Diploma

Diário da República n.º 41, Série II, de 2016-02-29
Acórdão n.º 545/2015, de 29 de fevereiro

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 545/2015 de 28/10, Processo 1341/13

Emissor
Tribunal Constitucional
Tipo: Acórdão
Páginas: 7040/0
Número: 545/2015
Parte: Parte D
Publicação: 1 de Março, 2016
Disponibilização: 29 de Fevereiro, 2016
Não julga inconstitucional a norma contida no n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro

Diploma

Não julga inconstitucional a norma contida no n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro

Acórdão n.º 545/2015, de 29 de fevereiro

Processo n.º 1341/13
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório

1 – Nos presentes autos de contraordenação em que é arguida Compañia Distribuición Integral Logista, S. A., o Diretor da Alfândega do Jardim do Tabaco aplicou-lhe a coima de €1.323,00, por ter introduzido no consumo produtos de tabaco manufaturado em quantidades superiores às previstas no n.º 6, do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais do Consumo (CIEC), na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 155/05, de 08 de setembro, infração que está prevista e punida na alínea p), do n.º 2, do artigo 109.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
A arguida impugnou essa decisão junto do Tribunal Tributário de Lisboa, o qual, por sentença de 24/06/2013, recusou aplicar a norma constante do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, na redação por aquele decreto-lei, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, fundada na falta de autorização legislativa expressa da Assembleia da República, e em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 61.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.º 2 e 81.º, alínea e), da Constituição da República Portuguesa (CRP), anulando a decisão impugnada com a consequente absolvição da arguida.
Nessa decisão, no que respeita à questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso, o Tribunal afirmou o seguinte:

«[…]
Na verdade, até à publicação do Decreto-Lei n.º 155/2005, a introdução dos tabacos manufaturados no consumo assume particular relevância no âmbito da gestão da vida económica da empresa, como supra se referiu, era deixada ao critério de operadores económicos, de acordo com a conveniência e necessidade da sua gestão comercial. Foi só com a entrada em vigor do n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo, na redação dada pelo mencionado Decreto-Lei n.º 155/2005, é que tal decisão ficou indelevelmente condicionada a uma calendarização consideravelmente rígida, subordinada aos interesses da Fazenda Pública.
Mais: com a redação do preceito à altura em que foi instaurado o presente procedimento contraordenacional, as quantidades de cada marca de tabaco introduzidas no consumo em qualquer mês do ano não poderiam exceder a média das respetivas introduções no consumo no ano anterior. Isto é: aplicando-se ao longo de todo o ano e não apenas nos últimos meses do calendário, o n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo de 1999, com a redação resultante do Decreto-Lei n.º 155/2005, coartava, em grande medida, os operadores do setor de reagir a picos sazonais de procura. E com esta redação, o Estado substituiu-se aos operadores privados em decisões particularmente relevantes da gestão comercial respetiva, fixando logo à partida a taxa de evolução global do mercado, restringindo o crescimento de novas marcas e obrigando os operadores a manter estabilizados os stocks e vendas ao longo do ano num mercado não alheio a consideráveis variações sazonais.
Acompanha-se, a este propósito, o entendimento perfilhado pelo Professor Doutor Sérgio Vasques, no parecer junto aos autos, posição, já defendida pelo mesmo Autor e por António Moura Portugal, num artigo publicado na Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, do Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito de Lisboa, ano II, n.º 4, Almedina, págs. 121/145, onde se lê: «Se a livre iniciativa económica se traduz essencialmente na faculdade de decidir o que produzir, como produzir e quanto produzir, parece evidente que o regime de condicionamento trazido pelo Decreto-Lei n.º 155/2005 produz restrições do maior relevo ao exercício deste direito fundamental e restrições para as quais não se encontra noutros setores económicos paralelo fácil. […]».
E não se vê que tal condicionamento seja conforme aos comandos constitucionais. Desde logo porque só se podem considerar legítimas as restrições num quadro de ponderação de interesse axiológico prevalecente em concreto, isto é: o direito de liberdade económica não foi, no caso dos autos, afetado em favor de princípios de especial dignidade constitucional, como a saúde pública. Por outro lado, ainda que se reconhecesse dignidade suficiente ao propósito declarado (maximização de receita fiscal) – sendo certo que tal escopo não merece tamanha dignidade, mesmo em tempos de vicissitudes próprias de crise orçamental (ou, até mesmo, sobretudo em tais circunstâncias) -, não se lobriga a observância de necessidade, adequação e proporcionalidade. Com efeito, o direto condicionamento legal da oferta e da procura não é o meio necessário para potenciar a receita fiscal no mercado. Nem será seguramente o meio adequado a tal desiderato, num mercado em que os agravamentos bruscos da carga fiscal tendem a alimentar a fraude e o contrabando. E a violação da proporcionalidade s.s., na sua vertente da proibição do excesso, «[…] é manifesta também, não se podendo admitir que a maximização da receita fiscal justifique uma agressão tão intensa da liberdade de gestão das empresas do setor dos tabacos, […]», como refere Sérgio Vasques no parecer já citado.
Acresce ainda, por importante, que ao fixar uma taxa de crescimento máximo anual de 30% para qualquer marca de tabacos no mercado português (porque é isso que, ao cabo e ao resto, em bom rigor, é logrado pelo preceito ora analisado) – mais ainda aplicada ao longo da integralidade do ano económico-, o legislador acaba por contribuir para a cristalização das quotas de mercado previamente existentes, e, por essa via, vedar aos operadores económicos de menor dimensão e expressão o lançamento e promoção, com sucesso, das respetivas marcas, fomentando, ainda que involuntariamente, a formação de estruturas monopolistas. E este efeito da norma em análise contraria frontalmente o disposto na alínea e) do artigo 81.º da Constituição da República Portuguesa, que atribui ao Estado a tarefa de «[…] assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral».
Assim se conclui que a norma do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005 é materialmente inconstitucional.
Mas, também, formalmente, tal norma é inconstitucional.
Na alínea i) do n.º 1 artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa estabelece-se (e estabelecia-se em 2005, data da emissão do Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro) a reserva de lei parlamentar no que tange à criação de impostos e à disciplina do sistema fiscal, admitindo embora a hipótese de autorização legislativa ao Governo nesta matéria. Em conformidade, também o n.º 2 do artigo 103.º da Lei Fundamental dispõe que «Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.» Assim, quer o facto gerador, quer o critério de exigibilidade dos IEC, têm que ser disciplinados por lei parlamentar, ou, quando muito, por decreto-lei mediante autorização legislativa expressa da Assembleia da República.
Quanto à incidência, a disciplina genérica e transversal aos impostos especiais sobre o consumo constava já dos artigos 6.º e 7.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo de 1999, acolhendo regras rigorosamente uniformizadas pela Diretiva Horizontal (e reiteradas pela atual Diretiva n.º 2008/118/CE).
Ora, se no artigo 7.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo o legislador definiu, como regra geral respeitante a todos os impostos especiais de consumo, o momento a partir do qual os mesmos se tornavam exigíveis em território nacional pela administração aduaneira, correspondendo tal exigibilidade ao momento de introdução em consumo – como era, de resto, imposto pela Diretiva Horizontal-, idêntica disciplina tem de considerar-se aplicável para as regras especiais de introdução no consumo respeitantes ao imposto sobre o tabaco, que originariamente figuravam no artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo de 1999.
Vale isto por dizer que ao estabelecer por mero decreto-lei um critério de exigibilidade do imposto, sem autorização legislativa expressa por parte da Assembleia da República, nomeadamente precedendo eventual animus habilitandi constante da própria Lei do Orçamento de Estado, o legislador atuou em violação da reserva de lei parlamentar prevista na alínea i) do n.º 1 artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.
Como escreve o Professor Vieira de Andrade, o juiz pode não só desaplicar norma inconstitucional, como pode e deve aplicar diretamente norma da Constituição da República Portuguesa, e tem ainda o poder-dever de interpretar as normas de direito constituído em conformidade com a Constituição.
Tudo visto e ponderado, julga-se que a norma constante do n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo de 1999, com a redação constante do Decreto-Lei n.º 155/2005, padece de inconstitucionalidade material, por violação da liberdade de iniciativa económica através de disposição legal sem observância dos requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade (artigos 61.º, n.º 1, 17.º e 128.º), por violação do conteúdo mínimo atinente ao cabal exercício respetivo (n.º 5 do artigo 18.º), e por derrogação da garantia prevista na alínea e) do artigo 81.º, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como padece de inconstitucionalidade orgânica por estabelecer um critério de exigibilidade do imposto sem autorização legislativa expressa por parte da Assembleia da República».
[…]»

2 – É dessa decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações, onde concluiu o seguinte:

«1 – Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos arts. 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º, n.º 1, al. a), da LOFPTC, “da decisão proferida de fls. 100 a 129" dos autos de proc. n.º 1017/08.2BELRS, do TT de Lisboa – 1.ª UO (Recurso de contraordenação), em que é Recorrente a Compañia Distribución Integral Logista S. A. (Sucursal de Portugal) e recorrido o DAJT, a qual “julgou material e organicamente inconstitucional a norma constante do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, não a aplicando com fundamento em inconstitucionalidade por violação dos arts. 61.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.º 5 (3), 81.º, al. e), todos da Constituição da República Portuguesa;
2 – A norma jurídica constante do artigo 86.º (Regras especiais de introdução no consumo e de liquidação), n.º 6, do CIEC, com a redação do Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro, não disciplina “elementos essenciais" do imposto sobre o tabaco, nomeadamente o respetivo critério de exigibilidade, mas antes os “limites quantitativos" da comercialização de tabacos manufaturados, que é matéria não abrangida pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, não sendo, por isso, caso de inconstitucionalidade.
3 – A norma jurídica constante do artigo 86.º, n.º 6, na redação do Decreto-Lei n.º 155/2005, cit., conjugada com o seu n.º 7, do CIEC, prossegue os interesses constitucionalmente protegidos do funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas e o dever fundamental de pagar impostos, nos termos legais e em condições de igualdade entre todos os operadores económicos, sendo que a taxa de variação homóloga de 30%, acrescida da aludida majoração, é consonante com o seu desempenho histórico, é idónea para acomodar um aumento da procura decorrente do real aumento da procura no quadro do normal funcionamento das “forças do mercado", pelo que a norma jurídica em causa é uma “lei restritiva" proporcionada e que garante o “núcleo essencial" desta liberdade fundamental, e portanto é constitucionalmente conforme.»

3 – A recorrida apresentou contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

«1 – O Tribunal a quo fez uma correta aplicação da lei constitucional tendo procedido a uma análise clara e absolutamente rigorosa dos preceitos constitucionais aplicáveis, pelo que a não aplicação da norma do artigo 86.º n.º 6 na redação do DL n.º 155/2005 é perfeitamente justificada e deve ser confirmada pelo Tribunal Constitucional.
2 – Andou bem o tribunal a quo ao considerar verificada a inconstitucionalidade orgânica do artigo 86.º n.º 6 do CIEC como causa da não aplicação de tal norma no caso concreto.
3 – As regras introduzidas no artigo 86.º do Código dos IEC pelo decreto-lei n,º 155/2005, de 8 de agosto, apesar de não criarem uma nova hipótese de introdução no consumo, disciplinam a introdução no consumo dos tabacos, em termos inovadores e em aspetos que não são meramente instrumentais mas que se mostram de importância fundamental para os operadores do setor, impondo um novo equilíbrio económico de toda a sua atividade e obrigando-os a uma gestão integralmente diferente das suas obrigações tributárias e dos seus fluxos comerciais, pelo que, atenta a obrigação de reserva de lei parlamentar em matéria fiscal por referência à “oneração efetiva do contribuinte", terá de se concluir que o artigo 86.º n.º 6 CIEC na versão do Decreto-Lei n.º 155/2005, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República.
4 – O artigo 86.º n.º 6 do CIEC altera o significado da definição legal do artigo 7.º n.º 1 do CIEC, de tal modo que o critério de exigibilidade do imposto (a introdução no consumo) perde as suas características prototípicas para passar a ter um conteúdo distinto daquele que a lei erigiu, porquanto, excedido um determinado limite (que o artigo 7.º do CIEC não previa e que só o artigo 86.º n.º 6 CIEC impõe) a introdução no consumo (enquanto critério de exigibilidade do imposto) passa a ser proibida.
5 – O condicionamento (quantitativo) do significado do conceito de “introdução no consumo", sendo este o critério da exigibilidade do imposto, por decreto-lei não autorizado, constitui manifesta inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição.
6 – A limitação quantitativa de introdução no consumo criada pelo artigo 86.º n.º 6 CIEC constitui uma restrição à liberdade de iniciativa económica privada prevista no artigo 61.º n.º 1 CIEC, enquanto direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
7 – A restrição da liberdade de iniciativa económica privada operada pelo artigo 86.º n.º 6 CIEC viola os termos da cláusula de restrição de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 18.º n.º 2 da CRP porquanto não respeita a exigência de que a restrição se limite ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
8 – A recorrida não deteta nenhum direito ou interesse constitucionalmente protegido que possa colidir com a liberdade de iniciativa económica privada e que justifique a restrição: a mera conveniência da Administração Tributária em ter a receita fiscal estratificada e dividida pelos doze meses do ano não é direito ou interesse constitucionalmente protegido que possa ser ponderado em paridade com a liberdade de iniciativa económica privada.
9 – Os interesses constitucionalmente protegidos que o MP entende serem justificativos da restrição da liberdade de iniciativa económica privada no presente caso são: (i) o “interesse de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas" e (ii) o “dever fundamental de pagar impostos, nos termos legais e em condições de igualdade entre todos os operadores económicos, em ordem a satisfazer necessidades financeiras públicas para assim prover às necessidades e ao bem-estar coletivo" mas, na verdade, nenhum desses interesses é adequadamente prosseguido pelo artigo 86.º n.º 6 do CIEC.
10 – Quanto ao interesse de “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados e garantir a equilibrada concorrência", aquilo que a norma do artigo 86.º n.º 6 do CIEC implica é exatamente o contrário, porquanto é evidente que o condicionamento das quantidades mensais de introduções no consumo (impondo uma limitação quantitativa das introduções no consumo que cada agente pode fazer em cada mês) tem apenas como consequência o inverso do que o MP alega, determinando afinal: (i) a estratificação e repartição dos mercados, (ii) a manutenção das quotas de mercado já obtidas pelos operadores existentes no mercado, (iii) a criação de um obstáculo adicional a que os concorrentes minoritários possam fazer introduções no consumo extraordinárias respondendo à procura em função de eventos ou circunstâncias concretas que lhes permitiria ganhar quota de mercado e criar fidelidade à marca, (iv) a limitação da distribuição dos produtos de tabaco.
11 – Por isso, nunca poderia justificar-se uma restrição da liberdade de iniciativa económica privada como a que consta do artigo 86.º n.º 6 do CIEC com um alegado “interesse em assegurar o funcionamento eficiente dos mercados", pois a existência do limite à introdução no consumo é, em si mesma, uma medida que desequilibra a concorrência, promove o abuso de posição dominante (num mercado que, aliás, é altamente concentrado) e destrói a eficiência do mercado livre não evitando qualquer distorção de concorrência mas ao invés criando, isso sim, uma restrição da concorrência ao impor a estratificação do mercado em função de “desempenhos históricos".
12 – Quanto ao interesse em “evitar práticas lesivas do Estado" invocado pelo MP para justificar a restrição à liberdade de iniciativa económica privada, tal justificação não pode sobrepor-se aos interesses legítimos e constitucionalmente protegidos dos agentes económicos privados no sentido da conformação livre do modo de gestão da sua atividade comercial, já que a introdução no consumo de produtos, em quantidade superior ao montante de majoração de 30% definido pela lei relativamente ao ano transato, não revela imediata e inequivocamente qualquer tipo de intuito fiscal fraudulento, mas tão somente uma adequação racional da oferta à procura, como ditam as boas regras de funcionamento eficiente dos mercados.
13 – Sendo a ratio do artigo 86.º n.º 6 do CIEC evitar a acumulação de stocks “durante os meses que antecedem o aumento das taxas de imposto" não existe qualquer razão para que o condicionamento das quantidades a introduzir no consumo seja aplicável em todos os meses do ano e não apenas “nos meses que antecedem o aumento das taxas de imposto", o que veio a ser reconhecido pelo legislador com a alteração promovida dois anos volvidos.
14 – A alegada justificação da restrição às introduções no consumo com a garantia de “maior transparência no mercado", também não procede, pois não existe qualquer interferência ao nível da transparência do mercado pelo facto de a lei impor uma restrição quantitativa à introdução no consumo de produtos de tabaco, pelo que, se o objetivo era aumentar ou garantir maior transparência, a imposição de tal restrição ao direito de iniciativa económica privada é inadequada a prosseguir tal desiderato sendo por isso violadora do disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP porque falha um dos requisitos da proporcionalidade da restrição.
15 – O argumento de que a restrição às introduções no consumo constante do artigo 86.º n.º 6 do CIEC estaria justificada pelo “dever fundamental de pagar impostos" é também improcedente porque, por um lado, a imposição de uma restrição quantitativa às introduções no consumo determina uma impossibilidade de, mesmo que o quisesse, o operador pagar mais impostos e, por outro lado, não é verdade que esta limitação quantitativa garanta que os operadores económicos pagam um IEC mais alto porque se impede a acumulação de stocks “durante os meses que antecedem o aumento das taxas de imposto" porquanto a limitação quantitativa das introduções no consumo existe em todos os meses do ano e as taxas de imposto não aumentam todos os meses, nem sequer todos os anos, pelo que tal restrição do direito fundamental não é adequada, necessária e muito menos equilibrada para atingir o desiderato invocado sem atingir o núcleo essencial do direito fundamental em causa, sendo certo que a mesma apenas revela uma intenção velada de dar eficácia prévia e retroativa a aumentos de taxas que só serão aprovados e devidamente publicados depois do período de condicionamento em causa, assim se violando o princípio da não retroatividade da lei fiscal prevista no artigo 103.º n.º 3 CRP.
16 – A restrição à iniciativa económica privada consubstanciada num condicionamento da gestão de quantidades mensais de introdução de produtos de tabaco manufaturado no consumo, mediante limitação a aumentos de 30% relativamente às quantidades introduzidas no ano económico anterior, constitui um meio desproporcional, por desadequado, desnecessário e desequilibrado, à prossecução do interesse geral que se visa atingir com a introdução daquele condicionamento (a alegada prevenção da fraude/evasão fiscal) pelo que deve ser declarada a respetiva inconstitucionalidade, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.»

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

4 – A norma objeto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade está contida no n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro (CIEC), na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro.
Pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 155/2005, o artigo 86.º do CIEC passou a ter a seguinte redação:

«Artigo 86.º
[…]

1 – …

2 – …

3 – …

4 – …

5 – …

6 – As quantidades de produtos de tabaco manufaturado, introduzidas mensalmente no consumo, não podem exceder em mais de 30%, por cada marca de tabaco objeto de comercialização, a quantidade média mensal de tabacos manufaturados introduzidos no consumo no ano económico anterior ou, no caso de novas marcas, a quantidade média mensal do número de meses em que tais marcas passem a ser introduzidas no consumo.

7 – Os operadores económicos que pretendam introduzir no consumo produtos de tabaco manufaturado, de forma pontual ou duradoura, em quantidades superiores às que decorrem do disposto no número anterior devem solicitar autorização para o efeito, mediante requerimento a apresentar ao diretor da alfândega competente, com uma antecedência mínima de 60 dias, devendo a decisão ser proferida dentro do prazo referido.

8 – Caso se trate de uma situação pontual, a autorização só pode ser concedida em casos associados a alterações bruscas e limitadas no tempo do volume de vendas do operador económico em causa.

9 – Caso se trate de uma situação de aumento comprovado de comercialização dos produtos e, consequentemente, o operador económico passe, de futuro, a introduzir no consumo maior quantidade de produtos de tabaco manufaturado, a autorização pode ser concedida com caráter duradouro.

10 – As situações previstas nos dois números anteriores são avaliadas pela alfândega competente através da realização de ações de fiscalização às existências do operador económico em causa, bem como, de forma aleatória, às existências dos primeiros adquirentes dos produtos de tabaco manufaturado do referido operador económico, por forma a aferir-se da existência de razões de mercado plausíveis que justifiquem o pedido de autorização formulado.

11 – O disposto no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, aos operadores registados de tabacos manufaturados.

12 – Os operadores económicos que forneçam elementos de natureza qualitativa ou quantitativa, que venha a provar-se que não correspondem à realidade, ficam sujeitos às sanções previstas na legislação aplicável.»

É de salientar, porém, que a regra de condicionamento constante do n.º 6 deste artigo 86.º foi objeto de sucessivas alterações que modificaram o seu conteúdo inicial: o Decreto-Lei n.º 307-A/2007, de 31 de agosto, revogou os números 6 a 12 desse artigo e aditou um novo artigo 86.º-A ao anterior Código de IEC (cuja redação foi ligeiramente alterada pelo Decreto-Lei n.º 232/2008, de 3 de dezembro), o qual fixou limites de introdução no consumo apenas para o tabaco manufaturado e em relação aos últimos quatro meses do ano; o novo Código de Impostos Especiais sobre o Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, manteve, no artigo 106.º (com a redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), a disciplina constante do anterior artigo 86.º (na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro) e do artigo 86.º-A (com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 307-A/2007, de 31 de agosto).
O acórdão recorrido anulou o ato do Diretor da Alfândega que aplicou à ora recorrida uma coima por introdução no consumo de produtos de tabaco manufaturado em quantidades superiores às previstas na norma do n.º 6 do artigo 86.º (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005), com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de lei parlamentar constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, e em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da liberdade de iniciativa económica, consagrado no n.º 1, do artigo 61.º da CRP e por violação do princípio da concorrência, garantido na alínea f), do artigo 81.º da CRP (por lapso, a decisão recorrida refere a alínea e) desse artigo).

5 – Quanto à inconstitucionalidade orgânica, a decisão recorrida sustenta que a norma do n.º 6 do referido artigo 86.º estabelece um “critério de exigibilidade do imposto", sem autorização legislativa expressa por parte da Assembleia da República, pelo que o legislador atuou em violação da reserva de lei prevista na alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º da CRP. A afirmação de que a norma impugnada estabelece um critério de exigibilidade do imposto funda-se na circunstância de ser uma norma que está inserida em regras especiais de introdução no consumo que, tal como as regras gerais previstas no artigo 7.º do CIEC, constituem “elementos essenciais" do imposto que só podem ser disciplinados por meio de decreto-lei mediante autorização legislativa.
Se se apurar que o conteúdo da norma impugnada descreve um facto gerador da obrigação tributária, naturalmente que tem que ser qualificada como norma de incidência tributária abrangida pelo princípio da reserva de lei parlamentar. A exigência de reserva de lei em matéria tributária, que tem origem no princípio da autotributação dos impostos e fundamento justificativo na garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes, abrange necessariamente os chamados elementos essenciais dos impostos. Com efeito, o princípio da legalidade fiscal está expressamente consagrado na Constituição na vertente de reserva material de lei formal: no artigo 168.º, n.º 1, alínea i), que reserva à exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal (princípio da reserva de lei formal); e no artigo 103.º, n.º 2, que estabelece que os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (princípio da reserva material).
Ora, o facto ou situação que dá origem ao imposto – o facto tributário – é o facto que concretiza as normas de incidência subjetiva e objetiva, produzindo com isso o nascimento da obrigação fiscal (cf. n.º 1 do artigo 36.º da Lei Geral Tributária). Daí que as normas que enunciam os pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação tributária, assim como os elementos dessa mesma obrigação, sejam normas disciplinadoras dos elementos essenciais dos impostos.
Nos impostos especiais sobre o consumo, a obrigação tributária nasce a partir da produção ou importação, mas apenas se torna exigível com a introdução no consumo (cf. artigos 6.º e 7.º do CIEC de 99 – Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro – e artigos 7.º e 8.º do atual CIEC – Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho). Em conformidade com a legislação comunitária, a chamada Diretiva Horizontal – Diretiva n.º 92/112/CE, de 25 de fevereiro – que foi substituída pela atual Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16 de dezembro, entre o momento em que se considera nascida a obrigação tributária e o momento da sua exigibilidade, o imposto encontra-se suspenso. Decorre daqui que uma das principais particularidades destes impostos monofásicos, objeto de harmonização comunitária, é precisamente o regime de suspensão, através do qual se permite que os produtos tributáveis circulem no território comunitário e sejam armazenados em entrepostos fiscais sem pagamento imediato do imposto. O regime suspensivo, que foi inspirado no direito aduaneiro, é pois um dos instrumentos essenciais para assegurar os princípios comunitários nesta matéria, especialmente a tributação no destino, uma vez que permite aproximar o imposto do momento e local do consumo.
Não obstante o desfasamento temporal que existe entre o momento da produção e importação dos produtos tributáveis – o facto gerador do imposto – e o da introdução no consumo – quando ele se torna exigível – este é o momento mais relevante na aplicação do imposto, pois é ele que situa no tempo e no espaço a obrigação tributária, determinando o Estado com competência para tributar e a taxa a aplicar (cf. n.º 3 do artigo 7.º do CIEC). Assim, a introdução no consumo, apesar de configurada na lei como condição de exigibilidade, surge como um dos momentos constitutivos da relação jurídica tributária, sem o qual não existe crédito de imposto. Como refere Sérgio Vasques, «a obrigação tributária resulta antes da conjugação dos dois factos, o fabrico e a introdução no consumo – um pressuposto complexo, de formação progressiva, resultante da combinação necessária de dois elementos, ao último dos quais cabe a função de aperfeiçoar a fattispecie tributária. Por outras palavras: a obrigação de imposto não se pode considerar nascida senão aquando da introdução no consumo» (cf. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, pág. 303).
Ora, se o verdadeiro facto gerador do imposto está na introdução no consumo, impõe-se então examinar se a norma impugnada interfere com esse elemento essencial, criando novas hipóteses de introdução no consumo ou modificando as já existentes.

6 – A norma do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, proíbe que os operadores económicos introduzam mensalmente no consumo as quantidades de produtos de tabaco manufaturado que excedam em mais de 30%, por cada marca, a média mensal das introduções feitas no ano anterior. O sentido expresso do enunciado normativo é o de impor uma nova “regra de condicionamento" na comercialização do tabaco, vedando aos operadores económicos do setor a possibilidade de colocar à disposição dos consumidores as quantidades de tabaco que sejam convenientes ou necessárias à sua gestão comercial.
O sentido desta regra de condicionamento e o contexto que esteve na sua génese estão claramente afirmados nos três parágrafos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 155/2005:

«O aumento das taxas do imposto incidente sobre os tabacos manufaturados que ocorre geralmente com a publicação da Lei do Orçamento do Estado, sendo anual e previsível, tem vindo a encorajar os operadores económicos a acumularem stocks excedentários de produtos de tabaco, durante os meses que antecedem o aumento das taxas do imposto.
Esses stocks de produtos são antecipadamente introduzidos no consumo, contornando-se assim a aplicação das novas taxas do imposto, o que permite que os operadores económicos possam comercializar, ao longo do ano económico seguinte, os produtos a preços artificialmente mais baixos, potenciando, por esta via, distorções ao nível da concorrência.
Considerando que a introdução no consumo de produtos de tabaco manufaturado está diretamente ligada à efetiva comercialização dos produtos referidos e que as referidas condutas, reiteradamente levadas a efeito, subvertem aquela relação, importa disciplinar esta matéria, com vista a garantir uma maior transparência no mercado e obstar a práticas lesivas das receitas do Estado».

Como se vê, o contexto que esteve pressuposto na norma foi o comportamento que os operadores económicos tinham perante o conhecimento prévio do agravamento das taxas sobre o consumo de tabaco no ano económico seguinte. Sabendo, através da leis do Orçamento de Estado, que o imposto incidente sobre o tabaco iria aumentar, os operadores económicos introduziam no mercado, nos últimos meses de cada ano, quantidades excessivas desse produto que apenas seriam efetivamente consumidas nos primeiros meses do ano seguinte. Esta prática tinha efeitos económicos vantajosos para os operadores económicos e consumidores, já que podiam comercializar e adquirir tabaco por preço inferior ao verificado no momento do consumo efetivo, mas ao mesmo tempo era prejudicial aos interesses financeiros do Estado, já que não arrecadava o montante de imposto que havia estimado no Orçamento de Estado.
Não é de algum modo evidente que o objetivo prático da norma tenha sido o de evitar «distorções ao nível da concorrência» ou de «garantir uma maior transparência no mercado», pois os operadores económicos encontravam-se em situação igualdade quanto à introdução no consumo desses produtos. Do ponto de vista económico, apenas ocorria uma antecipação da oferta e da procura desses produtos nos meses finais de cada ano económico, evitando-se desse modo o previsível agravamento do imposto. Essa prática, que era acessível a todos operadores, tinha reflexos negativos nas receitas fiscais, uma vez que inviabilizava a liquidação e cobrança do montante de imposto sobre o consumo de tabaco que estava inscrito na Lei do Orçamento de Estado. É pois o interesse em impedir essa forma de atuação que torna compreensível a regra de condicionamento imposta pela norma impugnada: «obstar a práticas lesivas das receitas do Estado». O legislador introduziu essa regra tendo em vista garantir que a previsão de receitas do imposto sobre o consumo de tabaco possa ser plenamente realizada no termo do ano económico.
Sendo esta a razão de ser da norma impugnada, desde logo fica afastada a qualificação como norma de incidência lato sensu, seja como regra definidora do facto gerador do imposto, seja como regra que fixa o critério da sua exigibilidade. O conceito de “introdução no consumo" enunciado no n.º 6 do artigo 86.º não diverge das hipóteses referidas nos artigos 7.º, n.º 1 e 86.º, n.º 1 do CIEC. A norma não incorpora novos factos ou novas hipóteses de introdução no consumo, para além das enunciadas nessas disposições, uma que vez que, dentro dos limites quantitativos fixados, o facto gerador do imposto e a condição da sua exigibilidade continuam a ser os previstos naquelas normas. Na sua previsão, a norma limita-se a proibir a introdução no consumo de tabaco em quantidades superiores a 30% à média mensal que foi comercializada no ano económico anterior, relativamente a cada marca. Uma típica regra de condicionamento comercial, que restringe a liberdade dos operadores económicos de introduzirem no mercado as quantidades de tabaco que bem entenderem, mas que não interfere com os pressupostos de que resulta a obrigação do imposto.
Pelos efeitos jurídicos causados, a proibição de introdução no consumo, cuja violação constitui uma contraordenação aduaneira – alínea p) do n.º 2 do artigo 109.º do CIEC – representa uma intervenção dos poderes públicos na vida económica das empresas que comercializam tais produtos. Não obstante a intenção de acautelar o equilíbrio orçamental do ano económico em que ocorre o aumento do imposto, a verdade é que, por força da norma impugnada, a comercialização de tabaco ficou condicionada a limites mensais de introdução no consumo. Para a atividade dos operadores económicos do setor do tabaco, tal proibição consubstancia uma medida restritiva do comércio e da concorrência, pois ficam obrigados a conter as vendas ao longo do ano dentro de certos limites, o que os impede de aumentar quotas de mercado.
Embora formalmente integrada numa disposição tributária, a norma do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC é uma norma jurídica cujo campo de atuação se pode localizar no âmbito do direito económico. O contexto de realidade em que os seus efeitos jurídicos se projetam indica que se trata de uma norma jurídico-económica diretamente ligada à atividade dos operadores económicos do setor do tabaco, interferindo e condicionando a sua atividade. Ou seja, um regime de condicionamento que limita o exercício de uma atividade privada desenvolvida em contexto concorrencial e que cria obstáculos institucionais ao livre funcionamento do mercado do tabaco. Trata-se assim de uma norma que, atuando diretamente sobre o comportamento dos operadores económicos do setor do tabaco, tem um conteúdo económico cuja validade tem que ser aferida pelos princípios jurídico-constitucionais do direito económico.

7 – A pertinência ao direito da economia e à «constituição económica », onde se inserem os parâmetros constitucionais materiais mobilizados pelo acórdão recorrido – n.º 1 do artigo 61.º e alínea f) do artigo 81.º – coloca a norma impugnada fora do alcance da reserva de lei relativa aos impostos constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP. A norma não revela qualquer dos elementos essenciais dos impostos que, por imposição daquelas disposições, têm que estar reservados à lei parlamentar: (i) não cria um imposto novo; (ii) não descreve um novo facto tributário; (iii) não define novos sujeitos ativos ou passivos de imposto (iv) não estabelece um novo montante de imposto; (v) nem é uma norma relativa às garantias dos contribuintes; (vi) ou uma norma que conceda benefícios fiscais.
Não obstante o intuito de assegurar a cobrança do montante de imposto sobre o consumo de tabaco que foi estimado no orçamento de receitas, não se trata de uma norma reguladora da relação jurídica fiscal que se estabelece entre os operadores económicos e a administração tributária com a produção, importação e subsequente introdução no consumo de produtos de tabaco manufaturado. A limitação quantitativa dos produtos tributáveis a introduzir no consumo intromete-se na ação dos agentes económicos, mas não interfere na relação tributária que se constitui com cada introdução no consumo. De facto, a fixação de limites quantitativos à comercialização de tabacos manufaturados não altera ou modifica o pressuposto de facto da obrigação fiscal. A situação-base da imposição continua a ser a mesma – a introdução no consumo – e a sua ocorrência dá origem ao nascimento da obrigação de imposto, independentemente dos limites quantitativos que tenham ou não sido fixados à comercialização. Ora, não havendo modificação do facto gerador da dívida de imposto, a norma impugnada não se pode pautar pela rigidez dos princípios jurídico-constitucionais que formam a “constituição fiscal", designadamente pelo princípio da reserva material de lei formal.

8 – A integração da norma impugnada no direito económico, por representar uma forma indireta de intervenção dos poderes públicos na vida económica, implica que a legitimidade constitucional da regra de condicionamento por ela criada tenha que ser aferida pelo conjunto de preceitos jurídico fundamentais que formam a chamada “constituição económica".
Ora, neste domínio também se pode questionar se o n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, ao estabelecer uma regra de condicionamento de uma atividade privada, não estará sujeito à reserva de lei constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da CRP. A questão da inconstitucionalidade orgânica permanece caso se considere que aquela regra constitui uma medida restritiva de «direitos, liberdades e garantias» que está sujeita ao regime específico do artigo 18.º da CRP. E assim será caso se reconheça que o regime de condicionamento toca no núcleo essencial do direito de livre iniciativa económica privada consagrado no n.º 1 do artigo 61.º da CRP.
É consensual na doutrina e na jurisprudência constitucional que o direito de livre iniciativa económica, apesar de sistematicamente inserido no Título III da Parte I, respeitante aos direitos, deveres económicos, sociais e culturais, tem uma certa dimensão de liberdade radicada na dignidade da pessoa humana que justifica a sua qualificação como direito, liberdade e garantia de natureza análoga. Essa dimensão subjetiva, que é reflexo do direito geral de personalidade na atividade de produção e distribuição de bens e serviços, expresso nos princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual, ainda mais se acentuou com a revisão constitucional de 1997, quando aquele direito subjetivo foi autonomizado da garantia institucional da livre iniciativa económica prevista na alínea c) do artigo 80.º.
O reconhecimento de que certas vertentes do direito de iniciativa económica privada têm analogia com os direitos, liberdades e garantias enunciados no Título II implica que, por força da norma do artigo 17.º da CRP, lhes sejam aplicadas as disposições constitucionais que se referem a esses direitos. Mas se è pacífica a aplicabilidade do regime material dos direitos, liberdades e garantias aos direitos análogos, o mesmo não se passa quanto ao regime orgânico-formal, nomeadamente o relativo à reserva de lei parlamentar (alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º) e ao âmbito da reserva de lei em geral (n.º 2, do artigo 18.º). Como é sabido, a determinação do sentido e alcance dos artigos 17.º e 165.º n.º 1, alínea b), da CRP, que literalmente abrangem toda a matéria referente a «direitos liberdades e garantias», originou entendimentos diversos quanto à aplicação do regime orgânico aos direitos de natureza análoga, uns no sentido da sua aplicação e outros a sustentar a exclusão desse regime (sobre a controvérsia, cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed. Vol. I, pág. 375).
Seja como for, a jurisprudência consolidada deste Tribunal sobre esta questão, incluindo a que se refere ao direito de iniciativa económica privada, segue uma posição intermédia que distingue as normas relativas ao núcleo essencial do direito fundamental, a que se aplica analogicamente a reserva de lei parlamentar, das normas relativas as aspetos ou áreas marginais, de menor relevância, relativamente às quais não se justifica a intervenção parlamentar. A extensão máxima da reserva de competência parlamentar ínsita na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º abrange também os direitos análogos do artigo 17.º, quando o conteúdo concreto da norma incide sobre o núcleo essencial do direito fundamental (cf. Acórdãos, n.ºs 371/91, 329/99, 187/01, 289/04, 358/05, 14/2009, 793/2013 e 75/2013).
No que se respeita à aplicabilidade do regime orgânico-formal dos direitos, liberdades e garantias ao direito de livre iniciativa económica, refere-se no Acórdão n.º 75/2013 o seguinte:

«Tem sido reiteradamente afirmado que a mera inserção do artigo 61.º no Título relativo a “direitos, sociais e económicos" não o priva de uma certa dimensão de “direito à não intervenção estadual", que é típica dos “direitos, liberdades e garantias" (cf. Acórdãos n.º 187/01 e n.º 304/10). Não se trata, portanto, de um mero “direito à atuação estadual", mas antes de um direito que, em certa medida, exige que o Estado (e os demais poderes públicos) se abstenha(m) de o colocar em causa, mediante intervenções desrazoáveis ou injustificadas. Tal direito fundamental compreende, em si mesmo, uma “vertente decisório/impulsiva", que resulta na faculdade de formação da vontade de prosseguir determinada atividade económica e de lhe dar início, e uma “vertente organizativa", que pressupõe a liberdade de determinar o modo de organização e de funcionamento da referida atividade económica (cf. Acórdãos n.º 358/2005 e n.º 304/2010).
Porém, a verificação de que o “direito à livre iniciativa privada" partilha de algumas características dos “direitos, liberdades e garantias" não significa que todo o respetivo conteúdo normativo possa beneficiar da integralidade daquele específico regime constitucional. Para tanto, imperioso se torna que seja possível extrair do conteúdo daquele direito um “conteúdo essencial" que corresponda à “dimensão negativa" dos “direitos de liberdade". Dito de outro modo, só a parcela do “direito à livre iniciativa privada" que corresponda a um dever de abstenção do Estado face àquela livre conformação do indivíduo (ou da pessoa coletiva) é que beneficia do regime específico dos “direitos, liberdades e garantias", ficando assim sujeito à reserva legislativa parlamentar fixada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, da CRP».

Note-se todavia que, segundo o critério jurisprudencial, a extensão da reserva parlamentar aos direitos fundamentais análogos é determinada mais pela essencialidade do conteúdo jusfundamental da norma do que pela determinabilidade constitucional do direito. Como refere Vieira de Andrade «a reserva orgânica do Parlamento não é, em si, uma exigência decorrente da determinabilidade dos direitos, mas sim da sua maior proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana» (cf. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed. pág. 187, nota 62).
Ora, no direito à iniciativa económica privada, apesar da elasticidade do respetivo conteúdo, a proximidade valorativa situa-se sobretudo no momento da escolha e acesso à atividade económica. Com efeito, de entre as várias vertentes da liberdade de empresa protegidas pelo n.º 1 do artigo 61.º da CRP, a que se situa no domínio da defesa e proteção da dignidade da pessoa humana é a liberdade de fundar uma empresa e a liberdade de aceder ao mercado. Tal como na liberdade de profissão – artigo 47.º, n.º 1, da CRP – a liberdade de iniciar uma atividade económica sem obstáculos desrazoáveis ou injustificados dos poderes públicos é a que mais se funda na dignidade da pessoa humana, enquanto ser livre e autónomo. Essa é a dimensão que, nos quadros definidos pela Constituição, integra a “conteúdo essencial" do direito de livre iniciativa económica privada. Daí que a fixação de limitações objetivas e subjetivas à liberdade de criação ou fundação de uma organização produtiva privada tenha que se cingir ao necessário para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, não podendo em caso algum aniquilar ou diminuir a sua extensão e alcance (artigo 18.º, n.º 2 e 3 da CRP). Enquanto liberdade essencialmente «negativa» e de defesa, beneficia da analogia substantiva com os direitos, liberdades e garantias pessoais, que a coloca necessariamente a coberto da reserva de lei parlamentar.
O mesmo já não se verifica quando o conteúdo da norma respeita ao momento do exercício da atividade económica, outra das vertentes em que se pode desdobrar a liberdade de iniciativa económica protegida no n.º 1 do artigo 61.º Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira «a liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica (liberdade de criação de empresa, liberdade de investimento, liberdade de estabelecimento) e, por outro lado, na liberdade de organização, gestão e atividade de empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresário, liberdade empresarial). No primeiro sentido, trata-se de um direito pessoal (a exercer individual ou coletivamente); no segundo sentido é um direito institucional (um direito da empresa em si mesma)» (cf. ob. cit. pág. 790).
Nesta última dimensão, em que já não está em causa a existência da empresa e o seu acesso ao mercado, mas apenas o exercício de uma atividade, o bem jurídico que a liberdade de empresa visa proteger é a realidade institucional constituída – a empresa – e não tanto a liberdade pessoal ou individual de quem a criou. A menor liberdade de empresa quanto às condições e modo de exercício das atividades económicas privadas é reconhecida pela Constituição quando, na parte final do n.º 1 do artigo 61.º, a coloca sob reserva do «interesse geral». Mesmo que se defenda que este conceito indeterminado só autoriza a ponderação da liberdade de empresa com outros bens constitucionais (e não também com bens infraconstitucionais), o certo é que as amplas restrições ao exercício da atividade económica legitimadas por essa cláusula não assumem a mesma relevância jusfundamental que as restrições ao acesso à atividade económica, por nelas não se projetar com a mesma intensidade o valor da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, considera certa doutrina que apenas no domínio «de maior restrição do direito em causa, e que identificamos com as restrições à escolha ou acesso, está necessariamente abrangido pela reserva de lei (e lei parlamentar), estando as meras restrições ao exercício (e portanto de menor restrição do direito) dispensadas de tal reserva» (cf. João Pacheco de Amorim, in, Direito Administrativo da Economia, Almedina, 2014, pág. 451).
Ora, no caso em apreço no presente processo, a norma do n.º 6 do artigo 68.º do CIEC tem um conteúdo que afeta o exercício da atividade dos operadores económicos do setor do tabaco, condicionando as quantidades mensais de introdução no consumo de tabaco manufaturado, mas não toca na liberdade de constituir a empresa, nem de acesso ao mercado. Os operadores não ficam impedidos de desenvolver a sua atividade económica, seja através da transação do tabaco em regime de suspensão de imposto, seja através da sua colocação à disposição dos consumidores. Apenas esta última operação – que preenche o conceito de “introdução no consumo" – está sujeita a limites quantitativos que condicionam a comercialização daquele produto, mas que mesmo assim não é impeditiva do exercício da atividade, pois está sempre garantido um aumento da quota de mercado em 30% relativamente à média mensal das introduções feitas no ano anterior. Trata-se, pois, de uma mera restrição à liberdade da atividade da empresa no mercado, proibindo a introdução no consumo de quantidades superiores àquele limite, mas uma restrição que não afeta a componente de maior densidade subjetiva da liberdade de empresa, como é o caso da liberdade de escolha e acesso à atividade económica.
De resto, a regra de condicionamento não afeta conteúdo essencial da liberdade de empresa mesmo que se entenda que a liberdade de distribuição e venda deve ter o mesmo grau de proteção jurídica que é atribuído à liberdade de criação da empresa e à liberdade de aceder ao mercado. Mesmo nesse caso, o núcleo essencial desse direito fundamental estaria sempre protegido, porque o condicionamento da introdução no consumo pode ser afastado mediante autorização do diretor da alfândega competente, quer em situações pontuais, de ocorrência de «alterações bruscas e limitadas no tempo do volume de vendas do operador económico em causa», quer de forma duradoura, quando «se trate de uma situação de aumento comprovado de comercialização dos produtos, e consequentemente, o operador económico passe, de futuro, a introduzir no consumo maior quantidade de produtos de tabaco manufaturado» (cf. n.ºs 8 e 9 do artigo 86.º do CIEC). Esta autorização tem o efeito de remover, de forma pontual ou duradoura, o condicionamento à comercialização do tabaco, pelo que o operador económico não está absolutamente impedido de introduzir no mercado as quantidades de tabaco correspondentes às necessidades do seu comércio.
E não pode deixar de se referir que a exigência desta autorização-dispensa, em que se exonera o operador económico de observar o limite de 30%, não diverge muito das condições que a lei impõe para se aceder ao mercado. De facto, a atividade de produção, transformação, armazenamento e comercialização do tabaco manufaturado é uma atividade privada preventivamente proibida, uma vez que o seu exercício está dependente da verificação prévia de determinados requisitos e condições. Os operadores económicos são apenas os previstos na lei – depositário autorizado, operador registado, operador não registado e o representante fiscal – e todos eles precisam de autorização administrativa para exercer aquela atividade (cf. artigos 23.º 27.º e 30.º do CIEC de 1999). Assim, se por força da lei, a entrada no mercado está subordinada a autorização administrativa, sem que isso afete o conteúdo essencial da liberdade de empresa, por maioria de razão se deve entender que o condicionamento à comercialização também deixa intocado esse núcleo essencial.
Por conseguinte, não estando em causa o “núcleo essencial" do direito fundamental à iniciativa económica privada, não se verifica qualquer exigência de respeito pela reserva de competência legislativa parlamentar fixada na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, razão pela qual a norma que constitui objeto do presente recurso não padece de inconstitucionalidade orgânica.

9 – A aplicação da norma do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC foi também recusada pelo acórdão recorrido com fundamento em inconstitucionalidade material. Argumenta-se que o regime de condicionamento introduzido por aquela norma: (i) viola o n.º 1 do artigo 61.º, em conjugação com n.º 2 do artigo 18.º da CRP, por restringir a liberdade de iniciativa económica privada em favor do interesse da “maximização da receita fiscal", um interesse que não tem “especial dignidade constitucional"; (ii) “contraria frontalmente" o princípio da equilibrada concorrência entre empresas constante da alínea f) do artigo 81.º da CRP, por contribuir para a “cristalização das quotas de mercado" e para a “formação de estruturas monopolistas"; (ii) e mesmo que se reconheça dignidade suficiente à maximização da receita fiscal, “não se lobriga a observância de necessidade, adequação e proporcionalidade".
O primeiro argumento convoca a questão dos limites da intervenção do legislador prevista no n.º 1 do artigo 61.º CRP: «A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral». Neste preceito, a Constituição deixa ao legislador uma ampla margem de liberdade na delimitação e configuração do direito de livre iniciativa económica. O direito está consagrado como um direito de defesa contra o Estado, na medida em que pode ser exercido «livremente», mas esse exercício só se pode efetuar «nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral», abrindo-se assim espaço para uma maior ou menor limitação ou restrição legal do direito fundamental. Como se refere no Acórdão n.º 304/2010, «o legislador constituinte, ao reconhecer tal liberdade, o fez sob uma tripla reserva: sob reserva do sistema constitucional no seu conjunto; sob reserva das decisões que, a seu propósito, tome o legislador ordinário; sob reserva daquilo a que chamou “o interesse geral"».
O preceito constitucional não é, porém, suficientemente preciso quanto ao alcance da remissão que faz para a lei da definição dos quadros em que pode ser exercida a liberdade de iniciativa económica privada. Para além do conteúdo mínimo do direito, não decorre daquele preceito constitucional um critério preciso que permita determinar qual o conteúdo do direito que está constitucionalmente garantido e quais os limites que decorrem daquela tripla reserva. Perante tal indefinição, pode questionar-se se a lei definidora daqueles quadros deve ser considerada uma lei conformadora ou uma lei harmonizadora ou restritiva do conteúdo daquele direito (cf. Vasco Moura Ramos, O Direito fundamental à iniciativa económica privada (artigo 61.º da CRP): Termos da sua consagração no direito constitucional português, ir, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volt. LXXVII, pág. 833 e SS.).
Mas, independentemente da resposta que essa questão possa ter, o certo é que do n.º 1 do artigo 61.º da CRP resulta que a liberdade de empresa está funcionalizada à satisfação do «interesse geral». Significa isto que o legislador também está autorizado a restringir o exercício de uma atividade económica para proteção de valores e interesses relevantes da vida em comunidade. Por conseguinte, ainda que se entenda que a densificarão do conceito indeterminado “interesse geral" tenha que ser efetuada com recurso a «determinantes heterónimas fornecidas pela própria lei fundamental» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 791), continua a ser extensa a margem de liberdade que o legislador ordinário dispõe para limitar ou restringir a liberdade de empresa com base na invocação desse interesse, especialmente no que respeita ao momento do seu exercício.
Ora, a regra de condicionamento estabelecida no n.º 6 do artigo 86.º do CIEC releva de um interesse que tem a cobertura de princípios e valores constitucionais em matéria orçamental. Como já foi referido, a razão de ser daquele regime de condicionamento foi evitar que os operadores económicos antecipem, no final de cada ano, os agravamentos do imposto sobe o tabaco eventualmente anunciados pelas leis do orçamento. Essa prática era “lesiva das receitas do Estado", pois impedia a cobrança do montante de receitas de imposto sobre o consumo de tabaco que foram previsionais no Orçamento de Estado. De facto, sendo a taxa de imposto fixada no momento da introdução no consumo do tabaco, a antecipação desse momento evita a aplicação das novas taxas, com a consequente diminuição das liquidações e cobranças no ano económico seguinte. Naturalmente que este efeito tem reflexos diretos na execução do orçamento de receitas e no objetivo da estabilidade orçamental.
Não obstante a Constituição se limitar a dizer no n.º 4 do artigo 105.º que as receitas previstas não devem ser inferiores às despesas orçamentadas, o equilíbrio orçamental é acolhido expressamente como uma regra de grande relevância na «constituição orçamental». Se existe alguma falta de preocupação constitucional com o equilíbrio orçamental, então, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a mesma tem de ser «suprida pela constituição financeira da UE que impõe claramente o equilíbrio orçamental». De facto, o equilíbrio orçamental é um princípio fundamental do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), estando os Estados-membros obrigados a respeitar as regras de disciplina orçamental nele estabelecidas, especialmente a que fixa em 3% o défice orçamental, assim como a submeter à Comissão Europeia os seus programas de estabilidade e crescimento. De modo que, «prevalecendo o direito da UE sobre o direito nacional, que aliás em nada o contradiz, a constituição orçamental nacional passa a integrar um princípio de equilíbrio efetivo, com limitação drástica do défice orçamental» (cf. ob. cit. Vol. I, págs. 1111 e 1114).
O princípio do equilíbrio orçamental que resulta de imperativo constitucional também deve ser cumprido na execução do orçamento. Com efeito, o objetivo da redução de défice orçamental, que deriva dos compromissos assumidos com a UE, impõe que o equilíbrio também seja um critério de gestão orçamental, de modo a evitar que a execução se afaste da previsão, com a consequente frustração daquele objetivo. É de interesse coletivo que o resultado final da execução orçamental seja convergente com a previsão orçamental, dado o efeito que a manutenção desse equilíbrio representa para toda uma série de equilíbrios económicos de alcance mais geral. A realização do equilíbrio orçamental «expost» pertence ao Governo – alínea b) do artigo 199.º da CRP – que tem o poder de praticar atos e regulamentos administrativos, mas também atos legislativos (Decretos-Leis), necessários a assegurar a execução do orçamento.
Ora, a regra de condicionamento imposta pela norma impugnada justifica-se pelo “interesse geral" em evitar o desequilíbrio final nas contas do Estado, decorrente da insuficiência da cobrança relativamente à previsão da receita do imposto sobre o consumo de tabaco. De facto, a antecipação da introdução no consumo nos últimos meses do ano de produtos tributáveis que apenas são consumidos no ano em que ocorre o aumento do imposto é um facto que infirma a previsão de cobrança desse acréscimo. Daí que, em nome desse interesse geral, justifica-se que o Estado, mormente o órgão que tem o poder de execução orçamental, tome as medidas necessárias para que no final do ano económico se venha a confirmar a previsão orçamental.

10 – Em princípio, as limitações ou restrições à liberdade da atividade da empresa no mercado, como as que resultam da regra de condicionamento introduzida pelo n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, não contribuem para assegurar a concorrência entre os operadores económicos, impedindo-os de atuar livremente no mercado. Com efeito, ao limitar as introduções mensais no consumo de cada marca de tabacos em função da média de introduções mensais do ano anterior, proibindo variações superiores a 30% em qualquer mês do calendário, o Estado intervém indiretamente na evolução do mercado, restringindo o crescimento de novas marcas e obrigando os operadores a manterem estabilizada a oferta. De modo que, num mercado livre e aberto, a contingentação da introdução no consumo de tabaco representa também uma limitação à liberdade de concorrência.
Todavia, a livre concorrência que é afetada pela regra de condicionamento surge aqui como uma garantia subjetiva integrada na liberdade de atividade da empresa. De facto, a limitação à liberdade de concorrência entre os operadores económicos do setor do tabaco é consequência da limitação à liberdade de atuação empresarial imposta pela regra de condicionamento. Neste contexto, se é constitucionalmente legítimo limitar ou restringir a liberdade de empresa para satisfazer exigências de interesse geral, também é legítimo, pelo mesmo motivo, condicionar a liberdade de concorrência.
O princípio da «equilibrada concorrência» ou da «concorrência salutar dos agentes económicos» é assumido nas alíneas f), do artigo 81.º e a) e c), do artigo 99.º da CRP como garantia institucional da ordem económica constitucional, tendo por objetivo assegurar o “funcionamento eficiente dos mercados", através da proibição de práticas restritivas da concorrência e de abusos de posições ou situações de domínio no mercado. Como o funcionamento do mercado não pode ser deixado unicamente aos agentes económicos, sob pena de desvios mais ou menos acentuados à concorrência, é legítima a intervenção dos poderes públicos que assegure o “estado de concorrência".
Ora, a norma do n.º 6 do artigo 86.º, do CIEC não foi ditada para prevenir ou contrariar comportamentos suscetíveis de comprometer o funcionamento eficiente do mercado do tabaco, nem tem por efeito a criação de formas de organização monopolista, de abusos de posições dominantes ou de práticas de concorrência desleal ou assimétrica. Como referimos, a intenção normativa foi apenas garantir uma execução ajustada do orçamento da receita do imposto e não desvirtuar ou impedir a concorrência efetiva entre os operadores económicos. A estrutura concorrencial do mercado ou o comportamento competitivo das empresas continua a manter-se, apesar dos limites quantitativos introduzidos pela regra de condicionamento. Com efeito, a lei prevê a possibilidade da empresa se exonerar, ocasional ou duradouramente, do limite mensal de 30% em relação à média mensal do ano anterior, através de uma autorização administrativa que verifica a efetiva necessidade de introdução no consumo de quantidades superiores a esse limite. Ora, não é de aceitar, nem está demonstrado, que a exigência desta autorização por si só provoca a formação de estruturas monopolistas no mercado do tabaco ou outros comportamentos que ponham em causa a garantia institucional da concorrência efetiva e eficaz entre as empresas que operam neste setor.

11 – As limitações ou restrições à liberdade de empresa, nela incluída a liberdade de concorrência, devem ser justificadas à luz do princípio da proibição do excesso (n.º 2 do artigo 18.º da CRP): respeitado o «núcleo essencial» da liberdade de empresa, qualquer restrição não pode ir além do estritamente adequado ou necessário.
O acórdão recorrido considerou que a regra de condicionamento constante do n.º 6 do artigo 86.º do CIEC vai além disso, porque (i) o direto condicionamento legal da oferta e da procura não é o meio necessário para potenciar a receita fiscal no mercado; (ii) nem é seguramente o meio adequado a tal desiderato, num mercado em que os agravamentos bruscos da carga fiscal tendem a alimentar a fraude e o contrabando; (iii) e que não se pode admitir que a maximização da receita fiscal justifique uma agressão tão intensa da liberdade de gestão das empresas do setor dos tabaco.
Pois bem, assente que o fim prosseguido pela regra de condicionamento é constitucionalmente legítimo – garantir a cobrança das receitas estimadas com o aumento de imposto sobre o tabaco – não se pode concluir que a regra de condicionamento não contribui para que essa finalidade seja alcançada. É possível determinar ou prognosticar com caráter de certeza que a antecipação de introdução no consumo de quantidades excessivas de tabaco que apenas são consumidas no ano em que ocorre o aumento das taxas do imposto constitui impedimento à realização da estimativa orçamental feita com esse aumento. É que a fixação de um limite mensal de introdução no consumo impede antecipações superiores a esse limite, evitando-se assim que os operadores económicos contornem, pelo menos em parte, a aplicação das novas taxas de imposto. Trata-se, pois, de uma medida que, em abstrato e independentemente da sua bondade intrínseca, é idónea a evitar que a previsão orçamental da receita do imposto seja frustrada pela antecipação da introdução no consumo de quantidades excessivas de tabaco.
Afirmado que a regra de condicionamento contribui de alguma maneira para fomentar ou promover o fim desejado, exige-se de seguida a demonstração de que, para a obtenção desse objetivo, não era possível adotar outro meio menos oneroso para os operadores económicos. No âmbito específico dos direitos, liberdades e garantias, o princípio da proibição do excesso impõe também que a medida restritiva seja um meio necessário, exigível ou indispensável para atingir o fim em vista. E uma medida é exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos restritivo, relativamente ao direito restringido.
Ora, para este efeito, o Tribunal não dispõe de quaisquer elementos objetivos que lhe permitam avaliar in concreto da existência de meios alternativos que, promovendo igualmente o fim pretendido, possam ser menos restritivos do direito de livre iniciativa económica privada. De facto, para impedir que os operadores económicos contornem a aplicação das novas taxas de imposto sobre o consumo de tabaco, através da antecipação da introdução no consumo de quantidades de tabaco que apenas são comercializadas no ano económico seguinte, não se vê que outra medida igualmente idónea poderia, com o mesmo grau de eficácia, realizar aquele objetivo, provocando menores danos à liberdade de iniciativa económica. É certo que é possível equacionar instrumentos diversos do condicionamento económico ou até regras de condicionamento com diferente conteúdo, quer quanto aos limites quantitativos quer quanto à calendarização da medida, que, em abstrato, também sejam aptas à realização daquele fim. Mas a escolha do meio mais benigno ou menos oneroso é já uma operação que exige um conhecimento preciso das condições fácticas subjacentes à opção que foi tomada pelo legislador. Ora, de acordo com os critérios de ponderação de que dispõe o Tribunal, nada aponta para que, de entre as várias possibilidades aptas a impedir a perda de receita fiscal resultante da antecipação da introdução no consumo do tabaco manufaturado, haja alguma que objetivamente produza menos consequências gravosas para os operadores económicos. Repare-se que o regime de condicionamento estabelecido no artigo 86.º do CIEC não veda em absoluto a possibilidade das empresas deste setor introduzirem no consumo as quantidades de tabaco que necessitem de comercializar. Como já se referiu, nos números 7 a 8 daquele artigo prevê-se a possibilidade dos operadores económicos acomodarem o seu comércio ao aumento pontual ou duradouro da procura decorrente do normal funcionamento do mercado, mediante uma autorização específica para introduzirem no consumo quantidades superiores ao limite de 30% sobre a média mensal do ano económico anterior. Com esta possibilidade, os eventuais prejuízos provocados pela regra de condicionamento derivam exclusivamente da exigência de se comprovar perante o diretor da alfândega a existência de uma situação de aumento brusco ou duradouro do volume de vendas de tabaco manufaturado. O que significa que a afetação da liberdade do exercício do comércio acaba por ser sensivelmente diminuta, tornando ainda mais difícil antever alternativas menos restritivas que a regra de condicionamento.
Perante a dificuldade em demonstrar a existência de meios que, promovendo igualmente o fim pretendido, causem menos transtorno aos operadores económicos, há que respeitar a escolha do legislador, caso a mesma não se mostre excessiva, desproporcional ou desrazoável. Trata-se agora, como refere Gomes Canotilho, «de uma questão de «medida» ou de «desmedida» para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim» (Direito Constitucional, 5.ª ed. pág. 270).
Assim, valorando e ponderando os interesses em jogo, é evidente que o fim de interesse público prosseguido pela regra de condicionamento tem mais peso que a gravidade de sacrifício que com ela se impõe aos operadores económicos. A vertente da liberdade de iniciativa privada afetada pela regra de condicionamento económico não foi a da iniciativa, escolha ou acesso a uma determinada atividade económica, mas apenas a que respeita ao exercício empresarial, uma dimensão de liberdade em que as possibilidades de restrição com a expressa invocação do “interesse geral" são bem mais amplas (cf. artigo 61.º, n.º 1 da CRP). E à menor resistência do direito de livre iniciativa económica privada acresce o facto da regra de condicionamento possibilitar um crescimento de 30% de comercialização de tabaco relativamente ao ano anterior, o que já por si representa um aumento acentuado da procura, num curto prazo, de um produto em que os hábitos dos consumidores não propiciam grandes variações; assim como permitir-se que os operadores económicos introduzam no consumo as quantidades de tabaco solicitadas pelo aumento da procura, bastando para tal que comprovem tal necessidade aos serviços da alfândega. Por conseguinte, o grau de restrição à liberdade de iniciativa económica é bastante baixo quando comparado com as vantagens que dela resultam para o fim que com ela se pretende alcançar.
Como já foi referido, o objetivo da regra de condicionamento é garantir que as receitas estimadas no Orçamento de Estado com o aumento do imposto sobre o consumo de tabaco sejam efetivamente arrecadas, o que não estava a ser conseguido em virtude da ação dos operadores económicos. Ora, destinando-se as receitas fiscais a satisfazer as necessidades financeiras do Estado e a dar suporte a tarefas estaduais que satisfazem necessidades coletivas, muitas delas por imposição constitucional, não é evidente que, de acordo com os critérios de ponderação de que dispõe o Tribunal, o grau de sacrifício imposto aos particulares seja mais intenso do que aquele que, para o interesse público, se ganha com a regra de condicionamento. O que se perde em liberdade é muito escasso quando comparado com os benefícios para o “interesse coletivo" ou “interesse geral" que decorrem de uma execução equilibrada do orçamento. De modo que, a importância ou premência do fim que se pretende alcançar – evitar práticas “lesivas das receitas do estado" – quando associada ao diminuto prejuízo causado aos operadores económicos, levam a concluir que a restrição imposta pela regra de condicionamento não se mostra excessiva ou desproporcional em relação às vantagens que dela se espera obter.
Conclui-se, assim, que a regra de condicionamento imposta pelo n.º 6 do artigo 86.º do CIEC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro, também não padece da inconstitucionalidade material que deu fundamento à decisão recorrida.

III – Decisão

Pelo exposto, e com estes fundamentos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma contida no n.º 6 do artigo 86.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 155/2005 de 8 de setembro;
b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo relativo à questão de constitucionalidade.