Doutrina Administrativa
Tributação do património : IS

Processo n.º 2011002704

 

Assunto
Transmissão de estabelecimento comercial - Trespasse
Tipo: Informações Vinculativas
Data: 1 de Fevereiro, 2014
Número: 2011002704
Diploma: CIS
Artigo: Verba 27.1 TGIS

Doutrina

Transmissão de estabelecimento comercial - Trespasse

Nos termos do artigo 68.º da Lei Geral Tributária foi apresentado um pedido de informação vinculativa quanto ao enquadramento da seguinte situação jurídico-tributária:

a) A requerente é tributada na categoria B do IRS, pela obtenção de rendimentos empresariais e dedica-se à exploração de um estabelecimento comercial;

b) Pretende proceder à transformação em sociedade unipessoal por quotas através da realização do capital social resultante da transmissão da totalidade do património afeto ao exercício de uma atividade empresarial;

c) Face ao enquadramento factual considera-se que o imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento comercial em análise é propriedade da ora requerente e que inexiste qualquer contrato de arrendamento relativamente àquele, e que a transmissão da totalidade do património afeto ao exercício da atividade empresarial não inclui a transmissão de qualquer direito de arrendamento para fins não habitacionais.

1. ANÁLISE

A Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) enuncia os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos, sobre os quais incide imposto do selo, com a previsão na verba 27 das "Transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços". Esta verba divide-se nas verbas 27.1 e 27.2, que, respetivamente, prevêem os "Trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola" e as "Subconcessões e trespasses de concessões feitos pelo Estado, pelas Regiões autónomas ou pelas autarquias locais, para exploração de empresas ou de serviços de qualquer natureza, tenha ou não principiado a exploração". Incide imposto do selo sobre o valor dos mesmos à taxa de 5%.

Pode ler-se no Preâmbulo ao Código do Imposto do Selo que "por razões de equidade e uniformidade, passam a incluir-se na mesma verba os trespasses de estabelecimentos comerciais, industriais ou agrícolas". Se no que diz respeito às "subconcessões e os trespasses das concessões feitas pelo Estado ou autarquias locais para a exploração de empresas industriais de qualquer natureza, tenha ou não principiado a exploração" já existia norma de incidência sobre essa realidade no n.º 1, do artigo 8.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto Sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), o mesmo não sucedia com o trespasse de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola.

Em sede de CIMSISD, havia sujeição a Sisa quando o concessionário vendia a outrem a sua posição no serviço, constituindo matéria tributável do acto, o preço pago pela aquisição do direito de exploração e pelo conjunto de outros bens que com ele fossem alienados. Sempre que a título oneroso houvesse a transmissão da concessão, de uma, para outra entidade distinta, havia sujeição a Sisa. Registe-se ainda que até 31.12.2003 estas realidades só eram tributadas em imposto do selo pela Verba 8 - o escrito/contrato.

O texto da epígrafe da verba 27 da TGIS refere-se a "Transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços". Temos, assim, como ponto de partida na apreciação da questão controvertida o elemento literal do preceito em apreço que ao alargar a incidência do imposto do selo às "actividades" e "exploração de serviços" transferidas onerosamente mais não fez do que concretizar um dos princípios orientadores que marcaram a reforma de 2000 e que foi o de ver afirmar-se o Imposto do Selo "cada vez mais como imposto sobre as operações que, independentemente da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza".

A lei fiscal não define a figura jurídica do trespasse, porém, em consonância com o previsto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT "Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei".

Se o direito fiscal se mostrar insuficiente deve o intérprete procurar a resposta à dúvida que se lhe coloca nos "outros ramos de direito", dando-se prevalência ao direito civil, é certo, mas aceitando-se também os contributos de outros ramos. O legislador veio salvaguardar no n.º 3 do artigo 11.º da LGT que "persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários".

A lei fiscal apenas nos diz que o trespasse traduz uma realidade jurídicoeconómica caracterizada por uma transferência onerosa de atividade(s) ou de exploração de serviço(s), no entanto, e em sede do Imposto do Selo - transmissões gratuitas, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIS associa o valor do estabelecimento comercial (o valor das existências, dos bens de equipamento, créditos, valores de patentes, de marcas de fabrico e de direitos conexos, bem como os respetivos débitos), ao valor do trespasse.

Nunca foi acolhido na lei pré-fiscal, civil ou comercial, portuguesa, qualquer conceito de trespasse, tendo o mesmo apenas alguns reflexos no regime do arrendamento urbano. Em face deste relativo vazio legal, tal conceito foi sendo cultivado pela doutrina, bem como burilado pela jurisprudência.

No itinerário pela lei pré-fiscal, somos, então, conduzidos ao regime do arrendamento urbano, para fins não habitacionais. Antes do atual Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25/11/1966, encontrava-se o trespasse disciplinado pelo artigo 64.º da Lei n.º 2030, de 22/06/1948.

Com a entrada em vigor deste diploma legal, a 01/06/1967, importa chamar à colação o n.º 2 do respetivo artigo 1118.º, onde, "a contrario", são acolhidos os elementos estruturantes desta figura contratual. Aí é dito que "não há trespasse: a) quando transmitida a fruição do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de comércio ou indústria, ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino; b) quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento".

Com a subtracção desta matéria ao Código Civil, operada pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, e a sua passagem para o Regime do Arrendamento Urbano, esta questão muito concreta passou a estar prevista pelo n.º 2 do respetivo artigo 115.º, preceito legal claramente inspirado pelo já transcrito n.º 2 do artigo 1118.º do Código Civil. Aí é dito que "não há trespasse: a) quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; b) quando transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de comércio ou indústria, ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino". Com uma pequena alteração de vocábulos - de "fruição" passou-se a "gozo"-, o teor destes dois preceitos legais e exatamente o mesmo, embora com uma troca na ordem das respetivas alíneas.

Com a reposição desta matéria no Código Civil, operada pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, e mantida pela Lei n.º 31/2012, de 14/08, a mesma questão passou a estar regulada no n.º 2 do respetivo artigo 1112.º. Aí é dito que "não há trespasse: a) quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; b) quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria, ou, de um modo geral, a sua afectação a outro destino". Mais uma vez, com alterações de pormenor, se manteve basicamente o mesmo texto.

Comentando todo este enquadramento legal de natureza pré-fiscal, que, como se deixou demonstrado, praticamente se cinge ao arrendamento urbano, dir-se-á que, durante muitos anos, o elevado valor atingido pelos trespasses só era explicável pelo facto de se passar a dispor de um estabelecimento comercial bem situado, com clientela feita, e pelo qual se pagava uma renda baixa, insusceptível de aumento. Independentemente de qualquer flutuação económica, ocorreram três fatores, de natureza estritamente jurídica, que alteraram radicalmente toda a situação descrita, fazendo cair vertiginosamente o valor dos trespasses, qualquer deles inquestionavelmente intencional, e com origem no Regime do Arrendamento Urbano: a) por um lado, passou a ser possível estabelecer uma duração limitada nos contratos de arrendamento; b) por outro lado, passou a ser possível aumentar o valor das rendas; c) e, por fim, o senhorio passou a dispor de um direito de preferência perante qualquer trespasse efectuado a título oneroso.

Em termos tributários, esta realidade só veio a ser considerada por via do Código do Imposto de Mais-Valias, o qual vigorou nos 23 anos e meio que decorreram entre 01/07/1965 e 31/12/1988. De uma forma mais analítica, dir-se-á que o trespassante - isto é, aquele que dá de trespasse – suportava Imposto de Mais-Valias, enquanto que o trespassário - isto é, aquele que toma de trespasse - suportava os emolumentos notariais inerentes a celebração da escritura publica de trespasse, bem como o imposto do selo, na base da verba 61 da respectiva Tabela Geral, a qual revestia caráter meramente residual.

Com a denominada Reforma da Tributação do Património, o enquadramento júridico-tributário do trespasse alterou-se, na medida em que passou a estar previsto expressamente, deixando, portanto, de lhe ser aplicável qualquer disposição residual. Assim, o artigo 68.º da Lei n.º 26/2003, de 30/07, diploma legal de autorização daquela reforma, estabeleceu diretamente a sujeição a imposto do selo, por via do aditamento da verba 27.1 à respetiva Tabela Geral, relativa a trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola. Concretizando a identificada autorização legislativa, veio o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12/11, alterar o CIS, bem como a respetiva Tabela Geral.

Prestadas estas explicações, dir-se-á que os trespasses são atualmente tributados nos termos que se passam a enunciar. O trespassante - isto é, aquele que dá de trespasse - suporta IRS, enquanto que o trespassário - isto é, aquele que toma de trespasse - suporta o imposto do selo, na base da verba 27.1 da respetiva Tabela Geral.

Para além da verba 27.1 da TGIS, a única referência ao trespasse que é feita pela lei fiscal é a constante do artigo 16.º do respetivo Código, epigrafado como "valor tributável dos estabelecimentos comerciais, industriais ou agrícolas", preceito legal incluído na Secção II – artigos 13.º a 21.º - do respetivo Capítulo III, a qual disciplina o valor tributável nas transmissões gratuitas, e cujo conteúdo não é suficientemente esclarecedor para efeitos da questão em apreciação. Nestes termos, é por demais evidente que, de longe, o maior contributo legal para a caracterização do trespasse provém não só do Direito Civil, mas mais especificamente do Regime do Arrendamento Urbano, no qual, ainda hoje, e em legislação recentíssima, e disciplinado de forma muito detalhada. Significa isto que, na base da lei vigente em Portugal, não se pode falar de trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola sem neles envolver bens imóveis, sobre os quais hajam sido celebrados contratos de arrendamento.

Dito de outro modo, em face da lei atual, não se afigura aceitável sustentar a tributação, em sede de imposto do selo, de trespasses que não integrem uma situação de arrendamento urbano para fins não habitacionais.

Refira-se que a situação concreta em apreciação é, ainda assim, sujeita a imposto do selo, não na base da verba 27 da TGIS, mas sim na base da sua verba 1.1, em conjugação com a respetiva sujeição a IMT.

2. CONCLUSÃO

Em face da lei atual deve entender-se que só incide imposto do selo da verba 27.1 da TGIS sobre a constituição/aumento de capital social de uma sociedade em que se verifica que a entrada de um ou mais sócios é realizada em espécie, mediante a transferência para a nova sociedade do património (ativo e passivo) que constitui o estabelecimento comercial do(s) contribuinte(s), quando o mesmo integre a transmissão do direito de arrendamento urbano para fins não habitacionais.