Doutrina Administrativa
Tributação do consumo

Processo n.º 6521

 

Assunto
Enquadramento – sujeição a IVA - Operações realizadas por um banco de células privado, quando factura esperma e ovócitos humanos a um cliente - quer seja uma clínica ou pessoa privada
Tipo: Informações Vinculativas
Data: 28 de Março, 2014
Número: 6521
Diploma: CIVA

Doutrina

Enquadramento – sujeição a IVA - Operações realizadas por um banco de células privado, quando factura esperma e ovócitos humanos a um cliente - quer seja uma clínica ou pessoa privada

Tendo por referência o pedido de informação vinculativa solicitada, ao abrigo do art.º 68.º da Lei Geral Tributária (LGT), por «….A…», presta-se a seguinte informação.

I – Factos apresentados:
1.
A Requerente, no âmbito dos seus serviços de apoio a empresas, e perante a possibilidade de uma das mesmas, vir a estabelecer um banco de esperma/ovócitos em Portugal, questiona o seguinte:
i) "A legislação portuguesa impõe a cobrança de IVA no fornecimento de ovócitos e esperma humanos?"
ii) "Caso um banco de células privado fature esperma e ovócitos humanos a um cliente – quer seja uma clínica ou pessoa privada – estarão os ovócitos/esperma sujeitos a IVA?"

II – Análise
2.
Para aferir do significado, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), da operação em causa (a eventual faturação de esperma e ovócitos humanos a uma clínica ou a um particular) torna-se pertinente percorrer a legislação existente no âmbito do recurso a células reprodutivas humanas e à sua associação à utilização de técnicas de procriação medicamente assistida, para conhecer o significado de "fornecimento de ovócitos e esperma humanos" e saber se é possível, face à legislação nacional, transacionar aquele material de origem humana, vendendo-o a clínicas ou a particulares.

3. Em Portugal, a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida obteve regulamentação em 2006, com a Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que criou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida como entidade reguladora da prática desta atividade.

4. A necessidade de intervenção de um organismo tutelar com regras às quais os organismos que se dediquem às atividades em causa terão de se adaptar encontrava-se já presente no Decreto-Lei n.º 319/86, de 25 de setembro, relativo às técnicas de procriação artificial humana, aplicadas em Portugal. Mas o principal impulso à regulamentação da aplicação de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) é dado pelas Diretivas europeias que vão criar as condições para a elaboração da Lei n.º 32/2006.

5. Especificamente quanto à possibilidade de atribuir um valor económico aos tecidos e células de origem humana a utilizar neste tipo de tratamentos, a Diretiva 2004/23/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa ao estabelecimento de normas de qualidade e segurança em relação à dádiva, colheita, análise, processamento, preservação, armazenamento e distribuição de tecidos e células de origem humana, estabelece já, no seu parágrafo 18, que "(…) os programas de aplicação de tecidos e células devem assentar numa filosofia de dádiva voluntária e gratuita, de anonimato, quer do dador, quer do recetor. Os Estados-Membros serão instados a tomar medidas para fomentar o profundo envolvimento dos setores público e não lucrativo na prestação de serviços de aplicação de tecidos e células (…)".

6. Associada a esta está a Diretiva 2006/17/CE da Comissão, de 08 de fevereiro de 2006, que aplica a Diretiva 2004/23 no que respeita a determinados requisitos técnicos relativos à dádiva, colheita e análise de tecidos e células de origem humana.

7. Nela consta o conceito de "células reprodutivas" definidas como "todos os tecidos e células destinadas a serem utilizados para efeitos de reprodução assistida" e de "organismo de colheita" como "um estabelecimento de cuidados de saúde ou uma unidade de um hospital ou qualquer outro organismo que desempenhe a atividade de colheita de tecidos e células de origem humana e que não se encontre acreditado, designado, autorizado ou licenciado como serviço manipulador de serviços".

8. De volta ao ordenamento jurídico interno, e não obstante a diversidade de enquadramentos legais nos vários países quanto a esta matéria, surge, então, em 2006, a Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho) que se aplica às seguintes técnicas de procriação medicamente assistida (PMA):
inseminação artificial; fertilização in vitro; injeção introcitoplamástica de espermatozoides; transferências de embriões, gâmetas ou zigotos; diagnóstico genético pré-implantação; outras técnicas laboratoriais de manipulação genética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias (art. 2.º).

9. O art. 4.º desta lei identifica as situações em que é possível recorrer às técnicas de PMA, definindo-as como um método subsidiário e não alternativo de procriação, perante diagnóstico de infertilidade ou ainda, sendo caso disso, para tratamento de doenças de origem genética, infeciosa ou outras.

10. De acordo com o n.º 1 do art.º 5.º, as técnicas de PMA "só podem ser ministradas em centros públicos ou privados expressamente autorizados para o efeito pelo Ministro da Saúde".

11. Sobre estes centros autorizados veja-se o decreto regulamentar n.º 5/2008, de 11 de fevereiro, que regulamenta o art. 5.º e o n.º 2 do art.º 16.º da Lei da PMA, estabelecendo, nomeadamente, que o centro autorizado a ministrar técnicas de PMA é o "conjunto de meios humanos, materiais e organizativos que permitem realizar a PMA, autorizado nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 32/2006 de 26 de julho".

12. Estes centros podem ser públicos ou privados sendo que, no primeiro caso, são financiados através de contratualização com a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. O Ministério da Saúde pode acordar com os centros privados autorizados o financiamento da utilização de técnicas de PMA (cf. arts. 14.º e 15.º do decreto regulamentar).

13. Relevante para o juízo de sujeição a imposto é o disposto no art. 17.º da Lei da PMA, relativo ao facto de os centros autorizados a ministrar técnicas de PMA não poderem, no cálculo da retribuição exigível, atribuir qualquer valor ao material doado nem aos embriões doados".

14. Mais, o art.º 18.º da referida lei interdita expressamente a compra e venda de óvulos, sémen, embriões ou qualquer material biológico decorrente da aplicação de técnicas de PMA.

15. No SNS a tabela de preços relativa aos atos praticados para a medicina de reprodução inclui o conjunto de atos médicos associados aos vários tipos de tratamento. Os preços compreendem, portanto, todos os exames e tratamentos necessários à realização da procriação medicamente assistida (Portaria 154/2009, de 9 de fevereiro, criada no âmbito do Projeto de Incentivos à Procriação Medicamente Assistida). Esta portaria oferece alguma luz sobre que serviços são faturados aos clientes destes centros, afigurando-se que não há lugar à faturação das células ou tecidos reprodutivos de origem humana, mas sim aos serviços necessários à aplicação das técnicas de PMA.

16. Em 2009 houve a necessidade de transpor para a ordem jurídica portuguesa as orientações da Diretiva n.º 2004/23/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de março, 2006/17/CE da Comissão e 2006/86/CE, da Comissão de 24 de outubro, o que levou à elaboração da Lei n.º 12/2009, de 26 de março, que estabelece o regime jurídico da qualidade e segurança da dádiva, colheita, análise, processamento, preservação, armazenamento, distribuição e aplicação de tecidos e células de origem humana.

17. Veja-se, então, relativamente à colheita de células reprodutivas humanas, no âmbito da aplicação de técnicas de PMA, que o n.º 2 do art.º 5.º limita a realização desta atividade aos centros autorizados ao abrigo da Lei da PMA. Excecionalmente, pode realizar-se em unidades hospitalares não autorizadas enquanto unidades de colheita, desde que os tecidos e células sejam colhidos por profissionais de unidades de colheita autorizados (cf. n.ºs 2 e 3 do art.º 5.º).

18. Relativamente à seleção de dadores, esta lei vem reforçar o princípio de que a dádiva de células e tecidos é voluntária, solidária e altruísta, não podendo haver lugar, em nenhuma circunstância, à compensação económica ou remuneração, quer para o dador, quer para qualquer indivíduo ou entidade (cf. n.º 1 do art.º 22.º).

19. De acordo com o n.º 3 do mesmo artigo, é possível, porém, que os dadores vivos recebam uma compensação estritamente limitada ao reembolso das despesas efetuadas e dos prejuízos imediatamente resultantes da dádiva, nos termos do art.º 9.º do anexo à Lei n.º 22/2007, de 29 de junho.

20. Sublinhe-se que também aos recetores não pode ser exigido qualquer pagamento pelos tecidos ou células recebidos (cf. n.º 5 do art.º 22.º).

21. Através de despacho n.º 5015/2011, de 9 de março de 2011, do Ministério da Saúde, fixaram-se os limites máximos para os montantes compensatórios que podem ser atribuídos àqueles dadores, atendendo ao espírito de dávida voluntária, altruísta e solidária.

22. Neste diploma é também referido o conceito de "banco de tecidos e células", que consiste num "banco de tecidos, ou unidade de um hospital ou outro organismo onde se realizem atividades relacionadas com a transformação, a preservação, o armazenamento ou a distribuição de tecidos e células de origem humana, sem prejuízo de poder também estar encarregado da colheita ou da análise de tecidos e células".

23. Acrescente-se, para finalizar que, por despacho de 9 de fevereiro de 2011, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde foi deliberada a criação de um Banco Público de Gâmetas xxxxxxx, tendo em conta a necessidade de recorrer a gâmetas provenientes de dadores externos aos recetores, dádiva essa autorizada por lei, nas condições tecnicamente definidas.

III – Apreciação face ao IVA
24.
Do que foi dito, afigura-se que quando um banco de tecidos e células ou uma unidade de colheita fornece o tipo de células reprodutivas em causa às entidades legalmente autorizadas a aplicar técnicas de PMA (excluímos o fornecimento a qualquer tipo de clínicas ou a particulares visto que a legislação não parece admiti-lo), não realiza uma operação com relevância para efeitos de IVA, dado que ao material doado não pode ser atribuído qualquer valor.

25. Como, também, a lei não prevê a possibilidade de um particular vender a um banco de células e tecidos o seu esperma ou ovócitos. Pelo contrário, só admite a dádiva voluntária e não remunerada. O sistema de compensações criado e acima referido deve limitar-se à compensação das despesas efetuadas ou dos prejuízos imediatamente resultantes da dádiva (incómodos, custos de transporte, alojamento, aconselhamento ou tratamentos).

26. Sobre este tipo de células humanas não é possível, como se viu, a realização de contratos de compra e venda pelo que o seu fornecimento não pode significar este tipo de transação.

27. Mas o recurso a técnicas de PMA depende de uma série de serviços que podem, de acordo com o conceito residual de prestação de serviços constante do art.º 4.º do CIVA, ser faturados às entidades às quais as células reprodutivas são fornecidas (por exemplo, serviços de transformação, preservação, armazenamento e distribuição).

28. Diferente da questão colocada pela Requerente, é, ainda, a faturação de serviços de assistência médica, pelos centros autorizados a aplicar técnicas de PMA, por exemplo, que, sujeitos a IVA, podem dele estar isentos ao abrigo da alínea 2 do art.º 9.º do Código do IVA ("prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares"), que tem por base a alínea b) do n.º 1 do art. 132.º da Diretiva IVA, relativa à atribuição aos Estados-Membros do dever de isentar a "hospitalização e a assitência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos".

29. Caem sob a alçada daquela disposição, bem como da alínea c) do n.º 1 do art.º 132.º da Diretiva, as prestações médicas que consistam em prestar assistência a pessoas, diagnosticando e tratando uma doença ou qualquer outra anomalia de saúde, como será o problema da infertilidade.

30. Note-se que as prestações médicas que consistam em colheitas de sangue ou de outras amostras corporais e a realização de análises clínicas podem também beneficiar da referida isenção.

31. De facto, entende-se que os serviços conexos às prestações de serviços médicos e sanitários abarcam "as operações, realizadas em momento anterior ou posterior aos serviços, com os quais apresentam uma ligação ou relação, no sentido de concorrerem para a sua realização, podendo ser vistas como acessórias ou instrumentais em relação à prestação principal" (cf. Filipe Duarte Neves, Código do IVA – Comentado e Anotado, Vida Económico, 2012, p. 178).

32. Pelas semelhanças ao caso em análise, analise-se a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) relativamente a isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 132.º da Diretiva e a realização de colheitas para utilização futura terapêutica.

33. O TJUE, no acórdão C-262/08, Copygene, Colect. P. I-5053 (e, em sentido semelhante no acórdão C-86/09, Future Health Technologies, Colect. P. I-5215), entendeu que aquela isenção não abrange atividades como a colheita, transporte, análise de sangue do cordão umbilical (no caso), e armazenamento de células estaminais contidas nesse sangue, quando a assistência médica prestada em meio hospitalar seja apenas futura e eventual, ou seja, ela não existe, não está em curso ou não está sequer planificada quando aquelas operações de recolha, armazenamento, análise de células estaminais são efetuadas (cf. Rui Laires, Isenções do IVA nas Atividades Culturais, Educativas, Recreativas, Desportivas e de Assistência Médica ou Social, Cadernos IDEFF, n.º 14, Almedina, 2012, p. 137).

34. Agora, se a utilização terapêutica futura já estiver decidida, não sendo apenas meramente hipotética, já pode ser possível aplicar a isenção àquele tipo de serviços (veja-se, nesse sentido, o acórdão C-156/09,Verigen Transplantation Service International, Colect. P. I-?).

35. No entanto, no pedido de informação vinculativa não são oferecidos elementos que permitam analisar em concreto a possibilidade de aplicação daquela isenção aos serviços que se pretende prestar.

III – Conclusão
36.
Posto isto, entendemos que o fornecimento de esperma e ovócitos, nas condições legalmente definidas no direito interno português, configura uma operação fora do campo do imposto.

37. As prestações de serviços necessárias à aplicação das técnicas de PMA (análises, colheita, preservação, distribuição, etc.) podem ser sujeitas mas isentas do imposto mas tal análise depende de uma concretização dos eventuais serviços prestados.