tributação autónoma em IRC. É esta, pois, a interpretação que tem da lei o árbitro no exercício da função de julgar com isenção e imparcialidade o que diz a lei em vigor à data dos factos. Função de julgar que, acrescenta-se, é poder soberano que no seu exercício não pode nem deve ser condicionado pelos outros poderes soberanos.
V) E numa segunda fase da análise da questão que lhe foi submetida a decisão arbitral recorrida rejeitou que a LOE 2016 lhe ditasse como deveria ser julgada/interpretada a lei em vigor à data dos factos. Raciocinando, pensa-se que bem, que onde a Lei Fundamental proíbe que o legislador altere o passado normativo, não lhe é constitucionalmente admitido que o altere ditando à função soberana de julgar como deve ser entendido esse passado normativo.
W) Para a recorrida que tem de ser assim é uma evidência. De outro modo, lá diz o adágio, deixar-se-á, onde haja atrevimento bastante, que entre pela janela aquilo a que se fechou a porta. […]
Y) Em primeiro lugar, quer a recorrida lembrar que a proibição constitucional em causa não distingue entre mais imposto aplicável ao passado por força de lei dita interpretativa e mais imposto aplicável por força de lei que tal não se arrogue.
Z) E há razão para respeitar essa indiferenciação. Com efeito, se o legislador de hoje tem necessidade de aprovar nova lei que esclareça o que no seu entendimento foi querido pelo legislador que fez a lei do passado, é porque detetou o risco de este por si querido entendimento acerca do legislador no passado não ser partilhado quer pelos destinatários dessa lei antiga quer, sobretudo, pelos órgãos de soberania que têm por missão, e com independência do poder legislativo ou de qualquer outro, decidir o que diz a lei.
AA) Ora, se assim é a nova lei com pretensão de fixar o sentido do quadro jurídico anterior a ela, adita inevitavelmente nova juridicidade a esse quadro. Pode-se insistir em usar a terminologia de que o faz interpretativamente, mas o que não se pode negar é que essa “interpretação" acrescenta ao que havia anteriormente, mesmo que se pudesse concluir que, ao contrário da interpretação oposta, é respeitadora dos limites (regras) da interpretação: escolhe uma opção interpretativa (que origina mais imposto, no caso) e exclui a outra, condicionando com isso, para mais, o imposto aplicável. Imposto este que, pretendendo-se aplicá-lo ao passado, viola a proibição constitucional de retroatividade.
BB) De ângulo equivalente: ao excluir a interpretação oposta da lei antiga por quem de direito (os tribunais, no limite), origina a lei nova, necessariamente (e outro não é o seu objetivo), imposto, ao excluir a interpretação que não gerava esse imposto. Com o que a pretensão da sua aplicação ao passado viola também, necessariamente, a proibição constitucional de retroatividade em matéria de imposto. […] DD) Mas mais ainda. Em matéria fiscal quis o legislador uma proteção reforçada: só há impostos autorizados pelo Parlamento, e o próprio Parlamento está proibido de autorizar impostos para o passado.
EE) Como derivação desta proteção reforçada do cidadão ou empresa, em que o Parlamento está impedido de interferir com o passado em matéria de impostos, temos que para o passado só devem contar as normas então existentes e o sentido que lhes for fixado pelos tribunais, com independência (livres de interferência) dos outros poderes soberanos.
FF) Dito de outro modo, em matéria como esta do imposto o Parlamento legisla com eficácia de ora em diante, e se quiser altera de ora em diante o que vinha de trás, podendo evidentemente opinar, mais ou menos persuasivamente, que em seu entender o conteúdo dessa alteração já se retirava da lei antiga.
GG) Mas não mais do que isso, uma vez que em matéria protegida pela proibição constitucional de retroatividade da lei, tem de ficar, por definição, reservada em exclusivo ao órgão de soberania independente que são os tribunais, a fixação do alcance da lei. Dito de outro modo, nestas matérias que beneficiam da proteção constitucional reforçada contra o poder legislativo que é a proibição de retroatividade das leis, é conatural àquela proteção que o princípio da separação do poder legislativo face ao poder judicial tem de ser levado ao extremo de se impedir que o primeiro diga ao segundo como há de interpretar a lei.
HH) Separação reforçada esta entre poder legislativo e judicial que não é alcançada se se permitir que o Parlamento, através de nova lei, fixe aos tribunais o que devem entender com respeito à lei fiscal do passado.
II) É de recordar aqui o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/00. Em suma, como se expressou este acórdão do Tribunal Constitucional, o reforço constitucional da proteção contra o poder legislativo que se contém na proibição de retroatividade das suas leis, é um reforço da segurança jurídica e da proteção da tutela da confiança que se não compagina com interferências no processo de aplicação da lei pelos órgãos nela investidos, o que afasta a admissibilidade de leis interpretativas nas matérias sob aquela proteção constitucional. Sejam as leis interpretativas autênticas, ou não, o que quer que se entenda por autênticas, questão em si mesma com respeito à qual dificilmente se eliminará a imprecisão e a discussão. […]
KK) Em conclusão, entende a recorrida que a atribuição pelo artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março) de natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global" [de tributação autónoma em IRCJ apurado, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e consequente atribuição de caráter retroativo a esta nova norma fiscal,
LL) configura uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroatividade em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende-se que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa.
MM) E por violação, também, do princípio da separação entre poderes legislativo e judicial e do princípio da independência do poder judicial, reforçados que são sempre que se esteja perante matéria sujeita à proibição constitucional de retroatividade de novas leis.
NN) Violação, pois, também, em articulação com a proibição de retroatividade, do artigo 2.º (Estado de direito democrático, e separação e interdependência de poderes, sendo que quanto a este último aspeto no caso está em causa a perspetiva da interdependência – e por conseguinte negação de excessos e de ocupação de espaço que não lhe pertence – do poder político-legislativo face ao poder judicial), do artigo 111.º, n.º 1 (separação e interdependência dos órgãos de soberania, que é ainda um limite material de revisão – artigo 288.º, alínea j), da Constituição), e do artigo 203.º (independência dos tribunais, outro limite material de revisão – artigo 288.º, alínea m), da Constituição), todos da Constituição.»

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
4 - Importa começar por delimitar o objeto material do presente recurso, já que ao Tribunal Constitucional compete «julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC). O ponto de partida é, por conseguinte, o juízo positivo de inconstitucionalidade normativa formulado pela decisão recorrida.
O tribunal a quo começou por fixar o direito aplicável ao tempo em que ocorreram os factos relevantes e que ainda vigorava aquando do início do presente processo. Nesse sentido, considerou, atenta a letra e a teleologia da lei, que, sem prejuízo da autonomia tributária das tributações autónomas em sede de IRC, o respetivo montante integra a coleta do IRC de um dado ano. Por isso, e na ausência de qualquer norma especialmente aplicável, a parte da coleta de IRC correspondente às tributações autónomas também deve ser deduzida dos valores previstos no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC, onde se incluem, na alínea d), o PEC desse ano. In casu, e uma vez que (i) o rendimento da recorrida apurado na sequência da liquidação de IRC referente ao ano fiscal de 2012 se limitava ao valor das tributações autónomas pagas durante esse ano (€ 13 901,43); e (ii) o montante do PEC por si efetuado nesse mesmo ano era superior (€ 27 848,08); tinha a recorrida o direito à restituição do IRC pago em 2012 (o qual, como referido, correspondia precisamente ao valor das tributações autónomas desse mesmo ano).
Sucede que o n.º 21 aditado ao artigo 88.º do CIRC pelo artigo 133.º da LOE 2016 veio proibir a realização de quaisquer deduções ao montante global das tributações autónomas apurado num dado ano. Ou seja, as deduções à coleta do IRC previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC – incluindo o PEC – deixaram de poder ser feitas com referência ao valor das tributações autónomas, havendo assim que distinguir na coleta do IRC duas componentes: a coleta de IRC correspondente às tributações autónomas, à qual não são efetuadas quaisquer deduções; e a coleta de IRC remanescente, em relação à qual continuam a poder ser feitas as deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Acresce que o artigo 135.º da mesma LOE 2016, ao atribuir caráter interpretativo ao novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, determinou que a impossibilidade de fazer deduções à coleta de IRC correspondente às tributações autónomas se aplicasse também nos anos fiscais anteriores àquele em que a nova lei entrou em vigor.
O tribunal a quo não discutiu a constitucionalidade da nova solução do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC;
limitou-se a considerar que a mesma não tinha correspondência no direito anterior e que, como tal, não pode ser considerada «uma norma interpretativa em sentido autêntico». Mais: a mesma norma, na medida em que se pretenda aplicar a anos fiscais anteriores ao do seu início de vigência, mormente por força do artigo 135.º da LOE 2016, pode afetar o quantum do IRC a pagar nesses anos fiscais, hipótese que, a verificar-se, implica retroatividade fiscal constitucionalmente proibida (artigo 103.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição). Atentas as circunstâncias, considerou o tribunal a quo que tal hipótese se concretizava no caso sub iudice, pelo que recusou aplicação à norma em causa.
Em suma, no presente recurso não está em causa saber se as tributações autónomas em IRC, enquanto factos tributários a se de caráter instantâneo, podem originar uma coleta autónoma em sede de IRC, uma vez que tal é aceite. Também não se discute se o PEC, além de poder ser deduzido à coleta do IRC no ano em que é realizado, pode igualmente, na medida em que tal dedução não tenha sido possível por insuficiência da coleta de IRC, ser deduzido em anos fiscais posteriores. As questões a dilucidar são, diferentemente, saber se, antes da LOE 2016:

i) O montante pago a título de tributações autónomas em sede de IRC integra a coleta deste imposto;
ii) Decorria de alguma norma do CIRC que o PEC (assim como as demais deduções referidas no artigo 90.º, n.º 2, do citado Código) realizado num dado ano não podia ser deduzido à coleta de IRC apurada nesse ano, incluindo nessa coleta os montantes já pagos a título de tributações autónomas em sede de IRC.

Tendo respondido afirmativamente à primeira questão e negativamente à segunda – sendo certo que ambas as questões relevam exclusivamente da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional –, o tribunal recorrido considerou que o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem caráter inovador, razão pela qual a sua aplicabilidade a anos fiscais anteriores ao de 2016, conforme determinado pelo artigo 135.º da LOE 2016 – na medida em que atribui uma natureza meramente interpretativa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil – implica retroatividade fiscal constitucionalmente proibida.
Assim, o presente recurso tem por objeto a norma do artigo 135.º da LOE 2016, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma da 2.ª parte do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pelo artigo 133.º da citada Lei, segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de PEC nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016.

5 - Para o correto enquadramento da questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso, cumpre recordar o sentido e alcance das tributações autónomas em sede de IRC.
Estas encontram-se previstas nos artigos 88.º e 89.º do CIRC (redação atual):

«Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma

1 - As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.

2 - A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efetuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda por sujeitos passivos que aufiram rendimentos enquadráveis no artigo 7.º.

3 - São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10% no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000;
b) 27,5% no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000 e inferior a (euro) 35 000;
c) 35% no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000.

4 - (Revogado)

5 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:
a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e
b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

7 - São tributados autonomamente à taxa de 10% os encargos efetuados ou suportados relativos a despesas de representação, considerando-se como tal, nomeadamente, as despesas suportadas com receções, refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades.

8 - São sujeitas ao regime dos n.ºs 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respetivamente, 35% ou 55%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.

9 - São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos efetuados ou suportados relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.

10 - (Revogado)

11 - São tributados autonomamente, à taxa de 23%, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

12 - Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.

13 - São tributados autonomamente, à taxa de 35%:
a) Os gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objetivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo, qualquer que seja a modalidade de pagamento, quer este seja efetuado diretamente pelo sujeito passivo quer haja transferência das responsabilidades inerentes para uma outra entidade;
b) Os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a (euro) 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.

14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.

15 - As taxas de tributação autónoma previstas nos n.ºs 7, 9, 11 e 13, bem como o disposto no número anterior, não são aplicáveis aos sujeitos passivos a que se aplique o regime simplificado de determinação da matéria coletável.

16 - […]

17 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5%, 10% e 17,5%.

18 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5%, 15% e 27,5%.

19 - No caso de se verificar o incumprimento de qualquer das condições previstas na parte final da alínea b) do n.º 13, o montante correspondente à tributação autónoma que deveria ter sido liquidada é adicionado ao valor do IRC liquidado relativo ao período de tributação em que se verifique aquele incumprimento. (Aditado pela LOE 2016)

20 - Para efeitos do disposto no n.º 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69.º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do artigo 70.º. (Aditado pela LOE 2016)

21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado. (Aditado pela LOE 2016)

Artigo 89.º
Competência para a liquidação

A liquidação do IRC é efetuada:
a) Pelo próprio sujeito passivo, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º;
b) Pela Direção-Geral dos Impostos, nos restantes casos.» Como observa CASALTA NABAIS, as taxas de tributação em apreço começaram por se reportar a situações de elevado risco de fraude e evasões fiscais. Contudo, com o «andar do tempo, a função dessas tributações autónomas, que entretanto se diversificaram extraordinariamente e aumentaram de valor, alterou-se profundamente passando a ser progressivamente a de obter (mais) receitas fiscais, assumindo-se, assim, como efetivos impostos sobre a despesa, se bem que enxertados, em termos totalmente anómalos, na tributação do rendimento das empresas» (cfr. Autor cit., “Investir e tributar no atual sistema fiscal português" in O Memorando da Troika e as Empresas, Almedina, Coimbra, 2012, p. 27).
De todo o modo, e como referido, o que se discutiu no processo-base do presente recurso é a aplicabilidade ao montante apurado a título de tributações autónomas num dado ano fiscal do disposto no artigo 90.º do CIRC, antes de o n.º 21 do artigo 88.º ter sido aditado pelo artigo 133.º da LOE 2016:

«Artigo 90.º
Procedimento e forma de liquidação

1 - A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;
c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;
b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;
c) A relativa a benefícios fiscais;
d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.
[…]»

6 - A jurisprudência constitucional relativa à matéria das tributações autónomas em sede de IRC centrou-se na questão da respetiva autonomia no âmbito deste imposto, em especial, no que se refere ao momento da verificação do facto determinante do pagamento da tributação autónoma, nomeadamente para efeito de qualificar como retroativas em sentido próprio ou meramente retrospetivas alterações legislativas incidentes sobre elementos essenciais de tal tributação – como, por exemplo, o agravamento da respetiva taxa.
Assim, o Acórdão n.º 310/2012, revertendo o entendimento anteriormente acolhido no Acórdão n.º 18/2011, julgou inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que fazia retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRC, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal (decisões acessíveis, assim como as demais adiante referidas, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Entendeu-se nesse aresto que, sendo o facto gerador do imposto a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo, que se esgota no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação, era manifesto estar-se perante uma hipótese de aplicação retroativa. Esta jurisprudência foi reiterada, posteriormente, por diversas vezes: v., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 382/2012, 617/2012 (plenário), 85/2013 (plenário), 197/2016 ou 171/2017 (embora este último apresente diferenças relativamente ao entendimento da proibição constitucional da retroatividade fiscal).
O Acórdão n.º 197/2016, sintetizou nestes termos a autonomia própria da figura:

«Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do DL 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação.
Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500. Entretanto, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 14 ao artigo 88.º, prevendo a elevação das taxas de tributação autónoma previstas nesse artigo em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores.
A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial" e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).
Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.
Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.
No entanto, através de sucessivas alterações legais, o legislador tem vindo a alargar o âmbito da tributação autónoma, tendo passado a incluir, com a Lei do Orçamento do Estado de 2010, os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estes cessem funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas ultrapassem certos limiares.
O relatório do Orçamento de Estado para 2010 justifica essas medidas como uma forma de assegurar “uma distribuição mais justa dos encargos tributários e a uma moralização progressiva das políticas remuneratórias das empresas". Como a doutrina tem reconhecido, trata-se, neste caso, de mecanismos de tributação autónoma que se afastam do desígnio inicial de combater a fraude e a evasão fiscais – como sucedia com as despesas não documentadas-, mas que poderão ainda enquadrar-se no objetivo de limitar despesas que poderão repercutir-se no rendimento coletável das empresas.
No caso da alínea a) do n.º 13 do artigo 88.º, a finalidade é a de penalizar pela via fiscal a atribuição de indemnizações inexigíveis, por não estarem contratualmente previstas ou não se relacionarem com objetivos de produtividade, ou indemnizações de montante excessivo por ultrapassarem o valor das remunerações que seriam devidas se não houvesse lugar à rescisão do contrato antes do seu termo.
No caso da alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º, a intenção da lei parece ser a de sujeitar a tributação autónoma as remunerações variáveis que se não encontrem associadas a critérios de produtividade, isso porque se excecionam da tributação aquelas situações em que o pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.
O agravamento da tributação em 10 pontos percentuais introduzido pelo n.º 14 do artigo 88.º visa penalizar as empresas que, apurando resultados fiscais negativos, mantêm a sua política de gastos em matéria de despesas de representação, ajudas de custo, compensação por deslocações ao serviço da empresa, indemnizações e bónus pagos a gestores, administradores ou gerentes (cfr. HELENA MARTINS, Lições de Fiscalidade, Coimbra, 2012, págs. 282-284).
No caso das medidas previstas no n.º 13 do artigo 88.º, não está em causa a indeterminação dos beneficiários ou o risco de fuga ao pagamento do imposto devido pelo recebimento das importâncias que são despendidas pelas empresas, visto que os beneficiários são identificáveis e as verbas estão sujeitas à correspondente tributação em IRS. Não se trata, por isso, de medidas diretamente dirigidas ao combate à fraude e evasão fiscais, pretendendo-se antes reduzir, mediante a incidência do imposto, a vantagem fiscal que resulta para as empresas da realização de despesas que são dedutíveis mas não têm uma causa empresarial.» Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.
A lógica da tributação autónoma a que se referem as disposições do n.º 13 do artigo 88.º parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para atribuir aos seus gestores indemnizações excessivas e não contratualmente previstas e que não têm direta relação com o desempenho individual na obtenção de resultados económicos positivos. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.
A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização [da] despesa» (n.º 2 da fundamentação)

Em suma, a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico, mas antes desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa. A despesa objeto de tributação constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação, sendo a sua realização assumida pelo legislador como facto revelador da capacidade contributiva.
Porém, a autonomia da tributação em apreço quanto à sua base de incidência, quanto às taxas aplicáveis e até quanto ao momento de pagamento, só por si, não determina – nem lógica nem juridicamente – a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento da coleta do próprio IRC – questão regulada, em geral, no artigo 90.º, n.º 1, do CIRC –, nomeadamente quanto à integração daquela nesta última e, por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeito da realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Tal questão, na ausência de norma específica de sentido contrário – como aquela que, por exemplo, veio a ser consagrada no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC – releva da própria configuração legislativa do IRC, nesta incluída a relevância ou irrelevância, para efeitos de apuramento da coleta final de IRC, dos montantes pagos a título de tributações autónomas.
Ora, como mencionado, foi precisamente sobre tal conformação legal que a decisão ora recorrida se pronunciou, e foi com base na interpretação do direito infraconstitucional aplicável à situação concreta que entendeu formular o juízo positivo de inconstitucionalidade quanto à norma que, sob a invocação do caráter interpretativo do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, estatuiu (também) para anos fiscais anteriores ao de 2016 que a coleta correspondente às tributações autónomas liquidadas e pagas num dado ano não podia integrar a coleta de IRC desse mesmo ano para efeito de lhe poderem ser deduzidos os valores previstos no artigo 90.º, n.º 2, daquele Código.

7 - A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido “correto" do direito preexistente. «O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar» (cfr. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cfr. idem, ibidem). E, por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação fixada pelo autor da lei interpretativa – a chamada “interpretação autêntica" – «vale com a força inerente à nova manifestação de vontade» do respetivo autor (cfr. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).
Devido a tal integração, pode em certo sentido falar-se de uma retroatividade formal inerente a toda a lei interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é “formal", visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior – cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos –] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cfr. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., cit., p. 246). Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. idem, ibidem, p. 247).
Na ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, releva que a lei interpretativa formalmente retroativa apenas declara o direito preexistente; ao passo que a lei interpretativa substancialmente retroativa, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.
Pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa" certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Trata-se em tais casos de um disfarce da retroatividade substancial dessa lei. E, «quando não existe norma de hierarquia superior que proíba a retroatividade, tal qualificação do legislador deve ser aceite para efeito de dar a tal disposição um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º [do Código Civil]» (v. Autor cit., ibidem, p. 245). Porém, existindo uma norma superior que proíba a retroatividade (substancial), importará determinar se a lei nova reveste caráter inovador ou não, visto que, se a nova lei constituir direito novo, violará necessariamente a aludida proibição de retroatividade.

8 - No domínio fiscal rege, desde a revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição: ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa. Consequentemente, o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroativos, os agravem. Como a jurisprudência constitucional tem afirmado, está em causa a proibição de estatuir consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação de todos os factos relevantes à luz do direito aplicável antes da estatuição das consequências jurídicas novas(sobre a importância da delimitação do âmbito de proteção da proibição em causa, cfr. o Acórdão n.º 353/2005: não aplicação, em princípio, às matérias do procedimento tributário). Como se refere no Acórdão n.º 575/2014:

«O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos. Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado.
A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas – tomadas pelo legislador ordinário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores históricos – façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma “técnica" de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de «retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica», ou ainda, mais simplesmente, de «retrospetividade». Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito.
É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual.
Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui.»

Na verdade, o Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento de que a proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (assim, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010).

9 - In casu, e de acordo com a interpretação feita na decisão recorrida, a solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração introduzida pelo artigo 133.º da LOE 2016 é inovadora e diminui as possibilidades de o contribuinte realizar deduções à coleta de IRC, ou seja, agrava desfavoravelmente o modo de calcular o quantum anualmente devido a título de IRC. A determinação da aplicação de tal solução a anos fiscais anteriores ao da entrada em vigor da LOE 2016 prevista no artigo 135.º desta mesma Lei torna-a, por conseguinte, substancialmente retroativa e, nessa mesma medida, incompatível com a proibição da imposição de impostos retroativos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
No domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, a interpretação do direito infraconstitucional feita pelo tribunal recorrido é, em princípio, vinculativa para o Tribunal Constitucional, já que a este, conforme mencionado anteriormente, compete «julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC).
No entanto, tal não impede o Tribunal Constitucional, se assim o entender justificadamente, de se afastar da interpretação acolhida pela decisão recorrida, e de a substituir por outra, desde que conforme à Constituição (cfr. o artigo 80.º, n.º 3, da LTC). Com efeito, tal possibilidade é inerente à natureza jurisdicional do Tribunal Constitucional e assegura que a função depuradora própria da fiscalização concreta da constitucionalidade a seu cargo se exerça sobre normas de direito infraconstitucional resultantes de interpretações não unilaterais e, tanto quanto possível, partilhadas pela generalidade dos tribunais.
No caso sub iudicio, contudo, inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016. A decisão recorrida fundamentou, com base em argumentos de ordem literal, teleológica e sistemática tal caráter inovador e evidenciou a existência de, pelo menos, quatro outras decisões jurisdicionais no mesmo sentido. Assim, não deve o Tribunal Constitucional corrigir a interpretação da norma recusada aplicar pelo tribunal a quo nem inverter o juízo de inconstitucionalidade por este formulado.

10 - Por outro lado, na determinação da existência de uma lei interpretativa substancialmente retroativa, não pode, de um ponto de vista constitucional, abstrair-se das posições recíprocas do legislador e da jurisdição quanto à fixação do direito aplicável.
A iurisdictio ou função de “dizer o direito" – de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais – compete constitucionalmente aos tribunais (artigo 202.º, n.º 1).
É certo que, como este Tribunal vem entendendo, a compreensão constitucional do princípio da separação de poderes, apesar de convocar critérios orgânicos e funcionais, não se reconduz a uma simples distribuição de funções por diferentes órgãos. Inexiste, na verdade, no texto constitucional, «qualquer estrita correspondência entre sepa ração de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado cons tante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articula ção funcional» (cfr. o Acórdão n.º 395/2012). Mas, por outro lado, isso não impede que se reconheça a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional (v. o citado Acórdão n.º 395/2012 e também o Acórdão n.º 510/2016). É neste contexto que se justifica falar de uma teoria do núcleo essencial das funções, e que ganha sentido útil o princípio da separação de poderes entendido como princípio normativo autónomo dotado de um irredutível núcleo essencial. Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, tal sentido consubstancia-se em fundamentar a «declaração da inconstitucionalidade de qualquer ato que ponha em causa o sistema de competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto constitucional (Acs. TC n.ºs 195/94, 677/95, 1/97, 24/98 e 152/02)» (v. Autores cits., Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. V ao art. 111.º, p. 46).
Os mesmos Autores não deixam, todavia, de advertir para a necessidade de uma caracterização tipológica – e não definitória – das diferentes funções do Estado:

«O conceito de “núcleo essencial de funções" não dispensa, porém, que, em termos metódicos, se estabeleça uma interpretação sistemática de poderes, competências e funções a partir dos vários preceitos jurídico-positivos da Constituição. Determinar como as funções e competências são distribuídas pelos vários órgãos resulta, em primeiro lugar, da ordem global de competências tal como ela vem positivada na lei constitucional. Em segundo lugar, esta ordem de poderes, competências e funções transporta dimensões materiais que permitirão recortar as características específicas das competências e funções constitucionalmente reservadas a certos órgãos de soberania e que não podem ser “desviadas" para outros. Como os diferentes órgãos podem desempenhar competências e funções que não se reconduzem àquelas que, de forma principal, a Constituição lhes reserva, é admissível a restrição da caracterização material apenas às formas, conteúdos e resultados tipicamente atribuídos a cada órgão de soberania.» (v. idem, ibidem, pp. 46-47)

Daí que se «os atos próprios de cada função devem provir, em princípio, dos órgãos correspondentes a essa função», são descortináveis, no direito positivo, «algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas» (assim, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010, p. 35).
No tocante à função jurisdicional, a Constituição comete, conforme referido, o seu exercício aos órgãos de soberania tribunais (artigos 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):

«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional" – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio" como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI ao art. 202.º, p. 509).

Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados (sobre o sentido e alcance possível daquelas três áreas, cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IV ao artigo 202.º, pp. 18-19; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VII ao art. 202.º, p. 509). Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito […]».

11 - Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma. O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial.
Acresce que o legislador não pode ultrapassar tais limites nem neutralizar ou esvaziar o correspondente poder de controlo dos tribunais consignado no artigo 204.º da Constituição, por via da afirmação, na qualidade de autor formal, de que a norma legal por si aprovada tem um alcance meramente declarativo ou clarificador e não inovador. A Constituição não reconhece ao legislador competência para a interpretação autêntica de normas legais. Recordando a lição de BATISTA MACHADO (supra n.º 7), a lei legalmente qualificada como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada. Por ser assim, a decisão última sobre o alcance constitutivo ou declarativo de certa lei interpretativa pertence aos tribunais. São estes que, no exercício da jurisdição, interpretam a “lei interpretativa" e determinam se a mesma inova face ao direito preexistente ou se limita a clarificá-lo.
Competindo, por outro lado, aos tribunais a função jurisdicional – a iurisdictio –, é claro que a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações jurisdicionais de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis. Na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer". E, a ser assim, a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial.
Pode, portanto, dizer-se que, do ponto de vista da Constituição, para que uma disciplina normativa autoqualificada como meramente interpretativa seja considerada constitutiva (de novo direito) e, como tal, substancialmente retroativa, basta a verificação de que à norma interpretada na sua primitiva versão pudesse ter sido imputado pelos tribunais um sentido que, na sequência da norma interpretativa, ficou necessariamente excluído (cfr. as decisões do Bundesverfassungsgericht de 2.5.2012 e de 17.12.2013, em BVerfGE 131, 20 [37-38] e 135, 1 [16-17], respetivamente). Com efeito:

«A disciplina clarificadora é constitutiva logo nos casos em que visa excluir a interpretação [da lei preexistente] feita por um tribunal comum – mesmo não se tratando de um tribunal superior –, relativamente a situações passadas. O legislador confere à lei retroativa uma eficácia constitutiva, na medida em que pretende esclarecer para o passado, por via de uma lei com um sentido unívoco, certa afirmação que originou, quanto ao direito aplicável, um entendimento aparentemente não unívoco ou, pelo menos, uma aplicação do mesmo não uniforme. […] Decisivo é que o legislador tenha a intenção de corrigir ou excluir uma dada interpretação [feita pelos tribunais].» (v. BVerfGE 135, 1 [18-19])

É esse precisamente o efeito do artigo 135.º da LOE 2016, ao qualificar como “lei interpretativa" o n.º 21 aditado pelo artigo 133.º ao artigo 88.º do CIRC. Na verdade, e como bem refere a decisão ora recorrida, aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufragado nas decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa.
Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição).

III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC – número esse aditado pelo artigo 133.º da citada Lei – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016; e, em consequência, b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido por discordar dos fundamentos que conduziram à decisão de inconstitucionalidade, em especial no que se refere (i) à aceitação da interpretação do direito infraconstitucional que é feita na decisão recorrida; (ii) e à natureza inovadora (ou constitutiva) da norma impugnada.

1 - O Acórdão começa por considerar que «inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016». Tal asserção tem implícito que o “direito certo" ditado pela norma interpretada era no sentido de que as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (onde se inclui o pagamento especial por conta) podem ser efetuadas à coleta das tributações autónomas.
A maioria que vez vencimento não teve qualquer dúvida quanto a esse sentido quando, noutra passagem do Acórdão, afirma que a autonomia das tributações autónomas - quanto à base de incidência, quanto às taxas, e até quanto ao momento de pagamento – não determina a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento do próprio IRC, designadamente quanto à integração daqueles nesta última, e «por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeitos de realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC».
Ora, no meu ponto de vista, o que acontece é que essa interpretação é errónea, porque só é possível chegar a esse resultado interpretativo numa leitura demasiado rígida dos artigos 89.º e 90.º do CIRC. Numa interpretação puramente literal até se pode concluir que as deduções referidas no n.º 2 do artigo 90.º também podem ser feitas à parte da coleta respeitante às liquidações das tributações autónomas, na medida em que essa parte está integrada na liquidação global do IRC. Mas a interpretação dos respetivos enunciados não pode fazer descaso da “racionalidade" que inspirou o legislador na admissibilidade das deduções à coleta referidas no n.º 2 do artigo 90.º e na criação das tributações autónomas.
As deduções previstas nesse artigo, segundo uma certa ordem de precedência (1.ª - dupla tributação jurídica internacional; 2.ª - dupla tributação económica internacional, 3.ª – benefícios fiscais; 4.ª – pagamento especial por conta; e 5.ª – retenções na fonte, insuscetíveis de compensação ou reembolso), quando aplicadas às tributações autónomas frustram os objetivos por elas visados. Com efeito, se fosse possível deduzir benefícios fiscais ou o PEC à coleta das tributações autónomas neutralizar-se-ia a razão de ser dessas tributações.
Através desse tipo de tributos, o legislador visa evitar que os contribuintes utilizem para fins não empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis ou que realizem despesas e encargos que representam ou possam configurar evasão fiscal ilegítima. Ora, o sentido antiabuso das tributações autónomas não seria conseguido se a coleta que delas resulta fosse sujeita àquele tipo de deduções. Se a intenção é penalizar (ou prevenir) certo tipo de despesas que diminuem a matéria tributável do IRC e a respetiva coleta, não faz sentido - e até é contraditório - permitir que a coleta das tributações autónomas se esvazie com deduções que visam direta e exclusivamente o desagravamento fiscal do lucro tributável e da coleta que ao mesmo respeita. É incoerente desincentivar as empresas à realização de despesas que diminuem a medida real do imposto sobre o rendimento, através de um encargo fiscal adicional, e por outro lado, permitir que na coleta daí resultante sejam deduzidas as quantias que incentivam os lucros (benefícios fiscais) ou que pretendam garantir uma coleta mínima de IRC (PEC). A Admissibilidade destas deduções acabaria por impedir que as tributações autónomas realizassem o objetivo para que foram criadas.
Assim, a natureza e a finalidade das tributações autónomas é incompatível com a dedução à correspondente coleta de benefícios fiscais e de pagamentos efetuados por conta do imposto sobre o lucro tributável. De modo que a norma do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, para se tornar compatível com o pensamento legislativo, deve ser interpretada no sentido de apenas permitir deduções à parte da coleta que tem por fonte o lucro tributável.
No que se refere ao pagamento especial por conta (PEC), a interpretação restritiva daquela norma impõese pela própria natureza desse pagamento. O artigo 33.º da Lei Geral Tributária define-o como entrega pecuniária antecipada, “no período de formação do facto tributário", do imposto devido a final. Trata-se, pois, do pagamento antecipado de um imposto periódico, cujo facto tributário se produz de modo sucessivo – como é o caso do IRC – e não de um imposto instantâneo, que se esgota no ato de realização - como é o caso das tributações autónomas. Se é por conta dos rendimentos obtidos num determinado ano, então o crédito do PEC só pode ser afetado à coleta que resulta do apuramento do IRC calculado sobre esse rendimento. Caso fosse possível deduzir o PEC à coleta das tributações autónomas, não só se perderia o caráter antiabuso destas como se permitiria que o sujeito passivo não pagasse imposto sobe o seu rendimento real.

2 - O Acórdão qualifica a norma impugnada como “substancialmente retroativa", porque contraria um certo entendimento da jurisprudência arbitral quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC. Refere que «entre as múltiplas declarações do direito de que a lei era possível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis. Na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer". E a ser assim, a interpretação ou esclarecimentos formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial».
Agora, pressupõe-se que a solução do direito era controvertida e incerta, comportando vários sentidos, mas considera-se que a fixação de um dos sentidos como o único admissível reveste natureza “constitutiva", porque ficou “necessariamente excluído" o sentido diferente que os tribunais lhe imputavam.
No fundo, o que se julga é que as normas interpretativas (as «verdadeiramente interpretativas») são incompatíveis com a proibição da retroatividade em matéria fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP. Na medida em que vinculam os tribunais a uma determinada interpretação, entre várias em abstrato possíveis, elas implicam, necessariamente, uma aplicação retroativa de lei interpretanda.
Ora, não me parece que o princípio constitucional da proibição da retroatividade tenha um caráter tão absoluto que impeça a existência de leis fiscais interpretativas. Como resulta do texto do Acórdão, o Tribunal Constitucional exclui do âmbito aplicativo desse princípio as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, o que, desde logo, significa que a norma constitucional não afasta todo e qualquer tipo de retroatividade.
A irretroatividade fiscal é uma manifestação do princípio da segurança jurídica ou da confiança inscrito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP). Daí que, em certos casos, há necessidade de avaliar e ponderar devidamente o interesse privado dos contribuintes com o interesse público que justifica agravamentos fiscais com um certo grau de retroatividade. Assim, nos chamados casos de retroatividade falsa ou imprópria, o grau de confiança suscitado nos contribuintes e a relevância do mesmo não pode deixar de ser ponderado ao nível da proporcionalidade.
No caso das normas fiscais interpretativas materiais - as que visam solucionar a incerteza de lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia, com um conteúdo que o julgador ou intérprete a ela pudesse chegar, sem ultrapassar os limites típicos impostos à interpretação e aplicação da lei – não se pode dizer que a confiança dos contribuintes no sentido da norma interpretada gera expectativas legítimas da sua continuidade no ordenamento jurídico. Se a norma é controversa, a única expectativa que existe é que o legislador a solucione. Se ele o faz, optando por um dos entendimentos possíveis, que até já era seguida pela jurisprudência, não se pode dizer que há frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva da confiança depositada na norma interpretada.
O caso dos autos é paradigmático da inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso. Desde o nascimento do PEC – Decreto-lei n.º 44/98, de 3 de março –, com as alterações que sofreu até à data, não foi questionada a não dedutibilidade da quantia adiantada na coleta das tributações autónomas. O próprio programa informático da Administração Tributária de suporte à apresentação das declarações de IRC não possibilitava tal dedução. Portanto, o n.º 2 do artigo 90.º era interpretado e aplicado pela AT – e não consta que haja contribuintes que tenham impugnado nos tribunais tributários tal interpretação – no sentido de que as deduções do PEC (e as demais) não eram deduzidas na coleta das tributações autónomas. Apenas com a intervenção do tribunal arbitral é que surgiram – em 2014 e 2015 – decisões do CAAD, umas no sentido de que o PEC e os benefícios fiscais podiam ser deduzidos à coleta das tributações autónomas, e outras em sentido contrário.
Ora, a expectativa na manutenção de uma das interpretações efetuadas pela jurisprudência arbitral não se pode confundir com as expectativas geradas pela própria lei. Se a norma era duvidosa e se foi criada uma controvérsia quanto à dimensão aplicativa da mesma, o expectável era que o legislador viesse resolver a incerteza num dos sentidos possíveis, provavelmente no sentido com a mesma sempre foi aplicada, que, como vimos, essa era a interpretação mais correta. Assim, como sustenta Batista Machado, «se porventura se pode dizer que as variações e mudanças jurisprudenciais no que respeita à interpretação de uma regra de direito, pelo menos na medida em que esta regra nunca foi considerada certa, não têm efeito retroativo, então também a lei interpretativa nos termos atrás definidos não será substancialmente retroativa» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, pág. 247).

Acórdão n.º 267/2017, de 31 de maio

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório
1 – A. Lda., recorrida nos presentes autos em que é recorrente a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT"), requereu em 11 de dezembro de 2015 a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT"), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciação da ilegalidade da autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC") relativa ao exercício de 2012, «no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma em IRC de € 13 901,43, com a sua consequente anulação nesta parte por afastamento indevido das deduções à coleta, atenta a manifesta ilegalidade da liquidação nesta parte […]». Subsidiariamente, para o caso de se entender que o artigo 90.º do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro (“CIRC"), não se aplica às tributações autónomas, pediu a declaração da ilegalidade e consequente anulação «da liquidação das tributações autónomas […] por ausência de base legal para a sua efetivação (cfr. artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da LGT, e artigo 103.º, n.º 3» da Constituição.

Para justificar o seu pedido de pronúncia arbitral, a ora recorrida invocou, em síntese, o seguinte:
– Que entregou no dia 17 de maio de 2013 a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2012, tendo apurado um montante de tributações autónomas no valor de €13.901,43, já pago;
– Que, a título de pagamento especial por conta (“PEC") referente ao mesmo exercício, pagou uma soma total no valor de € 27 848,08;
– Que se viu impedida pelo sistema informático da AT de inscrever o valor das referidas taxas de tributação autónoma em IRC, de modo a deduzir à coleta de IRC resultante dessas mesmas taxas o montante acumulado de PEC;
– O que resultou num excesso de IRC pago por referência ao exercício de 2012;
– Com efeito, abrangendo a coleta de IRC (também) a coleta das tributações autónomas em IRC, negarse a dedução do PEC à coleta em IRC das tributações autónomas viola a alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

Aceite o pedido e constituído o tribunal arbitral em 22 de fevereiro de 2016, foi a AT notificada para responder. Em 5 de abril de 2016, a AT respondeu invocando, além do mais, o disposto no artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016 – LOE 2016), que procedeu a diversas alterações ao CIRC, bem como o disposto no artigo 135.º daquele mesmo diploma. O mencionado artigo 133.º aditou ao artigo 88.º do CIRC o n.º 21, estabelecendo que a liquidação das tributações autónomas em IRC deve ser efetuada nos termos do artigo 89.º e que, ao montante global apurado na sequência dessa liquidação, não devem ser feitas quaisquer deduções. Por outro lado, o artigo 135.º da LOE 2016 conferiu natureza interpretativa à redação dada ao artigo 88.º, n.º 21, do CIRC.

Em alegações, a então requerente, ora recorrida, sustentou, no que ora releva, que a citada alteração legal, a ter eficácia retroativa, seria inconstitucional por violação da proibição da retroatividade da lei fiscal.

2 – Por decisão de 3 de maio de 2016, o tribunal arbitral julgou procedente o pedido principal, isto é, «pedido de anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada relativamente ao ato de autoliquidação de IRC referente ao ano de 2012, na parte correspondente à dedução à coleta das taxas de tributação autónoma, no valor de € 13 901,43» e condenou a AT a restituir à requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios (fls. 15).

O tribunal começou por fixar a interpretação do artigo 90.º do CIRC, n.ºs 1 (liquidação do IRC) e 2, alínea d) (dedução do PEC ao montante apurado nos termos do número anterior, isto é, à coleta do IRC), considerando que o PEC deve ser deduzido à coleta de IRC apurada, a qual abrange as taxas de tributação autónoma devidas. A autonomia desta tributação «restringe-se às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efetuado nos termos do artigo 90.º» (fls 13). E acrescentou:

«Tal como já foi longamente explicitado pela Jurisprudência, o propósito subjacente à criação das taxas de tributação autónoma é o combate à evasão fiscal, visando-se com a sua criação obviar à transferência para a esfera das empresas de despesas que têm subjacentes intuito remuneratório, de modo a melhorar o enquadramento fiscal dos rendimentos da esfera pessoal, ou a obviar a que sejam contabilizados custos que não têm uma causa empresarial.
Esse objetivo é prosseguido através da tributação autónoma, não sendo desvirtuado pelo facto desse imposto poder ser satisfeito pelo imposto cobrado através do PEC.
Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, não se vê de que modo se possa entender existir um conflito de normas e daí retirar como consequência a impossibilidade de dedução do PEC à coleta, aí incluindo as tributações autónomas.
Na verdade, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, esta deverá processar-se nos termos gerais previstos no Código do IRC, por força do princípio da legalidade tributária, que resulta do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, que impedem que a liquidação de imposto se efetue sem base legal.
Conclui-se, assim, que, contrariamente ao defendido, nesta situação, pela AT, a norma prevista no artigo 90.º, n.º 1 e 2 d) do Código do IRC, deve ser interpretada no sentido de se considerar que a coleta de IRC abrange as taxas de tributação autónoma, que são também IRC.» (fls. 13)
Seguidamente, a decisão recorrida analisa as alterações introduzidas neste enquadramento jurídico pela LOE 2016, designadamente, em resultado do aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC pelo artigo 133.º e do artigo 135.º, respetivamente com a seguinte redação:
– «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.» – «A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa»

Começou por considerar-se naquela decisão, quanto ao novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC:

«Atenta a nova redação dada ao artigo 88.º, n.º 21 do Código do IRC, verifica-se que o legislador veio, então, considerar que a liquidação das tributações autónomas em sede de IRC deve ser efetuada nos termos gerais, mas que não podem ser efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.
Deste modo, parece poder concluir-se que, à luz da nova redação do artigo 88.º do Código do IRC, o PEC previsto no artigo 90.º, n.º 2 d) do Código do IRC não pode ser deduzido à coleta das tributações autónomas» (fls. 13, v.º)

Porém, relativamente à natureza interpretativa de tal preceito estatuída no artigo 135.º da LOE 2016 entendeu-se:

«[A] matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que esclarece que A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores parece ter verdadeira natureza interpretativa, conquanto tal entendimento, para além de resultar da Lei, como se defende nesta decisão, tem um caráter genericamente consensual pelos aplicadores daquela.
Contudo, a matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que pretende esclarecer que não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, não parece ser uma verdadeira norma interpretativa, uma vez que não existe um entendimento constante e pacífico sobre essa discussão.
Ademais, a existir um certo entendimento sobre a questão “interpretada" poder-se-á dizer que tal seria no sentido contrário (Decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015).
Razão pela qual se considera que não é possível concluir que “se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga".
[…]
Acresce que, não havendo base legal anterior aplicável especificamente à liquidação das tributações autónomas, não há, também, na verdade, uma norma especificamente interpretada, na qual se possa integrar a designada norma interpretativa, ou pelo menos, a perceção sobre a norma interpretada é bastante dificultada.
Também por isso, entende-se que os contribuintes não podiam contar com a norma criada pelo disposto na 2.º parte do n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, razão pela qual a norma em causa pode violar expectativas seguras e legitimamente fundadas.
Assim sendo, a 2.º parte da norma em causa não pode ser considerada uma norma interpretativa em sentido autêntico, sendo, portanto, proibida a sua retroatividade.
Atento o exposto, conclui-se que a 2.º parte da norma em análise não pode ser aplicada ao caso sub judice, cujo ato impugnado se reporta ao ano 2012, sob pena de violação do disposto no artigo 103.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 12.º da LGT».

3 – É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), para apreciação da norma constante do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pelo artigo 133.º da LOE 2016 com os efeitos previstos no artigo 135.º da mesma Lei.

Admitido o recurso (fls. 25), e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para produzirem alegações.

3.1. São as seguintes as conclusões essenciais da alegação apresentada pela AT:
«[D. A norma da 2.ª parte do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC com os efeitos previstos no artigo 135.º da LOE 2016] veio clarificar positivando, como se evidenciou supra, o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT.
E. Pelo que qualquer interpretação dissonante seria materialmente inconstitucional.
F. Mormente aquela perfilhada na decisão arbitral que desaplicou aquela norma com fundamento em inconstitucionalidade.
G. É axiomático que a norma em apreço tendo um caráter interpretativo integra-se na lei interpretada (cfr.
art.º 13.º do Código Civil), formando ambas um conjunto incindível […].
M. Verificando-se que, de facto e insofismavelmente, o novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC tem caráter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência,
N. pelo que este Colendo Tribunal terá que concluir pela não desconformidade da norma com a CRP, expurgando, em consequência, do ordenamento jurídico da decisão do Tribunal Arbitral Singular que decidiu a sua desaplicação com fundamento em inconstitucionalidade. […]
P. Antes de mais, há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroatividade da lei, previstos no art.º 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende a Recorrente que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
Q. Da mesma forma que se considera que, face à mais recente jurisprudência deste Colendo Tribunal em matéria de interpretação e delimitação da amplitude do princípio da proibição da retroatividade fiscal Acórdão n.º 310/2012, de 20 de junho, e acórdão 399/2010, de 27 de outubro, as conclusões do acórdão n.º 172/2000, de 22-03-2000, proferido no proc. 762/98, não justificarão uma proibição absoluta de leis interpretativas.
R. A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal – tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal – deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respetivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial) do imposto.
S. E a verdade é que a prática jurisprudencial, de que são exemplos os acórdãos do STA de 21-03-2012, proc. n.º 830/11, e de 16-05-2012, proc. n.º 675/11, tem admitido a existência de leis interpretativas de âmbito fiscal.
T. Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efetivamente perante uma lei interpretativa conforme as disposições constitucionais, U. o que, nos parece por demais evidente, tal como foi reforçado e evidenciado ao longo dos autos pela ora Recorrente.
V. Considera-se que, em consonância com a doutrina citada no presente excurso, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:

(i) existir uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e
(ii) o legislador consagrar uma solução interpretativa que resolva a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.

W. Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012, pode e deve aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa que se faz no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, conforme a CRP, ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, à luz dos ensinamentos de Batista Machado, porquanto a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor, i, e.:

(i) a solução que resultava do teor literal do artigo 93.0, n.º 1, do CIRC era controvertida e a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia;
(ii) o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário otimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.

X. Ademais, não se antevê ou vislumbra que o regime que resulta do n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC encerre qualquer contradição na medida em que, segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de tributações autónomas devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efetuadas deduções.
Y. Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e se foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do art.º 88.º que a Recorrida e, aliás, sublinhe-se, todos os contribuintes, sem que fosse alvitrada qualquer questiúncula, preencheram as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição percetível.
Z. Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos inelutavelmente obrigados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa.
AA. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC era controversa e incerta ao nível jurisprudencial (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Recorrida), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015, consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/
BB. Já a nível do quadro normativo em vigor e da factualidade que enformaram ao longo de anos o procedimento de autoliquidação do imposto de IRC, nunca houve controvérsia, sendo um dado adquirido que as tributações autónomas, em face da sua própria génese hermenêutica, não seriam suscetíveis de qualquer dedução.
CC. É certo que a solução consagrada legalmente não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.
DD. Contra este entendimento não procederá a alegação da Recorrida de que, para se estar perante uma efetiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador, o que não se verificaria na presente situação, com exceção da mencionada decisão arbitral proferida no âmbito do processo n,º 113/2015-T, todos os acórdãos mencionados pela ora Recorrida são posteriores à alteração legislativa, nenhum tendo aderido à tese por esta propugnada.
EE. Essencial é, pois, que a solução consagrada pelo legislador pudesse ser apurada pelo intérprete ou julgador dentro do quadro normativo em vigor e no âmbito da controvérsia ou incerteza gerada pela norma – a qual foi suscitada em 2015 (no processo arbitral n.º 113/2015-T supra mencionado)
FF. Aliás, como veio a ser.
GG. Tal como já vem ante exposto, a verdade é que a solução consagrada pelo legislador corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais), vidé, entre outras, as decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.º 673/2015-T; processo n.º 722/2015-T; processo n.º 736/2015-T; processo n.º 745/2015-T; processo n.º 751/2015-T processo n.º 767/2015-T; processo n.º 774/2015-T; processo n.º 783/2015-T. Acresce que,
HH. Esta conclusão quanto ao caráter interpretativo do novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC, com inerente aplicação da mesma nos termos do art. 13.º do Código Civil, não viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal decorrente do n.º 3 do art. 103.º da CRP, como alegado pela Recorrida por se entender que poria em causa a coleta de tributações autónomas cujos factos tributários se consumaram no ano de 2012.
II. No entender da Recorrida, caso se aplique retroativamente a norma introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, tal afetará a liquidação e apuramento das ditas coletas, levando ao pagamento de mais tributação autónoma em IRC para os exercícios em causa.
JJ. Ora, salvo melhor opinião, a questão em discussão nos autos não contende com a coleta a título de tributações autónomas do ano de 2012, que se manterá sempre inalterada qualquer que seja a decisão sobre possibilidade de dedução do PEC.
KK. Isto porque, contrariamente ao que resulta da posição da Recorrida, não há necessária correspondência conceptual entre coleta de imposto e imposto a pagar na sequência da entrega da declaração de rendimentos prevista no art.º 120.º do CIRC.
LL. Nessa medida, mesmo que o pedido efetuado pela Recorrida fosse deferido, esta estaria sujeita exatamente ao mesmo nível de tributação (a coleta seria exatamente a mesma);
MM. o que diferiria seria o imposto a entregar ao Estado na sequência da autoliquidação efetuada no Mod.
22, porquanto seriam deduzidos a tal valor os montantes antecipadamente entregues a título de pagamentos especiais por conta.
NN. Acresce que, no entender da Recorrente a aceitação da natureza interpretativa da referida norma não viola o n.º 3 do art. 103.º da CRP porque, como supra referido, o princípio constitucional em causa proíbe a criação de impostos retroativos, cingindo, assim, o seu âmbito de aplicação às matérias de incidência subjetiva, objetiva, temporal e territorial.
OO. Ora, a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria coleta. Improcede, por isso, inconstitucionalidade invocada pela Recorrida por alegada violação da proibição da retroatividade do imposto.
PP. As normas que preveem os pagamentos especiais por conta não eram, em princípio, normas de incidência de IRC, mas sim sobre a sua liquidação e pagamento, pelo que, nessa medida, não estarão abrangidas pela proibição constitucional de retroatividade.
QQ. Mas, antes da redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, ao n.º 3 do artigo 93.º (A anterior redação é a do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que renumerou e republicou o CIRC e em que o art.º 93.º corresponde ao anterior art.º 87), na inviabilidade de dedução dos pagamentos especiais por conta no período a que se reportam e nos períodos subsequentes, aquelas normas podiam acabar por criar uma situação de incidência de IRC, autónoma em relação a qualquer outro facto tributário, se não viesse a ser permitido o reembolso nos termos do n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, que dependia do preenchimento de certas e determinadas condições.
RR. E, mesmo nesta hipótese, estar-se-á perante um facto tributário complexo de formação sucessiva, que é constituído pelo volume de negócios no ano a que se reportam os pagamentos especiais por conta conjugado com a inviabilidade de dedução nos períodos previstos na lei e o não reembolso nos termos previstos no artigo 93.º, n.º 3, do CIRC.
SS. À face deste regime, a situação jurídica criada com os pagamentos especiais por conta efetuados no ano de 2012 ainda não está estabilizada, o que, desde logo, afasta a violação da proibição de retroatividade das leis fiscais, na visão do Tribunal Constitucional, pois o facto tributário que a lei nova pretende regular não se verificou integralmente nem produziu todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga – veja-se, nesse sentido, o acórdão deste Venerando Tribunal Constitucional n.º 399/10, de 27-10-2010.
TT. Por fim, como também decidido no acórdão arbitral coletivo presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, proferido no proc. n.º 673/2015-T, consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/, citado pela Recorrida, não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porquanto,

(…) não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade [do pagamento especial por conta]à coleta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente poderia ser adotadas pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T.
Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à coleta das tributações autónomas.
"

UU. Face a tudo o que vem supra exposto supra, resta concluir pelo caráter interpretativo do n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que, sendo diretamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art.º 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Recorrida por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efetuadas quaisquer deduções.
VV. É manifesto portanto que a atribuição de natureza interpretativa à referida norma não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição da retroatividade pelo que não se pode julgar inconstitucional o art.º 135.º do referido diploma legal.
WW. E sempre se dirá, com toda a propriedade, que, na tese que a Recorrente aqui sufraga e, bem assim, nos autos, o legislador, ao aditar este n.º 21 ao art.º 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado, limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes, como ficou demonstrado pelo raciocínio supra exposto.
XX. De onde que, a existência da norma ora posta em causa, e sobretudo o efeito que lhe foi atribuído, se traduz numa mera evidência clarificadora. […]
ZZ. Para se poder afirmar que uma lei tem aquela natureza é necessário que, de substancial, ela nada tenha trazido em relação à lei interpretada e se tenha limitado a resolver uma incerteza ou controvérsia jurídicas, dandolhe um entendimento que a jurisprudência, se o tivesse querido, já poderia ter adotado.
AAA. A norma interpretativa que ora se questiona visa, pois, pôr fim à controvérsia que se instalou, por mera e exclusiva vontade deste douto mandatário da Recorrida, sobre o sentido que se devia dar a determinada lei, fixando ela própria o sentido que esta deve ter, a qual será vinculante.
BBB. Trata-se de uma interpretação autêntica que se destina a conferir uma maior certeza e igualdade na aplicação da lei.
CCC. Ora, no caso em apreço, reiterando o que já vimos a expor no presente excurso, se bem analisarmos o predito diploma legal, este mais não faz do que aclarar num raciocínio interpretativo, de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço (tributações autónomas), […]
EEE. Desde a criação das Tributações Autónomas, no início da década de 90, e a sua evolução legislativa, sempre foi pacífico por que as tributações autónomas não admitiam qualquer dedução.
FFF. Com efeito, a lei ao atribuir caráter interpretativo, não se afasta das soluções que já antes se viam firmadas quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, antes sim, interpreta e esclarece a aplicação prática dos dispositivos ora controvertidos, revelando uma solução não inovatória, de forma a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
GGG. É, pois, inquestionável que o julgador e o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar outra solução que não solução que a nova lei vem interpretar e que era já aquela que os contribuintes e a Recorrente adotavam,
HHH. Donde decorre, conclusivamente, que o aditamento ora em apreço apenas se limita a traduzir a axiomática evidência de toda a teleologia histórica da norma. […]
JJJ. O que, em última análise, dispensaria qualquer aplicação retroativa daquela norma e, por conseguinte, tornando inócua essa discussão e totalmente errática a decisão do Tribunal Arbitral Singular em desaplicar aquela norma.
KKK. Assim, terá de se concluir que a interpretação autêntica que se faz no n.º 21 do art.º 88.ºdo CIRC, na parte em que se reconduz à não dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta nas tributações autónomas, não ofende o princípio da não retroatividade na criação de impostos, entendido como reportando-se apenas à retroatividade autêntica, reportada a factos tributários que se completaram e produziram todos os seus efeitos no passado.»

3.2. A recorrida A., Lda., terminou as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
«A) [A] conclusão de que a norma do Código do IRC que prevê as deduções à coleta em IRC (artigo 90.º, n.º 2) abrange a coleta em IRC das tributações autónomas, é uma exigência, em primeiro lugar, da própria letra da lei, tal como entendida pela própria AT e por avassaladora jurisprudência tributária: conforme relatado supra a propósito do segundo Ato desta história, quer a AT, quer os tribunais arbitrais em dezenas de decisões arbitrais que deram razão à AT, entendem que a coleta da tributação autónoma em IRC é IRC, inclusive nos propósitos ou função que aquela serve (combate, através de tributação compensatória, a despesas e encargos de duvidosa empresarialidade, pelo menos na sua totalidade, mas não obstante deduzidas/os pelas empresas no apuramento do seu lucro tributável em IRC).
B) E é também uma exigência do princípio da coerência e da interpretação sistemática: não se pode simultaneamente concluir (sem lei que, previamente, crie a dissonância) que quando o Código do IRC se refere à coleta do IRC no seu artigo 45.º, n.º 1, alínea a) (na redação e numeração em vigor até 2013), aí se inclui, sem necessidade de nomeação própria, a coleta da tributação autónoma em IRC (e assim concluiu avassaladora jurisprudência tributária, a pedido da AT, no acima relatado segundo Ato desta história),
C) e nuns artigos mais à frente (artigo 90.º, n.º 2, do Código do IRC) concluir, em oposição, que a coleta do IRC não abrange a coleta da tributação autónoma em IRC.
D) Que essa incoerência interpretativa não é sustentável foi a conclusão, até à Lei do Orçamento do Estado para 2016 (LOE 2016), de 4 acórdãos arbitrais protagonizados por 8 árbitros, a cujo entendimento aderiu ainda um nono árbitro em voto de vencido num quinto acórdão arbitral de data também anterior à entrada em vigor da LOE 2016. Constitui esta atividade jurisprudencial o terceiro Ato desta história.
E) Deste consenso se desviou uma corrente minoritária constituída por este quinto acórdão arbitral, que seguiu uma outra decisão arbitral (tribunal singular), ambos com data anterior à entrada em vigor da LOE 2016 (e até esta data não há mais decisões arbitrais ou acórdãos sobre o âmbito de aplicação do artigo 90.º, n.º 2, do Código do IRC). Decisões divergentes estas que no seu conjunto obtiveram a adesão de apenas dois árbitros. […]
H) Donde que quer de um prisma de contagem de espingardas até à LOE 2016 (número de decisões arbitrais em cada um dos campos opostos), quer de um ponto de vista substantivo ou material, se possa e deva concluir que a correta interpretação (fundada no respeito pelo princípio da coerência exigida ao intérprete/aplicador da lei) era a de que na coleta do IRC a que se dirige o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC se abrange a coleta da tributação autónoma em IRC.
I) Mas há mais: onde se encontra a norma interpretada, o objeto da interpretação? De parte alguma da LOE 2016 resulta identificada a norma que a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC visaria interpretar. O que constitui mais um forte sintoma de que se está perante uma novidade normativa, por oposição a visão interpretativa de norma velha.
J) E há mais ainda: quer o artigo 89.º, quer o artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, do CIRC, referem-se ao IRC, a todo o IRC (nenhuma ressalva fazem ou faziam), e ambos se inserem na mesma fase lógica da regulamentação da liquidação do IRC, pós obtenção da coleta primária (apurada de acordo com os antecedentes oitenta e oito artigos).
K) Neste contexto (que é o real), como podem ambas as partes, 1 e 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC (introduzido pela LOE 2016), serem simultaneamente interpretativas do que dispõem os artigos 89.º e 90.º do CIRC, em sentidos opostos? Como podem ser simultaneamente interpretativas (nos dizeres do artigo 135.º da LOE 2016) no sentido de que o IRC do artigo 89.º inclui também as tributações autónomas (parte 1 do n.º 21 do artigo 88.º), e no sentido oposto de que o IRC do artigo 90.º, pelo menos o do seu n.º 2, não inclui as tributações autónomas?
L) Não podem, isso é uma impossibilidade lógica e sistémica. Uma das duas prescrições, ou a da parte 1, ou a da parte 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, não tem, e não tem necessariamente, por impossibilidade lógica, caráter interpretativo.
M) E sabendo-se da esmagadora jurisprudência, acompanhada pela AT, no sentido da qualificação da coleta da tributação autónoma em IRC como possuindo a natureza de IRC (conforme 2.º Ato desta história, atrás relatado), fácil é concluir que quem nesta dualidade de prescrições de sentido oposto tem natureza interpretativa é a parte 1. E que portanto, e necessariamente, a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem caráter inovatório (contracorrente, no caso contra a inserção da coleta primária da tributação autónoma na coleta do IRC).
N) Por todas estas razões, algumas das quais por si sós suficientes, crê-se, a recorrida julga ter podido demonstrar que não é materialmente interpretativa a exclusão das deduções à coleta da tributação autónoma constante da segunda parte do novo n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, introduzida pela LOE 2016.
O) Mas mesmo que não houvesse certeza a propósito da ausência de caráter interpretativo na nova norma, atento o papel garantístico, com dignidade constitucional, da proibição de retroatividade da lei fiscal, a dúvida razoável é suficiente: no mínimo, transfere o ónus (se é que não esteve Iá sempre, atentas as regras gerais do ónus da prova) para quem clama pela natureza interpretativa de uma lei fiscal e com isso pretenda aplicá-la retroativamente sem a oposição da norma constitucional que o proíbe, de mostrar (anulando a dúvida razoável) que é essa realmente, em substância, para lá da mera proclamação, a sua natureza.
P) Antes de prosseguir, e dando um passo atrás, refira-se ainda que, como se demonstrou supra, uma norma como a introduzida pela LOE 2016 (o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC), que impede haja deduções à coleta sobre a coleta da tributação autónoma em IRC, é um dos tipos de norma (entre muitos outros, conforme supra exemplificado) que interfere com o quantum do imposto a pagar por referência ao facto tributário/exercício fiscal em concreto em causa. Pelo que, provocando aumento do imposto a pagar, como sucede, está sujeita à proibição de retroatividade prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Q) No caso concreto da decisão arbitral recorrida aqui em causa, a imposição da nova norma traduz-se num agravamento do imposto final a pagar a título de tributação autónoma no exercício de 2012, no montante de € 13.901,43, conforme quantificado nos artigos 13.º e segs. do pedido de pronúncia arbitral (junto à cópia digital do processo arbitral).
R) Não é o PEC, e sua eventual recuperação mais tarde ao longo dos anos, que aqui estão em causa, mas, antes, o montante final da tributação autónoma a pagar em cada exercício fiscal/facto tributário agregado por exercício, montante final esse que aumenta em razão da eliminação (com pretensão retroativa) de deduções automáticas à coleta da tributação autónoma (deduções quer de PEC, quer de benefícios fiscais).
S) Em suma, o que a recorrente AT pretende obter neste recurso é uma declaração de não desconformidade à Constituição de um aumento de imposto por força de norma que, com caráter retroativo, eliminou as deduções à coleta da tributação autónoma em IRC, entre as quais se contam a dedução de PEC. […].
T) Prosseguindo, o que se relatou atrás nestas conclusões é sobretudo relevante para quem interprete o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, como excluindo do seu campo de aplicação leis fiscais materialmente (autenticamente) interpretativas, e nessa linha tente aferir se uma lei é ou não autenticamente interpretativa, elegendo para isso os critérios que repute de adequados (operação prévia em si mesma atreita a múltiplas opiniões e incertezas).
U) A decisão arbitral recorrida, pela sua parte e na esteira de outras que a precederam, entendeu que sem a interferência da LOE 2016 a interpretação da lei em vigor (existente) à data dos factos (2012) era a de que as deduções à coleta do IRC também se aplicam à coleta da tributação autónoma em IRC. É esta, pois, a interpretação que tem da lei o árbitro no exercício da função de julgar com isenção e imparcialidade o que diz a lei em vigor à data dos factos. Função de julgar que, acrescenta-se, é poder soberano que no seu exercício não pode nem deve ser condicionado pelos outros poderes soberanos.
V) E numa segunda fase da análise da questão que lhe foi submetida a decisão arbitral recorrida rejeitou que a LOE 2016 lhe ditasse como deveria ser julgada/interpretada a lei em vigor à data dos factos. Raciocinando, pensa-se que bem, que onde a Lei Fundamental proíbe que o legislador altere o passado normativo, não lhe é constitucionalmente admitido que o altere ditando à função soberana de julgar como deve ser entendido esse passado normativo.
W) Para a recorrida que tem de ser assim é uma evidência. De outro modo, lá diz o adágio, deixar-se-á, onde haja atrevimento bastante, que entre pela janela aquilo a que se fechou a porta. […]
Y) Em primeiro lugar, quer a recorrida lembrar que a proibição constitucional em causa não distingue entre mais imposto aplicável ao passado por força de lei dita interpretativa e mais imposto aplicável por força de lei que tal não se arrogue.
Z) E há razão para respeitar essa indiferenciação. Com efeito, se o legislador de hoje tem necessidade de aprovar nova lei que esclareça o que no seu entendimento foi querido pelo legislador que fez a lei do passado, é porque detetou o risco de este por si querido entendimento acerca do legislador no passado não ser partilhado quer pelos destinatários dessa lei antiga quer, sobretudo, pelos órgãos de soberania que têm por missão, e com independência do poder legislativo ou de qualquer outro, decidir o que diz a lei.
AA) Ora, se assim é a nova lei com pretensão de fixar o sentido do quadro jurídico anterior a ela, adita inevitavelmente nova juridicidade a esse quadro. Pode-se insistir em usar a terminologia de que o faz interpretativamente, mas o que não se pode negar é que essa “interpretação" acrescenta ao que havia anteriormente, mesmo que se pudesse concluir que, ao contrário da interpretação oposta, é respeitadora dos limites (regras) da interpretação: escolhe uma opção interpretativa (que origina mais imposto, no caso) e exclui a outra, condicionando com isso, para mais, o imposto aplicável. Imposto este que, pretendendo-se aplicá-lo ao passado, viola a proibição constitucional de retroatividade.
BB) De ângulo equivalente: ao excluir a interpretação oposta da lei antiga por quem de direito (os tribunais, no limite), origina a lei nova, necessariamente (e outro não é o seu objetivo), imposto, ao excluir a interpretação que não gerava esse imposto. Com o que a pretensão da sua aplicação ao passado viola também, necessariamente, a proibição constitucional de retroatividade em matéria de imposto. […] DD) Mas mais ainda. Em matéria fiscal quis o legislador uma proteção reforçada: só há impostos autorizados pelo Parlamento, e o próprio Parlamento está proibido de autorizar impostos para o passado.
EE) Como derivação desta proteção reforçada do cidadão ou empresa, em que o Parlamento está impedido de interferir com o passado em matéria de impostos, temos que para o passado só devem contar as normas então existentes e o sentido que lhes for fixado pelos tribunais, com independência (livres de interferência) dos outros poderes soberanos.
FF) Dito de outro modo, em matéria como esta do imposto o Parlamento legisla com eficácia de ora em diante, e se quiser altera de ora em diante o que vinha de trás, podendo evidentemente opinar, mais ou menos persuasivamente, que em seu entender o conteúdo dessa alteração já se retirava da lei antiga.
GG) Mas não mais do que isso, uma vez que em matéria protegida pela proibição constitucional de retroatividade da lei, tem de ficar, por definição, reservada em exclusivo ao órgão de soberania independente que são os tribunais, a fixação do alcance da lei. Dito de outro modo, nestas matérias que beneficiam da proteção constitucional reforçada contra o poder legislativo que é a proibição de retroatividade das leis, é conatural àquela proteção que o princípio da separação do poder legislativo face ao poder judicial tem de ser levado ao extremo de se impedir que o primeiro diga ao segundo como há de interpretar a lei.
HH) Separação reforçada esta entre poder legislativo e judicial que não é alcançada se se permitir que o Parlamento, através de nova lei, fixe aos tribunais o que devem entender com respeito à lei fiscal do passado.
II) É de recordar aqui o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/00. Em suma, como se expressou este acórdão do Tribunal Constitucional, o reforço constitucional da proteção contra o poder legislativo que se contém na proibição de retroatividade das suas leis, é um reforço da segurança jurídica e da proteção da tutela da confiança que se não compagina com interferências no processo de aplicação da lei pelos órgãos nela investidos, o que afasta a admissibilidade de leis interpretativas nas matérias sob aquela proteção constitucional. Sejam as leis interpretativas autênticas, ou não, o que quer que se entenda por autênticas, questão em si mesma com respeito à qual dificilmente se eliminará a imprecisão e a discussão. […]
KK) Em conclusão, entende a recorrida que a atribuição pelo artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março) de natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global" [de tributação autónoma em IRCJ apurado, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e consequente atribuição de caráter retroativo a esta nova norma fiscal,
LL) configura uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroatividade em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende-se que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa.
MM) E por violação, também, do princípio da separação entre poderes legislativo e judicial e do princípio da independência do poder judicial, reforçados que são sempre que se esteja perante matéria sujeita à proibição constitucional de retroatividade de novas leis.
NN) Violação, pois, também, em articulação com a proibição de retroatividade, do artigo 2.º (Estado de direito democrático, e separação e interdependência de poderes, sendo que quanto a este último aspeto no caso está em causa a perspetiva da interdependência – e por conseguinte negação de excessos e de ocupação de espaço que não lhe pertence – do poder político-legislativo face ao poder judicial), do artigo 111.º, n.º 1 (separação e interdependência dos órgãos de soberania, que é ainda um limite material de revisão – artigo 288.º, alínea j), da Constituição), e do artigo 203.º (independência dos tribunais, outro limite material de revisão – artigo 288.º, alínea m), da Constituição), todos da Constituição.»

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
4 – Importa começar por delimitar o objeto material do presente recurso, já que ao Tribunal Constitucional compete «julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC). O ponto de partida é, por conseguinte, o juízo positivo de inconstitucionalidade normativa formulado pela decisão recorrida.
O tribunal a quo começou por fixar o direito aplicável ao tempo em que ocorreram os factos relevantes e que ainda vigorava aquando do início do presente processo. Nesse sentido, considerou, atenta a letra e a teleologia da lei, que, sem prejuízo da autonomia tributária das tributações autónomas em sede de IRC, o respetivo montante integra a coleta do IRC de um dado ano. Por isso, e na ausência de qualquer norma especialmente aplicável, a parte da coleta de IRC correspondente às tributações autónomas também deve ser deduzida dos valores previstos no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC, onde se incluem, na alínea d), o PEC desse ano. In casu, e uma vez que (i) o rendimento da recorrida apurado na sequência da liquidação de IRC referente ao ano fiscal de 2012 se limitava ao valor das tributações autónomas pagas durante esse ano (€ 13 901,43); e (ii) o montante do PEC por si efetuado nesse mesmo ano era superior (€ 27 848,08); tinha a recorrida o direito à restituição do IRC pago em 2012 (o qual, como referido, correspondia precisamente ao valor das tributações autónomas desse mesmo ano).
Sucede que o n.º 21 aditado ao artigo 88.º do CIRC pelo artigo 133.º da LOE 2016 veio proibir a realização de quaisquer deduções ao montante global das tributações autónomas apurado num dado ano. Ou seja, as deduções à coleta do IRC previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC – incluindo o PEC – deixaram de poder ser feitas com referência ao valor das tributações autónomas, havendo assim que distinguir na coleta do IRC duas componentes: a coleta de IRC correspondente às tributações autónomas, à qual não são efetuadas quaisquer deduções; e a coleta de IRC remanescente, em relação à qual continuam a poder ser feitas as deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Acresce que o artigo 135.º da mesma LOE 2016, ao atribuir caráter interpretativo ao novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, determinou que a impossibilidade de fazer deduções à coleta de IRC correspondente às tributações autónomas se aplicasse também nos anos fiscais anteriores àquele em que a nova lei entrou em vigor.
O tribunal a quo não discutiu a constitucionalidade da nova solução do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC;
limitou-se a considerar que a mesma não tinha correspondência no direito anterior e que, como tal, não pode ser considerada «uma norma interpretativa em sentido autêntico». Mais: a mesma norma, na medida em que se pretenda aplicar a anos fiscais anteriores ao do seu início de vigência, mormente por força do artigo 135.º da LOE 2016, pode afetar o quantum do IRC a pagar nesses anos fiscais, hipótese que, a verificar-se, implica retroatividade fiscal constitucionalmente proibida (artigo 103.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição). Atentas as circunstâncias, considerou o tribunal a quo que tal hipótese se concretizava no caso sub iudice, pelo que recusou aplicação à norma em causa.
Em suma, no presente recurso não está em causa saber se as tributações autónomas em IRC, enquanto factos tributários a se de caráter instantâneo, podem originar uma coleta autónoma em sede de IRC, uma vez que tal é aceite. Também não se discute se o PEC, além de poder ser deduzido à coleta do IRC no ano em que é realizado, pode igualmente, na medida em que tal dedução não tenha sido possível por insuficiência da coleta de IRC, ser deduzido em anos fiscais posteriores. As questões a dilucidar são, diferentemente, saber se, antes da LOE 2016:

i) O montante pago a título de tributações autónomas em sede de IRC integra a coleta deste imposto;
ii) Decorria de alguma norma do CIRC que o PEC (assim como as demais deduções referidas no artigo 90.º, n.º 2, do citado Código) realizado num dado ano não podia ser deduzido à coleta de IRC apurada nesse ano, incluindo nessa coleta os montantes já pagos a título de tributações autónomas em sede de IRC.

Tendo respondido afirmativamente à primeira questão e negativamente à segunda – sendo certo que ambas as questões relevam exclusivamente da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional –, o tribunal recorrido considerou que o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem caráter inovador, razão pela qual a sua aplicabilidade a anos fiscais anteriores ao de 2016, conforme determinado pelo artigo 135.º da LOE 2016 – na medida em que atribui uma natureza meramente interpretativa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil – implica retroatividade fiscal constitucionalmente proibida.
Assim, o presente recurso tem por objeto a norma do artigo 135.º da LOE 2016, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma da 2.ª parte do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pelo artigo 133.º da citada Lei, segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de PEC nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016.

5 – Para o correto enquadramento da questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso, cumpre recordar o sentido e alcance das tributações autónomas em sede de IRC.
Estas encontram-se previstas nos artigos 88.º e 89.º do CIRC (redação atual):

«Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma

1 – As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.

2 – A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efetuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda por sujeitos passivos que aufiram rendimentos enquadráveis no artigo 7.º.

3 – São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10% no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000;
b) 27,5% no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000 e inferior a (euro) 35 000;
c) 35% no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000.

4 – (Revogado)

5 – Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6 – Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:
a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e
b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

7 – São tributados autonomamente à taxa de 10% os encargos efetuados ou suportados relativos a despesas de representação, considerando-se como tal, nomeadamente, as despesas suportadas com receções, refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades.

8 – São sujeitas ao regime dos n.ºs 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respetivamente, 35% ou 55%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.

9 – São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos efetuados ou suportados relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.

10 – (Revogado)

11 – São tributados autonomamente, à taxa de 23%, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

12 – Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.

13 – São tributados autonomamente, à taxa de 35%:
a) Os gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objetivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo, qualquer que seja a modalidade de pagamento, quer este seja efetuado diretamente pelo sujeito passivo quer haja transferência das responsabilidades inerentes para uma outra entidade;
b) Os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a (euro) 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.

14 – As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.

15 – As taxas de tributação autónoma previstas nos n.ºs 7, 9, 11 e 13, bem como o disposto no número anterior, não são aplicáveis aos sujeitos passivos a que se aplique o regime simplificado de determinação da matéria coletável.

16 – […]

17 – No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5%, 10% e 17,5%.

18 – No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5%, 15% e 27,5%.

19 – No caso de se verificar o incumprimento de qualquer das condições previstas na parte final da alínea b) do n.º 13, o montante correspondente à tributação autónoma que deveria ter sido liquidada é adicionado ao valor do IRC liquidado relativo ao período de tributação em que se verifique aquele incumprimento. (Aditado pela LOE 2016)

20 – Para efeitos do disposto no n.º 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69.º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do artigo 70.º. (Aditado pela LOE 2016)

21 – A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado. (Aditado pela LOE 2016)

Artigo 89.º
Competência para a liquidação

A liquidação do IRC é efetuada:
a) Pelo próprio sujeito passivo, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º;
b) Pela Direção-Geral dos Impostos, nos restantes casos.» Como observa CASALTA NABAIS, as taxas de tributação em apreço começaram por se reportar a situações de elevado risco de fraude e evasões fiscais. Contudo, com o «andar do tempo, a função dessas tributações autónomas, que entretanto se diversificaram extraordinariamente e aumentaram de valor, alterou-se profundamente passando a ser progressivamente a de obter (mais) receitas fiscais, assumindo-se, assim, como efetivos impostos sobre a despesa, se bem que enxertados, em termos totalmente anómalos, na tributação do rendimento das empresas» (cfr. Autor cit., “Investir e tributar no atual sistema fiscal português" in O Memorando da Troika e as Empresas, Almedina, Coimbra, 2012, p. 27).
De todo o modo, e como referido, o que se discutiu no processo-base do presente recurso é a aplicabilidade ao montante apurado a título de tributações autónomas num dado ano fiscal do disposto no artigo 90.º do CIRC, antes de o n.º 21 do artigo 88.º ter sido aditado pelo artigo 133.º da LOE 2016:

«Artigo 90.º
Procedimento e forma de liquidação

1 – A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;
c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 – Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;
b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;
c) A relativa a benefícios fiscais;
d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.
[…]»

6 – A jurisprudência constitucional relativa à matéria das tributações autónomas em sede de IRC centrou-se na questão da respetiva autonomia no âmbito deste imposto, em especial, no que se refere ao momento da verificação do facto determinante do pagamento da tributação autónoma, nomeadamente para efeito de qualificar como retroativas em sentido próprio ou meramente retrospetivas alterações legislativas incidentes sobre elementos essenciais de tal tributação – como, por exemplo, o agravamento da respetiva taxa.
Assim, o Acórdão n.º 310/2012, revertendo o entendimento anteriormente acolhido no Acórdão n.º 18/2011, julgou inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que fazia retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRC, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal (decisões acessíveis, assim como as demais adiante referidas, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Entendeu-se nesse aresto que, sendo o facto gerador do imposto a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo, que se esgota no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação, era manifesto estar-se perante uma hipótese de aplicação retroativa. Esta jurisprudência foi reiterada, posteriormente, por diversas vezes: v., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 382/2012, 617/2012 (plenário), 85/2013 (plenário), 197/2016 ou 171/2017 (embora este último apresente diferenças relativamente ao entendimento da proibição constitucional da retroatividade fiscal).
O Acórdão n.º 197/2016, sintetizou nestes termos a autonomia própria da figura:

«Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do DL 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação.
Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500. Entretanto, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 14 ao artigo 88.º, prevendo a elevação das taxas de tributação autónoma previstas nesse artigo em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores.
A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial" e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).
Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.
Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.
No entanto, através de sucessivas alterações legais, o legislador tem vindo a alargar o âmbito da tributação autónoma, tendo passado a incluir, com a Lei do Orçamento do Estado de 2010, os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estes cessem funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas ultrapassem certos limiares.
O relatório do Orçamento de Estado para 2010 justifica essas medidas como uma forma de assegurar “uma distribuição mais justa dos encargos tributários e a uma moralização progressiva das políticas remuneratórias das empresas". Como a doutrina tem reconhecido, trata-se, neste caso, de mecanismos de tributação autónoma que se afastam do desígnio inicial de combater a fraude e a evasão fiscais – como sucedia com as despesas não documentadas-, mas que poderão ainda enquadrar-se no objetivo de limitar despesas que poderão repercutir-se no rendimento coletável das empresas.
No caso da alínea a) do n.º 13 do artigo 88.º, a finalidade é a de penalizar pela via fiscal a atribuição de indemnizações inexigíveis, por não estarem contratualmente previstas ou não se relacionarem com objetivos de produtividade, ou indemnizações de montante excessivo por ultrapassarem o valor das remunerações que seriam devidas se não houvesse lugar à rescisão do contrato antes do seu termo.
No caso da alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º, a intenção da lei parece ser a de sujeitar a tributação autónoma as remunerações variáveis que se não encontrem associadas a critérios de produtividade, isso porque se excecionam da tributação aquelas situações em que o pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.
O agravamento da tributação em 10 pontos percentuais introduzido pelo n.º 14 do artigo 88.º visa penalizar as empresas que, apurando resultados fiscais negativos, mantêm a sua política de gastos em matéria de despesas de representação, ajudas de custo, compensação por deslocações ao serviço da empresa, indemnizações e bónus pagos a gestores, administradores ou gerentes (cfr. HELENA MARTINS, Lições de Fiscalidade, Coimbra, 2012, págs. 282-284).
No caso das medidas previstas no n.º 13 do artigo 88.º, não está em causa a indeterminação dos beneficiários ou o risco de fuga ao pagamento do imposto devido pelo recebimento das importâncias que são despendidas pelas empresas, visto que os beneficiários são identificáveis e as verbas estão sujeitas à correspondente tributação em IRS. Não se trata, por isso, de medidas diretamente dirigidas ao combate à fraude e evasão fiscais, pretendendo-se antes reduzir, mediante a incidência do imposto, a vantagem fiscal que resulta para as empresas da realização de despesas que são dedutíveis mas não têm uma causa empresarial.» Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador – como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.
A lógica da tributação autónoma a que se referem as disposições do n.º 13 do artigo 88.º parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para atribuir aos seus gestores indemnizações excessivas e não contratualmente previstas e que não têm direta relação com o desempenho individual na obtenção de resultados económicos positivos. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.
A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização [da] despesa» (n.º 2 da fundamentação)

Em suma, a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico, mas antes desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa. A despesa objeto de tributação constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação, sendo a sua realização assumida pelo legislador como facto revelador da capacidade contributiva.
Porém, a autonomia da tributação em apreço quanto à sua base de incidência, quanto às taxas aplicáveis e até quanto ao momento de pagamento, só por si, não determina – nem lógica nem juridicamente – a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento da coleta do próprio IRC – questão regulada, em geral, no artigo 90.º, n.º 1, do CIRC –, nomeadamente quanto à integração daquela nesta última e, por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeito da realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Tal questão, na ausência de norma específica de sentido contrário – como aquela que, por exemplo, veio a ser consagrada no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC – releva da própria configuração legislativa do IRC, nesta incluída a relevância ou irrelevância, para efeitos de apuramento da coleta final de IRC, dos montantes pagos a título de tributações autónomas.
Ora, como mencionado, foi precisamente sobre tal conformação legal que a decisão ora recorrida se pronunciou, e foi com base na interpretação do direito infraconstitucional aplicável à situação concreta que entendeu formular o juízo positivo de inconstitucionalidade quanto à norma que, sob a invocação do caráter interpretativo do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, estatuiu (também) para anos fiscais anteriores ao de 2016 que a coleta correspondente às tributações autónomas liquidadas e pagas num dado ano não podia integrar a coleta de IRC desse mesmo ano para efeito de lhe poderem ser deduzidos os valores previstos no artigo 90.º, n.º 2, daquele Código.

7 – A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido “correto" do direito preexistente. «O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar» (cfr. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cfr. idem, ibidem). E, por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação fixada pelo autor da lei interpretativa – a chamada “interpretação autêntica" – «vale com a força inerente à nova manifestação de vontade» do respetivo autor (cfr. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).
Devido a tal integração, pode em certo sentido falar-se de uma retroatividade formal inerente a toda a lei interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é “formal", visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior – cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos –] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cfr. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito…, cit., p. 246). Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. idem, ibidem, p. 247).
Na ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, releva que a lei interpretativa formalmente retroativa apenas declara o direito preexistente; ao passo que a lei interpretativa substancialmente retroativa, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.
Pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa" certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Trata-se em tais casos de um disfarce da retroatividade substancial dessa lei. E, «quando não existe norma de hierarquia superior que proíba a retroatividade, tal qualificação do legislador deve ser aceite para efeito de dar a tal disposição um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º [do Código Civil]» (v. Autor cit., ibidem, p. 245). Porém, existindo uma norma superior que proíba a retroatividade (substancial), importará determinar se a lei nova reveste caráter inovador ou não, visto que, se a nova lei constituir direito novo, violará necessariamente a aludida proibição de retroatividade.

8 – No domínio fiscal rege, desde a revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição: ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa. Consequentemente, o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroativos, os agravem. Como a jurisprudência constitucional tem afirmado, está em causa a proibição de estatuir consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação de todos os factos relevantes à luz do direito aplicável antes da estatuição das consequências jurídicas novas(sobre a importância da delimitação do âmbito de proteção da proibição em causa, cfr. o Acórdão n.º 353/2005: não aplicação, em princípio, às matérias do procedimento tributário). Como se refere no Acórdão n.º 575/2014:

«O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos. Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado.
A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas – tomadas pelo legislador ordinário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores históricos – façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma “técnica" de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de «retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica», ou ainda, mais simplesmente, de «retrospetividade». Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito.
É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual.
Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui.»

Na verdade, o Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento de que a proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (assim, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010).

9 – In casu, e de acordo com a interpretação feita na decisão recorrida, a solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração introduzida pelo artigo 133.º da LOE 2016 é inovadora e diminui as possibilidades de o contribuinte realizar deduções à coleta de IRC, ou seja, agrava desfavoravelmente o modo de calcular o quantum anualmente devido a título de IRC. A determinação da aplicação de tal solução a anos fiscais anteriores ao da entrada em vigor da LOE 2016 prevista no artigo 135.º desta mesma Lei torna-a, por conseguinte, substancialmente retroativa e, nessa mesma medida, incompatível com a proibição da imposição de impostos retroativos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
No domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, a interpretação do direito infraconstitucional feita pelo tribunal recorrido é, em princípio, vinculativa para o Tribunal Constitucional, já que a este, conforme mencionado anteriormente, compete «julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC).
No entanto, tal não impede o Tribunal Constitucional, se assim o entender justificadamente, de se afastar da interpretação acolhida pela decisão recorrida, e de a substituir por outra, desde que conforme à Constituição (cfr. o artigo 80.º, n.º 3, da LTC). Com efeito, tal possibilidade é inerente à natureza jurisdicional do Tribunal Constitucional e assegura que a função depuradora própria da fiscalização concreta da constitucionalidade a seu cargo se exerça sobre normas de direito infraconstitucional resultantes de interpretações não unilaterais e, tanto quanto possível, partilhadas pela generalidade dos tribunais.
No caso sub iudicio, contudo, inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016. A decisão recorrida fundamentou, com base em argumentos de ordem literal, teleológica e sistemática tal caráter inovador e evidenciou a existência de, pelo menos, quatro outras decisões jurisdicionais no mesmo sentido. Assim, não deve o Tribunal Constitucional corrigir a interpretação da norma recusada aplicar pelo tribunal a quo nem inverter o juízo de inconstitucionalidade por este formulado.

10 – Por outro lado, na determinação da existência de uma lei interpretativa substancialmente retroativa, não pode, de um ponto de vista constitucional, abstrair-se das posições recíprocas do legislador e da jurisdição quanto à fixação do direito aplicável.
A iurisdictio ou função de “dizer o direito" – de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais – compete constitucionalmente aos tribunais (artigo 202.º, n.º 1).
É certo que, como este Tribunal vem entendendo, a compreensão constitucional do princípio da separação de poderes, apesar de convocar critérios orgânicos e funcionais, não se reconduz a uma simples distribuição de funções por diferentes órgãos. Inexiste, na verdade, no texto constitucional, «qualquer estrita correspondência entre sepa ração de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado cons tante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articula ção funcional» (cfr. o Acórdão n.º 395/2012). Mas, por outro lado, isso não impede que se reconheça a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional (v. o citado Acórdão n.º 395/2012 e também o Acórdão n.º 510/2016). É neste contexto que se justifica falar de uma teoria do núcleo essencial das funções, e que ganha sentido útil o princípio da separação de poderes entendido como princípio normativo autónomo dotado de um irredutível núcleo essencial. Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, tal sentido consubstancia-se em fundamentar a «declaração da inconstitucionalidade de qualquer ato que ponha em causa o sistema de competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto constitucional (Acs. TC n.ºs 195/94, 677/95, 1/97, 24/98 e 152/02)» (v. Autores cits., Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. V ao art. 111.º, p. 46).
Os mesmos Autores não deixam, todavia, de advertir para a necessidade de uma caracterização tipológica – e não definitória – das diferentes funções do Estado:

«O conceito de “núcleo essencial de funções" não dispensa, porém, que, em termos metódicos, se estabeleça uma interpretação sistemática de poderes, competências e funções a partir dos vários preceitos jurídico-positivos da Constituição. Determinar como as funções e competências são distribuídas pelos vários órgãos resulta, em primeiro lugar, da ordem global de competências tal como ela vem positivada na lei constitucional. Em segundo lugar, esta ordem de poderes, competências e funções transporta dimensões materiais que permitirão recortar as características específicas das competências e funções constitucionalmente reservadas a certos órgãos de soberania e que não podem ser “desviadas" para outros. Como os diferentes órgãos podem desempenhar competências e funções que não se reconduzem àquelas que, de forma principal, a Constituição lhes reserva, é admissível a restrição da caracterização material apenas às formas, conteúdos e resultados tipicamente atribuídos a cada órgão de soberania.» (v. idem, ibidem, pp. 46-47)

Daí que se «os atos próprios de cada função devem provir, em princípio, dos órgãos correspondentes a essa função», são descortináveis, no direito positivo, «algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas» (assim, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010, p. 35).
No tocante à função jurisdicional, a Constituição comete, conforme referido, o seu exercício aos órgãos de soberania tribunais (artigos 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):

«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional" – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio" como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI ao art. 202.º, p. 509).

Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados (sobre o sentido e alcance possível daquelas três áreas, cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IV ao artigo 202.º, pp. 18-19; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VII ao art. 202.º, p. 509). Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito […]».

11 – Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma. O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial.
Acresce que o legislador não pode ultrapassar tais limites nem neutralizar ou esvaziar o correspondente poder de controlo dos tribunais consignado no artigo 204.º da Constituição, por via da afirmação, na qualidade de autor formal, de que a norma legal por si aprovada tem um alcance meramente declarativo ou clarificador e não inovador. A Constituição não reconhece ao legislador competência para a interpretação autêntica de normas legais. Recordando a lição de BATISTA MACHADO (supra n.º 7), a lei legalmente qualificada como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada. Por ser assim, a decisão última sobre o alcance constitutivo ou declarativo de certa lei interpretativa pertence aos tribunais. São estes que, no exercício da jurisdição, interpretam a “lei interpretativa" e determinam se a mesma inova face ao direito preexistente ou se limita a clarificá-lo.
Competindo, por outro lado, aos tribunais a função jurisdicional – a iurisdictio –, é claro que a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações jurisdicionais de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis. Na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer". E, a ser assim, a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial.
Pode, portanto, dizer-se que, do ponto de vista da Constituição, para que uma disciplina normativa autoqualificada como meramente interpretativa seja considerada constitutiva (de novo direito) e, como tal, substancialmente retroativa, basta a verificação de que à norma interpretada na sua primitiva versão pudesse ter sido imputado pelos tribunais um sentido que, na sequência da norma interpretativa, ficou necessariamente excluído (cfr. as decisões do Bundesverfassungsgericht de 2.5.2012 e de 17.12.2013, em BVerfGE 131, 20 [37-38] e 135, 1 [16-17], respetivamente). Com efeito:

«A disciplina clarificadora é constitutiva logo nos casos em que visa excluir a interpretação [da lei preexistente] feita por um tribunal comum – mesmo não se tratando de um tribunal superior –, relativamente a situações passadas. O legislador confere à lei retroativa uma eficácia constitutiva, na medida em que pretende esclarecer para o passado, por via de uma lei com um sentido unívoco, certa afirmação que originou, quanto ao direito aplicável, um entendimento aparentemente não unívoco ou, pelo menos, uma aplicação do mesmo não uniforme. […] Decisivo é que o legislador tenha a intenção de corrigir ou excluir uma dada interpretação [feita pelos tribunais].» (v. BVerfGE 135, 1 [18-19])

É esse precisamente o efeito do artigo 135.º da LOE 2016, ao qualificar como “lei interpretativa" o n.º 21 aditado pelo artigo 133.º ao artigo 88.º do CIRC. Na verdade, e como bem refere a decisão ora recorrida, aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufragado nas decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa.
Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição).

III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC – número esse aditado pelo artigo 133.º da citada Lei – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016; e, em consequência, b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido por discordar dos fundamentos que conduziram à decisão de inconstitucionalidade, em especial no que se refere (i) à aceitação da interpretação do direito infraconstitucional que é feita na decisão recorrida; (ii) e à natureza inovadora (ou constitutiva) da norma impugnada.

1 – O Acórdão começa por considerar que «inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016». Tal asserção tem implícito que o “direito certo" ditado pela norma interpretada era no sentido de que as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (onde se inclui o pagamento especial por conta) podem ser efetuadas à coleta das tributações autónomas.
A maioria que vez vencimento não teve qualquer dúvida quanto a esse sentido quando, noutra passagem do Acórdão, afirma que a autonomia das tributações autónomas – quanto à base de incidência, quanto às taxas, e até quanto ao momento de pagamento – não determina a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento do próprio IRC, designadamente quanto à integração daqueles nesta última, e «por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeitos de realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC».
Ora, no meu ponto de vista, o que acontece é que essa interpretação é errónea, porque só é possível chegar a esse resultado interpretativo numa leitura demasiado rígida dos artigos 89.º e 90.º do CIRC. Numa interpretação puramente literal até se pode concluir que as deduções referidas no n.º 2 do artigo 90.º também podem ser feitas à parte da coleta respeitante às liquidações das tributações autónomas, na medida em que essa parte está integrada na liquidação global do IRC. Mas a interpretação dos respetivos enunciados não pode fazer descaso da “racionalidade" que inspirou o legislador na admissibilidade das deduções à coleta referidas no n.º 2 do artigo 90.º e na criação das tributações autónomas.
As deduções previstas nesse artigo, segundo uma certa ordem de precedência (1.ª – dupla tributação jurídica internacional; 2.ª – dupla tributação económica internacional, 3.ª – benefícios fiscais; 4.ª – pagamento especial por conta; e 5.ª – retenções na fonte, insuscetíveis de compensação ou reembolso), quando aplicadas às tributações autónomas frustram os objetivos por elas visados. Com efeito, se fosse possível deduzir benefícios fiscais ou o PEC à coleta das tributações autónomas neutralizar-se-ia a razão de ser dessas tributações.
Através desse tipo de tributos, o legislador visa evitar que os contribuintes utilizem para fins não empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis ou que realizem despesas e encargos que representam ou possam configurar evasão fiscal ilegítima. Ora, o sentido antiabuso das tributações autónomas não seria conseguido se a coleta que delas resulta fosse sujeita àquele tipo de deduções. Se a intenção é penalizar (ou prevenir) certo tipo de despesas que diminuem a matéria tributável do IRC e a respetiva coleta, não faz sentido – e até é contraditório – permitir que a coleta das tributações autónomas se esvazie com deduções que visam direta e exclusivamente o desagravamento fiscal do lucro tributável e da coleta que ao mesmo respeita. É incoerente desincentivar as empresas à realização de despesas que diminuem a medida real do imposto sobre o rendimento, através de um encargo fiscal adicional, e por outro lado, permitir que na coleta daí resultante sejam deduzidas as quantias que incentivam os lucros (benefícios fiscais) ou que pretendam garantir uma coleta mínima de IRC (PEC). A Admissibilidade destas deduções acabaria por impedir que as tributações autónomas realizassem o objetivo para que foram criadas.
Assim, a natureza e a finalidade das tributações autónomas é incompatível com a dedução à correspondente coleta de benefícios fiscais e de pagamentos efetuados por conta do imposto sobre o lucro tributável. De modo que a norma do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, para se tornar compatível com o pensamento legislativo, deve ser interpretada no sentido de apenas permitir deduções à parte da coleta que tem por fonte o lucro tributável.
No que se refere ao pagamento especial por conta (PEC), a interpretação restritiva daquela norma impõese pela própria natureza desse pagamento. O artigo 33.º da Lei Geral Tributária define-o como entrega pecuniária antecipada, “no período de formação do facto tributário", do imposto devido a final. Trata-se, pois, do pagamento antecipado de um imposto periódico, cujo facto tributário se produz de modo sucessivo – como é o caso do IRC – e não de um imposto instantâneo, que se esgota no ato de realização – como é o caso das tributações autónomas. Se é por conta dos rendimentos obtidos num determinado ano, então o crédito do PEC só pode ser afetado à coleta que resulta do apuramento do IRC calculado sobre esse rendimento. Caso fosse possível deduzir o PEC à coleta das tributações autónomas, não só se perderia o caráter antiabuso destas como se permitiria que o sujeito passivo não pagasse imposto sobe o seu rendimento real.

2 – O Acórdão qualifica a norma impugnada como “substancialmente retroativa", porque contraria um certo entendimento da jurisprudência arbitral quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC. Refere que «entre as múltiplas declarações do direito de que a lei era possível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis. Na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer". E a ser assim, a interpretação ou esclarecimentos formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial».
Agora, pressupõe-se que a solução do direito era controvertida e incerta, comportando vários sentidos, mas considera-se que a fixação de um dos sentidos como o único admissível reveste natureza “constitutiva", porque ficou “necessariamente excluído" o sentido diferente que os tribunais lhe imputavam.
No fundo, o que se julga é que as normas interpretativas (as «verdadeiramente interpretativas») são incompatíveis com a proibição da retroatividade em matéria fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP. Na medida em que vinculam os tribunais a uma determinada interpretação, entre várias em abstrato possíveis, elas implicam, necessariamente, uma aplicação retroativa de lei interpretanda.
Ora, não me parece que o princípio constitucional da proibição da retroatividade tenha um caráter tão absoluto que impeça a existência de leis fiscais interpretativas. Como resulta do texto do Acórdão, o Tribunal Constitucional exclui do âmbito aplicativo desse princípio as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, o que, desde logo, significa que a norma constitucional não afasta todo e qualquer tipo de retroatividade.
A irretroatividade fiscal é uma manifestação do princípio da segurança jurídica ou da confiança inscrito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP). Daí que, em certos casos, há necessidade de avaliar e ponderar devidamente o interesse privado dos contribuintes com o interesse público que justifica agravamentos fiscais com um certo grau de retroatividade. Assim, nos chamados casos de retroatividade falsa ou imprópria, o grau de confiança suscitado nos contribuintes e a relevância do mesmo não pode deixar de ser ponderado ao nível da proporcionalidade.
No caso das normas fiscais interpretativas materiais – as que visam solucionar a incerteza de lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia, com um conteúdo que o julgador ou intérprete a ela pudesse chegar, sem ultrapassar os limites típicos impostos à interpretação e aplicação da lei – não se pode dizer que a confiança dos contribuintes no sentido da norma interpretada gera expectativas legítimas da sua continuidade no ordenamento jurídico. Se a norma é controversa, a única expectativa que existe é que o legislador a solucione. Se ele o faz, optando por um dos entendimentos possíveis, que até já era seguida pela jurisprudência, não se pode dizer que há frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva da confiança depositada na norma interpretada.
O caso dos autos é paradigmático da inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso. Desde o nascimento do PEC – Decreto-lei n.º 44/98, de 3 de março –, com as alterações que sofreu até à data, não foi questionada a não dedutibilidade da quantia adiantada na coleta das tributações autónomas. O próprio programa informático da Administração Tributária de suporte à apresentação das declarações de IRC não possibilitava tal dedução. Portanto, o n.º 2 do artigo 90.º era interpretado e aplicado pela AT – e não consta que haja contribuintes que tenham impugnado nos tribunais tributários tal interpretação – no sentido de que as deduções do PEC (e as demais) não eram deduzidas na coleta das tributações autónomas. Apenas com a intervenção do tribunal arbitral é que surgiram – em 2014 e 2015 – decisões do CAAD, umas no sentido de que o PEC e os benefícios fiscais podiam ser deduzidos à coleta das tributações autónomas, e outras em sentido contrário.
Ora, a expectativa na manutenção de uma das interpretações efetuadas pela jurisprudência arbitral não se pode confundir com as expectativas geradas pela própria lei. Se a norma era duvidosa e se foi criada uma controvérsia quanto à dimensão aplicativa da mesma, o expectável era que o legislador viesse resolver a incerteza num dos sentidos possíveis, provavelmente no sentido com a mesma sempre foi aplicada, que, como vimos, essa era a interpretação mais correta. Assim, como sustenta Batista Machado, «se porventura se pode dizer que as variações e mudanças jurisprudenciais no que respeita à interpretação de uma regra de direito, pelo menos na medida em que esta regra nunca foi considerada certa, não têm efeito retroativo, então também a lei interpretativa nos termos atrás definidos não será substancialmente retroativa» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, pág. 247).