Diploma

Diário da República n.º 68, Série II, de 2014-04-07
Acórdão n.º 69/2014

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 69/2014 de 07/04, Processo n.º 407/13

Emissor
Tribunal Constitucional
Tipo: Acórdão
Páginas: 9451/0
Número: 69/2014
Parte: Parte D
Publicação: 8 de Abril, 2014
Disponibilização: 7 de Abril, 2014
Não julga inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 258.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual não é permitido o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado

Diploma

Não julga inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 258.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual não é permitido o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado

Acórdão n.º 69/2014

Processo n.º 407/13
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1 – Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos Nuno Alexandre Antunes Garcia e Júlia Isabel Batista Leiria, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).

2 – Os ora recorridos requereram a sua declaração de insolvência, apresentando um plano de pagamentos.
Proferido despacho liminar e organizado o apenso do incidente de aprovação do plano de pagamentos, procedeu-se à notificação dos credores nos termos do artigo 256.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março.
Na sequência das respostas oferecidas, os devedores apresentaram novo plano de pagamentos, com valores corrigidos. Não tendo este plano sido aprovado por unanimidade, requereram o suprimento do consentimento dos credores oponentes o que viria a ser indeferido por decisão de 7 de janeiro de 2013 que, em consequência, rejeitou a homologação do plano apresentado. Interposto recurso, que não foi admitido, reclamaram os devedores para o Tribunal da Relação. Por decisão de 24 de abril (a decisão aqui recorrida), considerando-se inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição, a norma do artigo 258.º, n.º 4 do CIRE (que estipula a irrecorribilidade da decisão que indefere o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor), foi recusada a sua aplicação e deferida a reclamação.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.

3 – Notificadas as partes, viriam ambas alegar, apresentando o recorrente as seguintes conclusões (fls. 81 a 82):

«1 – A finalidade única do processo de insolvência é a satisfação dos credores, que pode ser alcançada pela forma prevista nos artigos 251.º e 257.º do CIRE, ou seja, com a presentação e aprovação de um plano de pagamentos.
2 – A decisão que defere o pedido de suprimento do consentimento dos credores oponentes ao plano de pagamento e consequentemente o homologa, coloca aqueles credores numa posição processual diferente daquela em que é colocado o devedor, apresentador do plano, perante uma decisão de indeferimento do pedido e a sua não homologação.
3 – Essa diferença justifica que, no primeiro caso, seja admissível recurso da decisão por parte daqueles credores e que, no segundo, não o seja, por parte dos devedores.
4 – A não homologação do plano, tem como consequência que o processo de insolvência – que tem natureza urgente – prossiga a sua normal tramitação, gozando o devedor de todos os direitos ali consignados, designadamente o de recorrer da decisão que declara a insolvência.
5 – Assim, a norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE enquanto estabelece que não cabe recurso da decisão que indefere o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, não viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) nem o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
6 – Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso».

4 – Por sua vez, os recorridos apresentaram as seguintes conclusões (fls. 90-93):

«A. Determina o artigo 258.º, n.º 4, do CIRE que: “Não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor."
B. Ora, a decisão de não suprir a aprovação de credores pode implicar o “desmoronar" da vida dos Recorrentes porque está em causa uma decisão que influirá necessariamente sobre a sua capacidade jurídica que ficará naturalmente limitada, para além de que implicará forçosa e necessariamente a liquidação de todo o seu ativo.
C. A irrecorribilidade da decisão de não suprimento da aprovação dos credores configura uma norma cujo teor é manifestamente inconstitucional, por violar os artigos 13.º, 18.º e 20.º, da Constituição da República Portuguesa, ao contrário do que defende o Ministério Público.
D. O indeferimento do pedido de suprimento da aprovação pelos credores, do plano de pagamentos tem, como efeito obrigatório, a declaração de insolvência dos Recorridos na plenitude dos seus termos, conforme previsto nos artigos 262.º, 36.º e ou 39.º, do CIRE e não a constante do artigo 259.º, n.º 1, do mesmo Código, cujos efeitos e consequências são totalmente distintos.
E. Acresce que, contrariamente aos efeitos limitados da declaração de insolvência prevista no artigo 259.º, n.º 1 do CIRE, a declaração na plenitude do artigo 36.º, do CIRE implica a publicidade e registo nos assentos de nascimento de cada um dos Recorridos, conforme prevê o artigo 38.º, n.º 2, al. a), do CIRE,
F. Ou seja, podemos declarar que o Estado e os Interesses Imateriais dos Recorridos são fortemente alterados.
G. Ou seja, discordando frontalmente da posição assumida pelo Ministério Publico, o que está em causa é muito mais profundo e relevante do que simplesmente, e recorrendo às palavras do Ministério Público “[…] apenas tem como consequência que o processo de insolvência deve continuar a sua normal tramitação."
H. O facto de o processo seguir os termos normais de um processo de insolvência, acarreta consequências devastadoras para os Recorridos, que vão assistir à privação de administração dos seus bens, à apreensão e consequente liquidação do seu ativo, para além de assistirem à publicidade e registo nos assentos de nascimento de cada um dos Recorridos, da sua situação de insolvência.
I. Ainda no seguimento das alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, não podem os recorridos deixar de discordar frontalmente com a tese perfilhada quando ao “grau de recurso" expandida em tais alegações.
J. A tese defendida pelo Ministério Público de que sempre podem os Recorridos recorrer, na sentença de declaração de insolvência, da não homologação do plano de pagamentos, estando, assim, garantido, um grau de recurso, não encontra qualquer apoio na letra da lei – antes pelo contrário face ao que dispõe o artigo 258.º n.º 4 do CIRE, nem tão pouco no seu espírito.
K. Ora, parece evidente que o recurso da sentença de declaração de insolvência não é o local próprio para a interposição de recurso da não homologação do plano de pagamentos.
L. E, mesmo que se admitisse, por mero raciocínio académico, tal eventualidade, NUNCA tal recurso poderia incidir sobre o indeferimento do pedido de suprimento, pois tal análise estaria sempre coartada pelo disposto no artigo 258.º n.º 4 do CIRE.
M. Deve ser sempre assegurado um grau de recurso em todas as decisões que não se perfilhem como de mero expediente, como é o caso “sub judice", para além de que na situação expressa no artigo 259.º n.º 3, do CIRE, está prevista a possibilidade de interposição de recurso da sentença homologatória do plano de pagamentos por parte de credores e independentemente do seu valor,
N. Facto que configura uma manifesta violação do princípio da igualdade, pois, por um lado não é permitido aos devedores recorrer da decisão de não suprimento da aprovação dos credores que fará desmoronar o “modus vivendo" do seu agregado familiar, com todos os traumas daí decorrentes e que na prática significa a não homologação do plano de pagamentos por si apresentado,
O. Ora, com o devido respeito, a desigualdade é patente, estando assim o artigo 258.º, n.º 4, do CIRE, ferido de manifesta inconstitucionalidade.
P. Com efeito, ponderados os valores que se encontram em causa, por um lado a VIDA e o “modus vivendi" de um agregado familiar com filhos menores e, por outro lado, um mero crédito reclamado a ser ou não ressarcido, não se entende e não se pode aceitar, à luz da mais elementar noção de Justiça, a disparidade de tratamento entre Devedores e os credores.
Q. Assim sendo, forçoso será concluir que não é constitucionalmente tolerável que o legislador ordinário elimine simplesmente a possibilidade de recurso no caso em apreço!
R. No sentido da inconstitucionalidade da não possibilidade de recurso já esse Tribunal se pronunciou num Acórdão proferido com o n.º 360/05, que determinou que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, o acesso a um grau de jurisdição.
S. Mas, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem o legislador que abrir a todos também essas vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça em qualquer discriminação, conforme decorre do Acórdão desse mesmo Tribunal, proferido em 23 de maio de 1990, com o n.º 163/90.
T. Acrescenta, ainda esse Tribunal Constitucional, em Acórdão proferido em 6 de abril de 1999, com o n.º 202/99, que a margem de discricionariedade que o legislador ordinário tem, contudo, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material, de forma a assegurar a manutenção do princípio da igualdade.
U. Finalmente, a disparidade de tratamento, supra exposta, viola frontalmente o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa quando esta refere que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei".
V. De igual forma, tem-se por violado o disposto no artigo 18.º, n.º 2 do Diploma Fundamental quando este dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
W. E, finalmente, encontram-se violados os n.ºs 4 e 5, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa quando enunciam que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo" e que “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos".
X. Assim e em consequência impõe-se a apreciação e análise do teor do aludido artigo 258.º, n.º 4, do CIRE, concluindo-se pela sua evidente e manifesta inconstitucionalidade,
Y. Não devendo o recurso interposto pelo Ministério Público merecer provimento, devendo, consequentemente, ser declarada a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 258.º, n.º 4, do CIRE.»

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação
a) Delimitação do objeto do recurso

5 – O recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ou seja, trata-se do recurso de decisão de um tribunal que recusa a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
A decisão do tribunal a quo incide sobre a norma contida no n.º 4 do artigo 258.º do CIRE. Este preceito legal tem a seguinte redação:

«Não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor».

6 – O referido preceito foi desaplicado pelo tribunal a quo, por inconstitucional, «ao não permitir o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado ». Sendo assim, a dimensão normativa do referido preceito desaplicada pelo tribunal recorrido limita-se ao segmento que se traduz no não reconhecimento ao devedor da possibilidade de recorrer da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor.
É esta dimensão normativa que o acórdão recorrido considera violador dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição sendo, por conseguinte, sobre ela que incide o objeto do presente recurso.

b) Fundamentos da decisão recorrida

7 – O tribunal a quo desaplicou o preceito em causa por violação dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição.
Na base do assim decidido está a consideração de serem «inegáveis as vantagens para os devedores resultantes da aprovação do plano de pagamentos, ou, do suprimento dessa aprovação, tendo em conta que a insolvência que venha a ser decretada, na sequência da aprovação do plano, é uma insolvência “restrita" […] pois não tem as “normais" consequências da declaração da insolvência, desde logo, porque o devedor, apesar de ser declarado insolvente, não fica privado dos poderes de administração e de disposição do seu património, e as sentenças de homologação do plano de pagamentos e de declaração de insolvência, bem como a decisão de encerramento do processo (que ocorre com o trânsito em julgado daquelas sentenças), nem sequer são objeto de qualquer publicidade ou registo (cf. n.ºs 4 e 5 do artigo 259.º do CIRE)» (fls. 45).
Entendendo que «a decisão de suprimento dos credores oponentes no plano de pagamentos, prevista no artigo 258.º do CIRE, reveste-se de particular importância para os devedores, pois dela depende a homologação que venha a ser decretada, com as inerentes consequências na sua esfera pessoal e patrimonial» o tribunal a quo conclui que não se justifica, o impedimento ao recurso daquela decisão, previsto no n.º 4 do artigo 258.º do CIRE. Depois de assinalar que da mesma norma decorre, a contrario sensu, que a decisão de concessão do suprimento é recorrível nos termos gerais previstos no CIRE, ainda que «o ataque ao suprimento, em vista do que dispõe o artigo 259.º n.º 3 do CIRE, tenha de ser feito, pelos credores cuja aprovação haja sido suprida, através da impugnação da sentença homologatória do plano de pagamentos», conclui-se na decisão recorrida que: «não se encontra fundamento bastante, nem no tipo de incidente em causa, nem na natureza e finalidade do processo de insolvência, que justifique tal diferenciação de tratamento entre as partes, colocando de um lado, os devedores, que, por via da norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE ficam impedidos de recorrer da decisão que indeferira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença de não homologação do plano, e, do outro, os credores cuja aprovação haja sido suprida, que podem recorrer da sentença homologatória» (p. 46). Não deixando de salientar a relevância da tramitação urgente no processo de insolvência, para garantir a sua eficácia, sublinha-se todavia na decisão recorrida a necessidade de conciliar esse interesse com os «direitos fundamentais das partes, de modo a que, em nome daqueles princípios, não se posterguem, de forma irrazoável e desproporcionada estes direitos». Ora, ainda no entendimento do tribunal recorrido, «da admissibilidade do recurso em causa não decorre prejuízo considerável para os credores, pois, como se sabe, não obstante o recebimento do incidente do plano de pagamentos aos credores implicar a suspensão do processo de insolvência até à decisão do incidente (cf. n.º 1 do artigo 255.º do CIRE), sempre podem ser adotadas as medidas cautelares previstas no artigo 31.º do mesmo código, se tal se revelar necessário». E conclui-se na decisão recorrida: «Deste modo, tendo em conta os interesses em causa e as consequências para a esfera pessoal e patrimonial dos devedores decorrentes da não homologação do plano de pagamentos, com a consequente declaração da insolvência, nos termos gerais, e porque não se encontra fundamento material bastante que justifique a descriminação no tratamento das partes no que respeita à impugnação da decisão que se pronuncie sobre o suprimento da aprovação do plano de pagamentos pelos credores, nos termos acima enunciados, considera-se inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, ao não permitir o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado, recusando-se a sua aplicação ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa».
É esta, pois, a fundamentação da decisão recorrida.

c) Do mérito do recurso

8 – A questão a decidir remete-nos para a temática do direito de recurso, em especial a vexata quaestio da exigência constitucional de um duplo grau de jurisdição, no caso relacionada especificamente com o regime jurídico do incidente da apresentação de plano de pagamentos aos credores no processo de insolvência.
Importa, pois, começar por recordar o regime legal deste incidente do processo de insolvência.

9 – O incidente do plano de pagamentos vem regulado nos artigos 251.º a 263.º do CIRE. Visa obviar à tramitação normal do processo de insolvência, pressupondo a elaboração de um plano que permita ao devedor liquidar as dívidas aos seus credores. É nesta possibilidade que reside a especialidade do regime específico da insolvência dos devedores não empresários ou titulares de pequenas empresas que ocupa o Capítulo II, do Título XI do CIRE.
Com a petição inicial do processo de insolvência (ou no prazo da contestação, caso não seja o requerente) o devedor que reúna os pressupostos previstos no artigo 249.º do CIRE pode apresentar um plano de pagamentos, aos credores, conjuntamente (artigo 251.º do CIRE).
Se o incidente não for liminarmente encerrado (sem direito a recurso), por considerar altamente improvável que venha a merecer aprovação (artigo 255.º do CIRE), o juiz determina a suspensão do processo de insolvência até à decisão do incidente do plano de pagamentos (artigo 255.º do CIRE), seguindo-se a citação dos credores para se pronunciarem sobre o plano de pagamentos apresentado.
No caso de nenhum dos credores recusar o plano de pagamentos, ou se a aprovação dos opositores ao plano for objeto de suprimento judicial (artigo 258.º do CIRE), o plano é aprovado (artigo 257.º, n.º 1, do CIRE)
com a consequente homologação pelo juiz, seguindo-se, após trânsito, a declaração da insolvência do devedor no processo principal apenas com as menções referidas nas alíneas a) e b) do artigo 36.º A eficácia de declaração da insolvência nestes moldes surge bastante atenuada relativamente à insolvência declarada nos termos gerais, desde logo por o devedor não ficar privado da administração e disposição dos seus bens.
Acresce que não é aberto o incidente de qualificação da insolvência, nem a sentença é objeto de qualquer publicidade (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª ed. Quid Juris, p. 830).
Se o incidente for logo encerrado (artigo 255.º, n.º 1 do CIRE) ou se o plano de pagamentos não lograr aprovação ou a respetiva sentença homologatória for revogada em sede de recurso, será proferida sentença de insolvência nos termos gerais (artigos 255.º, n.º 1 e 266.º do CIRE).
Da sentença que declara a insolvência cabe recurso nos termos gerais de acordo com o disposto nos artigos 14.º e 15.º do CIRE (regendo-se o processo de insolvência pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE – v. artigo 17.º do CIRE).

10 – Recordado o regime infraconstitucional cumpre analisar a sua conformidade com a Lei Fundamental, na parte objeto do presente recurso.
Constitui princípio geral do nosso ordenamento jurídico a recorribilidade das decisões judiciais. Contudo, a lei impõe certos limites objetivos à admissibilidade dos recursos, tendo em conta a natureza dos interesses nelas envolvidos e a sua repercussão económica para a parte vencida.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência a afirmar a ampla margem de discricionariedade reconhecida ao legislador na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos em processo civil, domínio em que, com ressalva para a matéria de direitos, liberdades e garantias, a Constituição não consagra o direito a um duplo grau de jurisdição.
Existem, todavia, limites a observar pelo legislador ordinário na conformação do direito ao recurso, mesmo em processo civil. Desde logo, um limite decorrente da própria previsão constitucional de tribunais superiores a implicar a inadmissibilidade da eliminação total da faculdade de recorrer em qualquer caso (cf., entre muitos, o Acórdão n.º 328/2012, disponível, como todos os acórdãos do Tribunal Constitucional adiante citados, in www.tribunalconstitucional.pt com remissão para o Acórdão n.º 44/2008, cuja desenvolvida análise sobre o direito ao recurso merece ser aqui recordada, nas partes pertinentes:

«Importa saber o que está em causa quando se fala em direito ao recurso.
A propósito do processo civil, ensinava Paulo Cunha (“Processo Comum de Declaração", 2.º Vol., págs. 368 e 376 e segs., ed. de 1944, de Augosto Costa) que os recursos são os meios de impugnação da sentença que consistem em se procurar a eliminação dos defeitos da sentença injusta ou inválida por devolução do julgamento a outro órgão da judicatura hierarquicamente superior, ou em se procurar a correção de uma sentença já transitada em julgado.[…] Um olhar minimamente atento sobre as regras que conformam a extensão da recorribilidade no âmbito das diferentes jurisdições permite chegar à conclusão de que a regra geral adotada pelo legislador ordinário no nosso sistema processual é a da recorribilidade das decisões judiciais para instâncias superiores.
Essa tem sido aliás a orientação geral dos diversos sistemas jurídicos desde a introdução da appelatio do direito processual romano, apesar da existência de tribunais de recurso hierarquicamente superiores não deixar de suscitar opiniões críticas, sobretudo em épocas de “revolução" (referenciando estas críticas, vide Armindo Ribeiro Mendes, em “Direito processual civil III – Recursos", pág. 121-123, da ed. da A.A.F.D.L., de 1982).
Contudo, olhando a Constituição, não vemos nenhum preceito que consagre expressamente, em termos genéricos, o direito a um duplo grau de jurisdição.
A Revisão Constitucional de 1997 procedeu somente à alteração do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, autonomizando expressamente o recurso no contexto das garantias de defesa do arguido que o processo penal deve assegurar.
Este direito ao recurso, como garantia de defesa, tem sido identificado pelo Tribunal Constitucional com a garantia do duplo grau de jurisdição quanto a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penas respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Ao mesmo tempo que isso é reconhecido, não se deixa igualmente de afirmar que a Constituição não assegura o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal, havendo assim de admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certas decisões, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido. […] Porém, são vários os preceitos constitucionais dos quais se pode retirar uma consagração implícita de um direito geral ao recurso, nomeadamente aqueles que se referem ao Supremo Tribunal de Justiça e aos Tribunais judiciais de primeira e segunda instância (artigos 209.º, n.º 1, a), e 210.º, n.º 1, 3, 4 e 5).
Desta previsão constitucional de tribunais de diferente hierarquia resulta que o legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação global dos recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional (cf. Fernandes Thomaz e Colaço Canário, em “O objeto do recurso em processo civil", na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 42, 1982, II, págs. 365-366, e Armindo Ribeiro Mendes, na ob. cit., págs. 124-127).
Para além desta limitação, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso.
Não é desconhecida, porém, a tese da imposição constitucional da recorribilidade das decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos “direitos, liberdades e garantias". Esta tese tem origem numa declaração de voto aposta por Vital Moreira, no acórdão n.º 65/88 (em “Acórdãos do Tribunal Constitucional", 11.º vol., pág. 653) com o seguinte teor:

“Votei a conclusão do acórdão, mas não acompanho em tudo a respectiva fundamentação. Com efeito, penso que há-de considerar-se constitucionalmente garantido – ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático – o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal – como se reconhece no acórdão – mas também todas as decisões judiciais que afetem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 25.º e seguintes da CRP).
É neste entendimento que continuo a sustentar o que noutro lugar subscrevi (Constituição da República Portuguesa Anotada, de que sou co-autor, juntamente com J. J. Gomes Canotilho), no sentido de que «o direito de recurso para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes garantias constitucionais», naturalmente quando se trata da «defesa de direitos fundamentais» (ob. cit., 2.ª ed., vol. 1.º, p. 181, nota III ao artigo 20.º).
De resto, não é por acaso que em alguns ordenamentos constitucionais estrangeiros existem específicos recursos de defesa de direitos fundamentais («recurso de amparo», «Verfassungsbeschwerde»), inclusive contra decisões judiciais, recurso normalmente destinado aos tribunais constitucionais, ou com funções de jurisdição constitucional.
Entre nós, não existindo tal figura (cf. ob. cit., ibidem), penso que não pode deixar de considerar-se necessária ao menos a garantia de um grau de recurso (e portanto de um «duplo grau de jurisdição») como componente inerente ao regime constitucional das garantias dos direitos fundamentais constitucionais.
Recorde-se, de resto, que uma tal ideia de reapreciação jurisdicional das decisões (inclusive as judiciais) que afetem direitos fundamentais encontra eco mesmo no plano de direito internacional, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, através da queixa dos particulares à Comissão Europeia dos Direitos do Homem, com eventual submissão de tal queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem."

A esta posição veio a aderir António Vitorino, na declaração de voto aposta ao acórdão n.º 202/90 (em “Acórdãos do Tribunal Constitucional", 16.º vol., pág. 505).
Pode ler-se também no comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao artigo 20.º, da C.R.P. (em “Constituição da República Portuguesa anotada", vol. I, págs. 161-165, da 4.ª Edição, da Coimbra Editora):

“O direito de acesso aos tribunais e à tutela judicial efetiva não fundamenta um direito subjetivo ao duplo grau de jurisdição. Discute-se em que medida o direito de acesso aos tribunais inclui o direito ao recurso das decisões judiciais, traduzido no direito ao duplo grau de jurisdição. A chamada doutrina de “2.ª instância em matéria penal" encontra-se expressamente consagrada no artigo 14.º-5 do PIDCP e resulta já do artigo 32.º-1 da CRP (Ac. TC n.º 210/86 e 8/87). Não existe, porém, um preceito constitucional a consagrar “a dupla instância" ou o duplo grau de jurisdição em termos gerais (Ac. TC n.º 31/87, 65/88, 163/90, 259/97 e 595/98). Todavia, o recurso das decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, mesmo fora do âmbito penal, apresenta-se como garantia imprescindível desses direitos. Em todo o caso, embora o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à regulação dos requisitos e graus de recurso, ele não pode regulá-lo de forma discriminatória, nem limitá-lo de forma excessiva […]".

Referem ainda Jorge Miranda e Rui Medeiros (em “Constituição Portuguesa Anotada", tomo I, pág. 200, da ed. de 2005, da Coimbra Editora) o seguinte:

“A plenitude do acesso à jurisdição e os princípios da juridicidade e da igualdade postulam um sistema que assegure a proteção dos interessados contra os próprios atos jurisdicionais, incluindo um direito de recurso.
É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das ações aos diversos “patamares" de recurso […].
O Tribunal Constitucional reconhece, no entanto, que – por força dos artigos 27.º, 28.º, e 32.º, n.º 1 – a exigência de um duplo grau de jurisdição […] está constitucionalmente consagrada no âmbito do processo penal, não relativamente a todas as decisões proferidas, mas em relação às decisões condenatórias do arguido […] bem como às decisões respeitantes à situação do arguido em face da privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais […].
Conclusão análoga – sustentada, em termos ainda assim não inteiramente coincidentes, mais por parte da doutrina do que pela jurisprudência dominante […] deve admitir-se relativamente às decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias (ou, pelo menos, em face da preocupação constitucional, subjacente ao artigo 20.º, n.º 5, em assegurar a tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais, em relação às decisões jurisdicionais que restrinjam tais direitos). A conclusão baseia-se na analogia com a situação consagrada em matéria de restrições à liberdade e é coerente com o princípio do caráter restritivo das restrições aos direitos, liberdades e garantias, que se extrai do artigo 18.º, n.º 2 e 3."».

11 – Importa aludir ainda a um outro limite que se impõe à liberdade de conformação do legislador em matéria de direito ao recurso em processo civil, decorrente do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição) e, mais especificamente, do princípio da igualdade. Como o Tribunal tem também reiteradamente sublinhado, no processo civil, o que a lei tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição. Contudo, se abrir o acesso à via judiciária em mais que um grau, tem de fazê-lo igualmente com respeito a todos, sem qualquer discriminação (cf. Acórdãos n.º 360/2005 e 163/90). A ampla margem de discricionariedade concedida ao legislador na conformação do direito ao recurso em processo civil tem como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (Acórdão n.º 202/99).

12 – Na análise a empreender da conformidade constitucional do critério normativo adotado importa começar por sublinhar que a finalidade do processo de insolvência é a satisfação dos credores (artigo 1.º do CIRE).
Como acima se começou por referir, a especialidade do regime específico da insolvência dos devedores não empresários ou titulares de pequenas empresas reside na possibilidade de apresentação pelo devedor de um plano de pagamento aos seus credores.
Apesar de o plano de pagamentos não ter um conteúdo típico definido na lei, ele não pode deixar de prosseguir o único fim para que é instituído. E este, como já acima assinalado, é a satisfação dos interesses dos credores. Nos termos do artigo 252.º, n.º 1 do CIRE «o plano de pagamentos deve conter uma proposta de satisfação dos direitos dos credores que acautele devidamente os interesses destes, de forma a obter a respetiva aprovação, tendo em conta a situação do devedor» (sublinhado nosso).
Assim, ainda que por recurso a um critério pragmático, o CIRE não deixa de indicar o grau de satisfação dos credores que o plano de pagamentos tem necessariamente de assegurar.
Como salientado por Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 812:

«Em termos concretos, pode dizer-se que o legislador indica aqui ao devedor dois critérios a que deve atender na formulação da proposta do plano de pagamentos a apresentar aos seus credores: um absoluto e outro relativo.
Segundo o primeiro, as medidas do plano devem ser tais que assegurem aos credores a satisfação dos seus interesses em medida que os leve a aceitá-lo, por ser, pelo menos, correspondente à satisfação que o prosseguimento do processo de insolvência, nas suas várias fases, razoavelmente acarretaria.
O grau de satisfação dos interesses dos credores não pode deixar de ter em conta a situação patrimonial do devedor. Está aqui presente uma ideia de proporcionalidade, no sentido de aquilo que o plano oferece aos credores deve ser aferido em função do que eles poderiam esperar receber, atendendo a essa situação».

Conclui-se, assim, que o plano de pagamentos tem necessariamente de ter um conteúdo que permita a aprovação dos credores. É este o seu objetivo. Pelo que constitui interesse do devedor apresentar um plano que permita aos credores, tendo em conta a situação económica daquele, preferir a sua aprovação a correr os riscos inerentes à prossecução dos trâmites normais do processo de insolvência.
O suprimento da aprovação dos credores surge, pois, apenas num segundo momento, depois de apresentado o plano, e pressupõe a aprovação de credores que representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor. Apesar de poder ser requerido pelo devedor (como por qualquer dos credores que aprovam o plano) o deferimento do suprimento da vontade dos credores, tal como a aprovação do plano de pagamentos, não configuram direitos subjetivos (de tipo potestativo) deste. Apenas se estiverem reunidos os pressupostos previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 258.º do CIRE, o tribunal poderá suprir a aprovação dos demais credores, o que exige do juiz uma complexa avaliação dos dados disponíveis, necessariamente caraterizados ainda por uma forte incerteza em função da fase em que o processo se encontra (desde logo, perante a suspensão do processo de insolvência, os elementos disponíveis quanto à situação do devedor são apenas os fornecidos por este nos anexos ao plano apresentado).
Se o plano de pagamentos não for aprovado, os autos retomam os trâmites normais do processo de insolvência, sendo reconhecido ao devedor o direito de recorrer da decisão que declarar a sua insolvência, nos termos gerais.

13 – Não se olvida que o indeferimento do pedido de suprimento da vontade de credores oponentes do plano conduz à não homologação do plano de pagamentos e esta acarreta consequências para o devedor.
Com efeito, a não aprovação do plano de pagamentos implica a retoma dos termos do processo de insolvência, cessando a suspensão determinada pela decisão prevista no artigo 255.º, n.º 1 do CIRE. O processo segue, então, com a prolação da sentença de declaração de insolvência (artigo 262.º do CIRE), a menos que, ao apresentar o plano de pagamentos o devedor tenha desde logo declarado que, no caso de não aprovação do plano, pretende a exoneração do passivo restante. Nesta situação é aberto o incidente regulado nos artigos 235.º e seguintes, do CIRE (v. artigo 254.º).
Ora, é inegável a mitigação dos efeitos da declaração da insolvência na sequência de aprovação do plano de pagamentos, quando comparada com a insolvência declarada sem a aprovação de um tal plano. Tenha-se em consideração, em especial, que no caso de aprovação do plano de pagamentos por si apresentado, o devedor não é inibido da administração e disposição dos seus bens, não é aberto o incidente de qualificação da insolvência, nem a sentença é objeto de qualquer publicidade. Estes efeitos não constituem, porém, direitos do devedor, antes configuram consequências da apresentação pelo mesmo de um plano de pagamentos que reuniu a aprovação dos credores, seguramente, por satisfazer os interesses destes.
De todo o modo, as consequências para o devedor da não aprovação do plano que apresentou não integram o conteúdo da decisão de não suprimento da vontade de qualquer credor. Elas surgem apenas como resultado dos atos processuais subsequentes no encadeado lógico que compõe o processo de insolvência e, como tal, não podem deixar de ser avaliadas na ponderação dos equilíbrios que ali se jogam. Numa tal ponderação impõe-se com particular relevo a natureza urgente do processo falimentar.

14 – A promoção da celeridade do processo de insolvência encontra, de há muito, reconhecimento pelo legislador infraconstitucional, enquanto fator decisivo de implementação de eficácia num procedimento que tem como principal objetivo a satisfação, pela forma mais eficiente, dos direitos dos credores. Como salientado por Menezes Cordeiro (“Introdução ao Direito da Insolvência", O Direito, 137.º, 2005, III, p. 480), «Podem ocorrer questões prévias, prejudiciais ou preliminares que, sendo consideradas – como não deixarão de ser, desde que pertinentes – alongam desmesuradamente todo o processo.
Ao apontar, entre os processos especiais, a falência, o Direito Processual procurou apurar uma metodologia que acelere e simplifique as operações da liquidação de patrimónios, nela subjacentes».
Operando como uma ação executiva universal e coletiva em que se jogam interesses contrapostos não apenas entre o insolvente e os credores, como também dos diversos credores entre si, o processo de insolvência exige, com efeito, uma tramitação célere e simplificada.
A apresentação de plano de pagamentos constitui uma faculdade atribuída ao devedor tendente a obviar à normal tramitação do processo de insolvência, abrindo um incidente que conduz à suspensão deste.
O respetivo encerramento reabre, portanto, o processo de insolvência o qual, acautelando devidamente os direitos dos credores, dispensa o recurso a medidas cautelares (artigo 31.º do CIRE), cujo decretamento e execução sempre se configuraria como necessariamente mais moroso do que o prosseguimento dos trâmites normais do processo. Acresce que, partindo do devedor a iniciativa de pedir a sua declaração de insolvência, dificilmente se configura a verificação dos requisitos gerais de decretamento de uma medida cautelar, nomeadamente o receio ou risco efetivo da prática de atos lesivos dos direitos dos credores.
No âmbito deste incidente, o legislador confiou à apreciação por um juiz, munido das garantias de independência constitucionalmente reconhecidas (artigo 203.º da Constituição), o suprimento da aprovação dos credores. Esta decisão é, pois, proferida no âmbito de um incidente do processo de insolvência que, visando obviar à tramitação normal do processo de insolvência, implica a suspensão deste. Simplesmente, para que aquela suspensão se verifique é necessário que o devedor apresente um plano de pagamentos suscetível de colher a aprovação dos seus credores.
Em coerência com este desiderato, recorde-se que o juiz só suspende o processo de insolvência se não se lhe afigurar “altamente improvável que o plano de pagamentos venha a merecer aprovação" (artigo 255.º, n.º 1 do CIRE). Caso contrário, dá o incidente por encerrado sem que desta decisão caiba recurso (idem).
Nesta articulação dos vários interesses que se jogam na apreciação do pedido de suprimento da vontade de alguns credores, a operar num tempo necessariamente côngruo e no respeito pela adequada racionalização do sistema judiciário, o acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva através da apreciação num grau de jurisdição satisfaz as exigências contidas no artigo 20.º da Constituição.

15 – Das considerações anteriores resulta claro que não se está perante nenhum dos casos em que a jurisprudência constitucional reconhece a exigência de um duplo grau de jurisdição – não se está no âmbito do processo penal nem se impõem restrições a direitos, liberdades e garantias. De facto, os efeitos decorrentes para o devedor, sendo-lhe favoráveis, não constituem, seus direitos mas antes consequências da faculdade de apresentação pelo mesmo de um plano de pagamentos e da reunião, por este, da aprovação dos credores. É, portanto, a esta luz – da não consagração constitucional do direito a um 2.º grau de jurisdição neste domínio, por um lado, e da proibição do arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade, quando o legislador opte por abrir a possibilidade de recurso, por outro – que importa analisar o critério normativo adotado no artigo 258.º, n.º 4, do CIRE ao impedir o devedor de recorrer da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor. Com efeito, se for proferida decisão de sentido inverso, i.e., a conceder provimento ao pedido de suprimento da vontade de alguns credores, estes podem recorrer daquela decisão.
Importa, assim, verificar, se a norma em apreciação respeita o princípio da igualdade na garantia do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 13.º da Constituição). Nesta apreciação deve-se regressar à razão de ser do instituto em que se enquadra a norma em análise. E esta é o plano de pagamentos aos credores.

16 – Sendo para satisfação dos direitos dos credores que a lei prevê a apresentação de plano de pagamentos por parte do devedor (artigo 251.º do CIRE), compreende-se que a admissibilidade deste plano de pagamentos dependa da aprovação daqueles. A oposição de alguns credores pode ser suprida por decisão do juiz. Mas, este suprimento está também limitado pela verificação de determinados requisitos previstos na lei, designadamente no artigo 258.º, n.º 1, do CIRE. Desde logo, se o plano não for aceite pela maioria qualificada de dois terços do valor total dos créditos, o juiz não pode suprir a aprovação dos credores oponentes.
Pelo contrário, se nenhum credor recusar o plano de pagamentos ou a oposição de alguns (não podendo representar mais de um terço do valor total dos créditos), for objeto do necessário suprimento judicial, o plano é tido por aprovado. Neste caso, a modalidade de satisfação dos respetivos créditos é imposta aos credores oponentes, o que justifica o direito destes ao recurso, expressamente acautelado no artigo 259.º, n.º 3 do CIRE.
Ao negar o recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da vontade de qualquer credor, a norma em análise não institui diferença de tratamento entre os devedores e os demais credores que deram a sua aprovação ao plano de pagamentos. O recurso é vedado tanto ao devedor como aos credores que aprovaram o plano. A diferença surge apenas na permissão de recurso aos credores oponentes do plano cuja vontade é suprida pela decisão judicial.
Ora, do regime legal descrito decorre que a decisão judicial de suprimento da aprovação do plano de pagamentos, e sua consequente homologação, coloca os credores oponentes numa posição processual particular que não encontra paralelo nem na posição dos demais credores, que deram o seu assentimento ao plano, nem na posição do devedor que o propôs.
Tão-pouco existe paralelo com a posição jurídico-processual que para o devedor deriva do indeferimento do pedido, por si apresentado, de suprimento da aprovação de alguns credores. É que neste caso, o processo de insolvência segue os seus termos normais, gozando os devedores de todos os direitos previstos no CIRE, entre os quais se conta, designadamente, o direito de recorrer da decisão que vier a declarar a insolvência.
Diferentemente dos credores, cuja oposição ao plano de pagamentos é suprida por decisão do juiz (e, nessa medida, veem o seu direito de crédito modelado ou restringido contra a sua vontade), o devedor, que não veja deferido o pedido de suprimento da vontade dos credores oponentes do plano, não sofre qualquer alteração na sua esfera de direitos com a decisão de indeferimento.
Esta diferença afasta a verificação de arbítrio no reconhecimento de direito ao recurso apenas aos primeiros, não se apresentando como discriminatória a diferença de tratamento assinalada. O legislador limitou-se a instituir vias de solução diferentes para situações também elas diferentes, abrindo o acesso ao recurso apenas àqueles a quem a decisão judicial (neste caso de suprimento de vontade) impõe uma restrição na sua esfera de direitos.
Não há, assim, um tratamento discriminatório na norma em análise que desrespeite o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).

17 – Em conclusão, não impondo o direito de acesso aos tribunais a garantia do acesso a diferentes graus de jurisdição, assistindo ao legislador ordinário, no âmbito do processo de natureza civil, uma margem ampla de liberdade na conformação do direito ao recurso, e não podendo qualificar-se como arbitrário ou desprovido de justificação objetiva, o não reconhecimento ao devedor do direito ao recurso da decisão que indefere o suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado, decorrente do artigo 258.º, n.º 4 do CIRE, não se mostram violadas as disposições dos artigos 2.º, 13.º ou 20.º da Constituição.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, na interpretação segundo a qual, não é permitido o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado Em consequência, conceder provimento ao recurso.

Sem custas.