Doutrina Administrativa
Contabilidade, Tributação do rendimento : IRC

Processo n.º 2013 001629

 

Assunto
Créditos incobráveis não abrangidos pelo art.º 41.º – consequências fiscais do seu desreconhecimento
Tipo: Informações Vinculativas
Data: 28 de Janeiro, 2014
Número: 2013 001629
Diploma: CIRC

Doutrina

Créditos incobráveis não abrangidos pelo art.º 41.º – consequências fiscais do seu desreconhecimento

Por força do presente Despacho e com efeitos a partir da respetiva data, fica prejudicado o entendimento que, ainda na vigência do Plano Oficial de Contabilidade, foi sancionado e divulgado no segundo parágrafo da ficha doutrinária emitida sob o assunto “Créditos Incobráveis" (Processos n.ºs 1759/93 e 3783/02), segundo o qual «Os créditos em mora há mais de 2 anos e provisionados a 100% podem ser anulados, independentemente de terem sido ou não reclamados judicialmente ou de existir ou não processo especial de recuperação de empresas e proteção de credores, ou processo de execução, falência ou insolvência».

A questão ora suscitada versava (i) sobre os efeitos fiscais do desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa, não abrangidos pelo disposto no art.º 41.º, em mora há mais de dois anos e com uma perda por imparidade de 100% devidamente contabilizada e (ii) sobre a documentação de suporte a integrar no dossier fiscal.

As situações em que se pretendia desreconhecer os créditos eram as seguintes:
i) Reclamação judicial de créditos, pendente de decisão há alguns anos e sem previsão da data de trânsito em julgado;
ii) Cessação de atividade para efeitos de IVA, nos termos do art.º 33.º do CIVA;
iii) Cessação oficiosa de atividade, nos termos do n.º 6 do art.º 8.º do CIRC;
iv) Cessação de atividade, nos termos da alínea a) do n.º 5 do art.º 8.º do CIRC;
v) Prescrição dos créditos nos termos do art.º 309.º do Código Civil (de clientes que não tivessem cessado para efeitos de IVA).

Sobre este assunto, foi sancionado o seguinte entendimento:
1. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, o Código do IRC foi alterado e adaptado aos novos normativos contabilísticos [Normas Internacionais de Contabilidade, Sistema de Normalização Contabilística (SNC), entre outros] cuja adoção se tornou obrigatória para os sujeitos passivos de IRC.

2. Atenta a manutenção da estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade e do modelo de dependência parcial da segunda em relação à primeira e não contendo o Código do IRC qualquer dispositivo que trate do desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa1, há que atender ao que diz o SNC sobre o assunto, concretamente a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 27 – Instrumentos Financeiros2.

3. Face à definição de ativo financeiro presente no parágrafo 5 da NCRF 27, o crédito sobre um cliente representa um ativo financeiro.

4. E, de acordo com o parágrafo 30 da mesma norma, um ativo financeiro só deve ser desreconhecido, ou seja, só deve ser removido do balanço, quando se verificar uma das seguintes situações:
(a) Os direitos contratuais aos fluxos de caixa resultantes do ativo financeiro expiram3 (o sublinhado é nosso); ou
(b) A entidade transfere para outra parte todos os riscos significativos e benefícios relacionados com o ativo financeiro; ou
(c) A entidade, apesar de reter alguns riscos significativos e benefícios relacionados com o ativo financeiro, tenha transferido o controlo do ativo para uma outra parte e esta tenha a capacidade prática de vender o ativo na sua totalidade a uma terceira parte não relacionada e a possibilidade de exercício dessa capacidade unilateralmente sem necessidade de impor restrições adicionais à transferência. Se tal for o caso a entidade deve:
(i) Desreconhecer o ativo; e
(ii) Reconhecer separadamente qualquer direito e obrigação criada ou retida na transferência».

5. Em resumo, um ativo financeiro só deve ser desreconhecido quando os direitos contratuais aos recebimentos dele resultantes se realizam, expiram ou são transferidos para outra entidade.

6. Reflexamente, a entidade devedora só pode desreconhecer o seu passivo financeiro (ou parte de um passivo financeiro) «quando este se extinguir, isto é, quando a obrigação estabelecida no contrato seja liquidada, cancelada ou expire» (cf. § 33 da NCRF 27).

7. Por sua vez, o Código Civil considera, para além do cumprimento previsto no art.º 762.º, outras causas de extinção das obrigações, como sejam: dação em cumprimento (art.º 837.º), consignação em depósito (art.º 841.º), compensação (art.º 847.º), novação (art.º 857.º), remissão (art.º 863.º) e confusão (art.º 868.º).

8. Nesta esteira, a entidade credora apenas pode desreconhecer um crédito de que seja titular se, e somente se:
i) For satisfeita a obrigação – seja por satisfação do interesse específico da entidade credora (são os casos de cumprimento, seja este voluntário ou importe a realização coativa da prestação ou a consignação em depósito), seja por satisfação de um interesse sucedâneo daquele que o vínculo obrigacional visava particularmente satisfazer (onde se enquadram situações como a dação em cumprimento, a compensação e a cessão de bens à entidade credora);
ii) For cancelada total ou parcialmente a obrigação (caso em que o desreconhecimento também deve ser total ou parcial) – inserem-se neste quadro as situações de extinção que não implicam a satisfação do interesse específico ou sequer sucedâneo da entidade credora (são situações, por exemplo, de novação, remissão, confusão, anulação, revogação e resolução);
iii) A obrigação expirar – trata-se da repercussão do tempo nas relações jurídicas.

Determina a este propósito o art.º 298.º do Código Civil que o não exercício de um direito por um lapso de tempo superior ao que a lei estabeleça terá como consequência a extinção desse mesmo direito (exceto no caso de direitos indisponíveis) – são as figuras da caducidade, da prescrição, do não-uso.
Em bom rigor, só nestes casos se extinguem verdadeiramente os direitos contratuais aos fluxos de caixa resultantes do ativo financeiro.

9. O simples facto de o crédito estar em mora há mais de dois anos e de ter sido reconhecida uma perda por imparidade de 100% não significa, só por si, que o direito contratual aos fluxos de caixa dele resultantes se extinguiu.

10. Embora em termos fiscais o que esteja causa no desreconhecimento de um crédito seja a aceitação do “gasto" correspondente ao montante em dívida, refira-se que, em termos contabilísticos, tal como acontecia na vigência do POC, o desreconhecimento do crédito sobre um cliente (ainda que indevido, ou seja, fora das situações permitidas pela NCRF 27), cuja perda por imparidade já atinja o seu valor total, não vai influenciar o resultado líquido do período, uma vez que apenas são movimentadas contas de Balanço4.

11. Com efeito, de acordo com as notas de enquadramento (da classe 2 – Contas a receber e a pagar) que constituem uma das componentes do Código de Contas do Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pela Portaria n.º 1011/2009, de 9 de setembro, o desreconhecimento da dívida de um cliente é efetuado creditando a rubrica do cliente (conta 21X) e debitando a rubrica das perdas por imparidade acumuladas (conta 219). O mesmo acontece, aliás, nos casos de incobrabilidade dos créditos cuja perda por imparidade atinja a totalidade do crédito.

12. No entanto, à semelhança do que acontecia anteriormente, para efeitos fiscais e em termos práticos, aquele desreconhecimento traduz-se, por um lado, num “gasto" associado ao crédito que se pretende desreconhecer e, por outro lado, num “rendimento" associado à anulação da perda por imparidade acumulada, a qual tinha sido anteriormente aceite como gasto.

13. Assim, tendo em conta o presente contexto contabilístico, a estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade e a atual preocupação do legislador em não inserir no Código do IRC qualquer norma que induza a um determinado procedimento contabilístico, não faz sentido que, para efeitos fiscais, continue a permitir-se o desreconhecimento de um crédito de cobrança duvidosa – ainda que esteja em mora há mais de dois anos e relativamente ao qual tenha sido reconhecida uma perda por imparidade de 100% – nas situações em que esse desreconhecimento não deva ser efetuado em termos contabilísticos.

Reclamação judicial de créditos ou em tribunal arbitral
14. E uma das situações em que o crédito não deve ser desreconhecido em termos contabilísticos porque não se extingue o direito contratual do credor/da obrigação civil do devedor é quando o crédito tenha sido reclamado judicialmente ou em tribunal arbitral.

15. Com efeito, se a empresa credora recorreu ao tribunal para ser ressarcida do montante em dívida é porque não pretende abdicar do direito contratual aos respetivos fluxos de caixa. Ainda que o processo esteja pendente de decisão há vários anos, o que é certo é que esse direito se mantém até que, eventualmente, a entidade credora desista da reclamação.

16. Não se tendo extinguido (por qualquer uma das causas previstas no Código Civil) o direito contratual aos fluxos de caixa resultantes do ativo financeiro, a entidade credora não deve, por força do disposto no parágrafo 30 da NCRF 27, desreconhecer o ativo.

17. Se, ainda assim, a entidade credora decidir desreconhecer os referidos créditos, o seu montante tem de ser acrescido no Quadro 07 da Declaração Modelo 22, para efeitos da determinação do lucro tributável do período de tributação em que ocorreu o desreconhecimento, uma vez que não se observam os requisitos exigidos no art.º 41.º do CIRC para a consideração do crédito como incobrável.

18. Se, porém, o credor desistir do processo, o “gasto" associado ao desreconhecimento do ativo só é aceite fiscalmente se for integrado no dossier fiscal (1) o documento comprovativo da desistência, (2) o documento subscrito pelo órgão de gestão da empresa que deliberou a desistência e a anulação do crédito, identificando o devedor, o montante em causa e a perda por imparidade, bem como as razões que o levaram à desistência do processo e (3) a demonstração da indispensabilidade da perda resultante da diferença entre o valor do crédito e o valor eventualmente recebido. A aceitação fiscal do desreconhecimento só opera em relação à parte do crédito que haja sido objeto de desistência/perdão para a qual exista uma justificação.

19. Nesta ou noutra situação em que o crédito possa ser desreconhecido do Balanço, a aceitação fiscal do respetivo “gasto" é posta em causa se o sujeito passivo continuar a manter relações comerciais ou financeiras com o devedor.

Cessação para efeitos de IVA e cessação oficiosa de atividade
20. Também não se extingue um crédito pelo simples facto de o devedor ter cessado a atividade para efeitos de IVA, nos termos do art.º 33.º do respetivo Código, ou de ter cessado oficiosamente a atividade nos termos do n.º 6 do CIRC, sendo, por isso, de observar o referido no ponto 17.

21. Com efeito, ainda que o devedor esteja inativo, permanecem inalteráveis as suas obrigações civis para com os credores, não sendo a inatividade uma das causas previstas para a extinção da obrigação.

Cessação de atividade nos termos da alínea a) do n.º 5 do art.º 8.º do CIRC
22. Relativamente às situações em que ocorre a cessação de atividade por uma das causas previstas na alínea a) do n.º 5 do art.º 8.º do CIRC, a aceitação fiscal do “gasto" fiscal obriga a que o credor tenha de provar que, de facto, o direito ao crédito se extinguiu.

23. Este preceito abrange várias situações, com contornos diferentes, o que implica que o credor tenha de integrar no dossier fiscal documentação específica para comprovar a incobrabilidade do crédito. Vejamos alguns exemplos:
i) Se ocorreu o encerramento da liquidação da sociedade devedora e o credor não teve direito ao recebimento do seu crédito na fase de liquidação, terá, concerteza, elementos comprovativos desse facto e serão esses elementos que devem ser integrados no dossier fiscal para sustentar o desreconhecimento do ativo financeiro do balanço.

ii) Se a sociedade devedora se extinguiu em consequência de fusão por incorporação, decerto que a sociedade beneficiária assumiu o passivo da sociedade fundida. Nesta situação, embora a sociedade fundida tenha cessado a atividade para efeitos do Código do IRC, nos termos da alínea a) do n.º 5 do seu art.º 8.º, não se verificou a extinção do direito do credor ao recebimento da dívida, havendo, sim, e apenas, uma alteração da entidade devedora, pelo que não pode haver lugar ao desreconhecimento do ativo.

Processos referidos na alínea a) do n.º 1 do art.º 28.º-B do CIRC, mas ainda em curso
24. Também nos casos em que ainda esteja em curso (i) um processo de execução, (ii)
um processo de insolvência, (iii) um processo especial de revitalização ou (iv) um procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), o ativo financeiro não deve ser desreconhecido do balanço.

25. Se, porventura, o valor do crédito for objeto de redução no âmbito do próprio processo, por decisão dos vários credores, apenas pode ser removida do balanço a quantia “perdoada".

26. Neste caso, deve ser integrado no dossier fiscal o documento que comprove a respetiva decisão.

Prescrição dos créditos nos termos do art.º 309.º do Código Civil

27. No que concerne aos créditos sobre os quais decorreu «o prazo de vinte anos desde a sua constituição» (cf. art.º 309.º do Código Civil), refira-se que o facto de já terem decorridos 20 anos desde a constituição do direito de crédito não tem como consequência necessária que o crédito já se encontre prescrito, em virtude da possibilidade de se ter verificado uma interrupção do prazo de prescrição ou uma suspensão do mesmo.

Nos casos em que, efetivamente, se verifique a prescrição da obrigação civil, a entidade credora pode proceder ao desreconhecimento do crédito, na medida em que expiraram os direitos contratuais aos fluxos de caixa dele resultantes.

28. O documento a integrar no dossier fiscal deve ser o original da fatura que deu origem ao crédito prescrito, através da qual se comprova que foi ultrapassado o prazo de prescrição a que se refere o art.º 309.º do Código Civil.

29. Caso o devedor venha, mais tarde, a cumprir a obrigação natural, o montante recebido deve concorrer para a formação do lucro tributável do período de tributação em que tal facto ocorra.

Conclusão
30. Nestes termos:
a) Nos casos em que se proceda ao desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa – sem que se verifiquem os requisitos exigidos no art.º 41.º do Código do IRC para que o crédito possa ser considerado incobrável para efeitos fiscais –, o “gasto" associado à incobrabilidade do crédito vai constituir uma componente positiva do lucro tributável. Daí que o respetivo montante tenha de ser acrescido no Quadro 07 da Declaração Modelo 22.

b) Este “gasto" só não constitui uma componente positiva do lucro tributável se, cumulativamente:
i) O crédito estiver em mora há mais de dois anos;
ii) Ter já sido reconhecida a perda por imparidade de 100%; e
iii) O desreconhecimento for motivado pela extinção do direito do credor [situação prevista na alínea (a) do § 30 da NCRF 27], o que só acontece quando ocorra qualquer uma das causas de extinção das obrigações, além do cumprimento, previstas no Código Civil.


1 A única referência a situações que implicam o desreconhecimento dos créditos de cobrança duvidosa é feita no art.º 41.º do CIRC, que disciplina a dedutibilidade do gasto associado aos créditos incobráveis.
2 Tomou-se por base a NCRF 27, mas o raciocínio não é diferente se os sujeitos passivos adotarem a norma internacional de contabilidade 39 - Instrumentos financeiros: reconhecimento e mensuração, a norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades (NCRF-PE), a norma contabilística e de relato financeiro para as entidades do setor não lucrativo (NCRF-ESNL) ou a norma contabilística para microentidades (NC-ME).
3 O termo "expiram" usado na NCRF tem de ser entendido de uma forma abrangente, incluindo, para além do cumprimento, qualquer outra causa de extinção dos créditos, as quais se encontram previstas no Código Civil.
4 Ainda que, incorretamente, fossem movimentadas contas da classe 6 - Gastos e da classe 7 - Rendimentos, o gasto ou perda resultante da anulação do crédito era igual ao rendimento gerado pela anulação da perda por imparidade, não influenciando o resultado líquido do período.