Sumário
Aprova o novo Código dos Valores Mobiliários.
1 - O Código do Mercado dos Valores Mobiliários, elaborado há quase 10 anos e agora revogado, constituiu um marco fundamental na regulação e no desenvolvimento dos mercados de valores mobiliários em Portugal. Continuando o ciclo aberto com os Códigos Comerciais de 1833 e de 1888, consumou a plena integração desses mercados num sistema financeiro moderno.
Baseando-se na ideia de «autonomia dos mercados de valores mobiliários», a reforma empreendida pelo Código anterior seleccionou como «princípios estruturadores» a «desestatização», a «desgovernamentalização» e a «liberalização». Desta orientação resultou a consagração de institutos inovadores, dos quais se destacam: a criação de uma autoridade de supervisão independente, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários; a modernização do regime dos valores mobiliários, com relevo para as regras sobre valores mobiliários escriturais; a criação de uma central de valores mobiliários; a modificação estrutural das bolsas, que deixaram de ser institutos públicos, passando a ser geridas por associações civis sem fim lucrativo; a liberalização da emissão de valores mobiliários, deixando as ofertas públicas de estar sujeitas a autorização administrativa; o tratamento da informação a disponibilizar nos mercados de acordo com o princípio da transparência. Em consequência, a ciência jurídica, confrontada com estas mudanças, foi impelida a novas construções, nomeadamente no que respeita ao conceito e ao regime dos valores mobiliários e ao enquadramento das ofertas públicas.
A pretensão de auto-suficiência do Código, que tudo quis prever e regular com pormenor, foi, numa primeira fase, essencial para o seu êxito. Porém, esse modelo depressa se revelou portador de alguma falta de flexibilidade e gerador de dificuldades de adaptação à evolução das situações. Na verdade, tal auto-suficiência não era viável e fracassava perante a necessidade de resolução de casos mais complexos em que a solução tinha de ser confrontada com princípios gerais de direito e com preceitos inseridos em outra sede legislativa. Por isso, há algum tempo se vinha a colocar o problema de uma revisão que, conservando as vantagens trazidas pelo Código, permitisse novos passos na modernização do sistema de valores mobiliários. Embora a lei, só por si, não tenha a virtualidade de transformar os mercados, pode ser uma oportunidade para estimular os agentes económicos.
Por despacho de 27 de Maio de 1997, o Ministro das Finanças definiu as linhas gerais de orientação a seguir na elaboração de um novo Código e criou um grupo de trabalho encarregado de apresentar o respectivo projecto.
Sem afectar a continuidade dos mercados e evitando rupturas sistémicas, o Código agora aprovado pretende concretizar os objectivos fixados no referido despacho em torno de cinco ideias principais: codificar, simplificar, flexibilizar, modernizar e internacionalizar.
2 - Procurou-se manter em código o corpo central da legislação sobre valores mobiliários, com a finalidade de facilitar a tarefa do aplicador e a inserção dessas normas no sistema jurídico, continuando assim uma tradição que tem dado bons resultados. Apesar da rigidez que um código sempre acarreta, admitiu-se serem superiores os ganhos de segurança, de credibilidade, de simplificação e de integração sistemática que o mesmo propicia. Embora a nomenclatura e os conceitos utilizados não se possam considerar ainda completamente assentes, o novo Código progride nessa estabilização, numa área em que abundam os vocábulos directamente importados de sistemas estrangeiros sem tradução para português ou com tradução meramente literal. Por isso, não foi tarefa menor escrever o Código sem recurso a terminologia estrangeira, mesmo nos casos em que possa discutir-se a bondade dos termos encontrados.
A intenção codificadora revela-se também no cuidado de integração harmoniosa do diploma no conjunto do sistema jurídico, de acordo com uma relação de especialidade. Evitou-se regular o que estava regulado, tomando como pressupostos os regimes gerais já consagrados no direito privado (civil e societário), no direito administrativo, no direito penal e de mera ordenação social. Preservando a teoria e a técnica acumuladas nessas grandes áreas do direito, procurou-se apoiar o trabalho do intérprete-aplicador e, sem deixar de ter em conta as especificidades do direito dos valores mobiliários, atenuar o aparente exotismo de algumas figuras.
Inerente à preocupação sistematizadora esteve ainda o objectivo de, na tradição enraizada no direito civil, criar ou desenvolver regimes gerais adequados aos principais institutos, designadamente aqueles que respeitam aos valores mobiliários, independentemente da sua negociação em bolsa ou fora de bolsa, às ofertas públicas, aos mercados de valores mobiliários, seja qual for o seu grau de organização e de imperatividade das normas aplicáveis, e às várias actividades de intermediação financeira.
É óbvio que tal objectivo tem limites estruturais e pragmáticos. Por isso, se apartaram do Código os estatutos de diversas instituições, incluídos no Código anterior, como é o caso da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários, das entidades gestoras de bolsas e de outros mercados e das entidades gestoras de sistemas de liquidação e de sistemas centralizados, que passam agora a constar de diplomas autónomos.
3 - A simplificação do texto do Código foi outro desiderato que presidiu à sua elaboração. Em comparação com o Código revogado, o número de artigos é ainda superior a metade, mas a dimensão total ficou reduzida a menos de um terço. A simplificação incidiu também na técnica de redacção adoptada, reduzindo as remissões ao estritamente necessário, utilizando uma linguagem tão simples e tão clara quanto a complexidade das matérias o permitiu e eliminando as duplas remissões, as constantes referências de salvaguarda, bem como comentários que excedem o conteúdo preceptivo.
Como a simplificação não deve sacrificar o rigor, houve a preocupação de dar um sentido unívoco aos termos usados e, sempre que possível, coincidente com aquele que lhe é atribuído no sistema jurídico em geral.
4 - O dinamismo do sistema financeiro a nível internacional exigia a adopção de regras e de procedimentos flexíveis, capazes de transmitir ao texto legislativo alguma durabilidade. Assim, privilegiou-se a consagração de princípios e de regras gerais e recorreu-se com frequência a conceitos indeterminados e a cláusulas gerais, cuja densificação se espera que seja continuada pela jurisprudência, pela prática das autoridades administrativas e pela doutrina.
Na medida do razoável, deixou-se a concretização da lei para regras de outra natureza, de acordo com um critério de desgraduação normativa que concede amplo espaço, por um lado, aos regulamentos administrativos, em particular da CMVM, e, por outro, a uma moderada auto-regulação por outras entidades que actuam no mercado.
Quanto ao primeiro aspecto, esta orientação foi acompanhada por uma outra, paralela, no sentido de limitar a discricionariedade das autoridades administrativas, nomeadamente através da fixação de critérios de regulação e de decisão. Quanto ao segundo aspecto, pretendeu-se deixar claro que, neste domínio, o desenvolvimento e a aplicação da maioria dos institutos consagrados dependem do exercício dinâmico da autonomia privada.
Na delimitação entre as matérias que deveriam constar da lei e as que deveriam ser deixadas para regulamento ou para a auto-regulação, foram seguidos alguns critérios que podem ser assim enunciados: não regular na lei o que poderia com vantagem ser incluído em regulamento, salvo precisas excepções ditadas sobretudo por razões pragmáticas; dar preferência às fontes regulamentares, sempre que as normas previssem comportamentos e condições operacionais de evolução rápida ou muito dependentes da criatividade dos agentes ou que pudessem restringir vantagens comparativas na concorrência entre mercados; respeitar o enquadramento constitucional da reserva de lei e de competência legislativa e o âmbito dos regulamentos.
5 - Com o intuito de modernizar o sistema normativo, tomaram-se em consideração os mais recentes desenvolvimentos da prática internacional e das legislações estrangeiras, evitando todavia um duplo risco: por um lado, copiar acriticamente, sem a devida integração no sistema português; por outro, ignorar a tendência para a uniformização dos direitos, olvidando que a consagração de inovações desgarradas ou contrárias àquela tendência pode isolar ou limitar a competitividade dos mercados a funcionar em Portugal.
Atendeu-se naturalmente também à modernização dos meios de comunicação. Evitando moldar as previsões aos mais recentes progressos tecnológicos, que podem revelar-se efémeros, preferiu-se adoptar fórmulas cuja generalidade permita abarcar a diversidade formal e a neutralidade dos suportes informativos. São disso exemplos as regras sobre forma escrita (artigo 4.º), assim como a propositada omissão de referências a meios de comunicação mais recentes (v. g., a Internet) e a determinados sistemas de negociação (cf., v. g., artigos 220.º e 322.º).
6 - Para dar resposta à internacionalização e à integração dos mercados de valores mobiliários, ampliou-se o tratamento conferido à delimitação do âmbito de aplicação do Código e à determinação do direito aplicável em situações plurilocalizadas. Procurou-se, neste domínio, encontrar um ponto de equilíbrio adequado que escapasse seja ao alheamento do sistema jurídico quanto à determinação do direito aplicável seja à maximização de aplicação da lei nacional.
Curou-se de precisar com maior nitidez que as normas nacionais de direito mobiliário apenas têm vocação para se aplicar em situações jurídicas internacionais se e na medida em que apresentem conexão relevante com o território nacional - solução que é consagrada genericamente no artigo 3.º e merece confirmação em outros preceitos do Código. Destaca-se, neste contexto, o critério seleccionado para a aplicabilidade do regime das ofertas públicas (cf. n.º 1 do artigo 108.º) que, a um tempo, concretiza o critério geral da conexão relevante e se mostra ajustado à utilização das modernas técnicas de comunicação à distância.
Por outro lado, dada a inadequação ou inaplicabilidade das soluções internacional-privatísticas constantes do Código Civil, da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais e da Convenção da Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Intermediação, foram estabelecidas normas de conflitos específicas para a determinação do direito aplicável aos valores mobiliários (artigos 39.º a 42.º).
Por último, introduzem-se as normas necessárias para que seja possível, e até fomentada, a negociação em mercados situados em Portugal de valores mobiliários regulados por lei estrangeira (cf. n.º 3 do artigo 68.º, n.º 2 do artigo 91.º e artigos 117.º, 146.º e 231.º).
7 - O âmbito de aplicação material do Código, tal como acontecia aliás no Código anterior, excede o regime dos mercados de valores mobiliários, o que bem se vê, em especial, nos títulos II, V e VI, sobre valores mobiliários, sistemas de liquidação e intermediação. Por isso se achou adequado adoptar a designação mais genérica de Código dos Valores Mobiliários.
Intensifica-se, portanto, a relação entre o âmbito de aplicação do Código e o conceito de valor mobiliário. Em relação a este, optou-se por não dar qualquer definição directa. No n.º 1 do artigo 1.º procede-se a uma tipologia dos valores mobiliários já anteriormente reconhecidos ou cuja comercialização não envolve especiais riscos. O n.º 2 do mesmo preceito permite ampliar este universo através de enquadramento regulamentar pela CMVM ou pelo Banco de Portugal, conforme os casos. Esse pareceu ser o caminho adequado para combinar o dinamismo e a criatividade dos agentes nos mercados com a necessária segurança que nestes deve existir.
O Código aplica-se também aos instrumentos financeiros, em particular aos instrumentos financeiros derivados. Daí que a expressão «valor mobiliário» utilizada ao longo do Código signifique também «instrumento financeiro», salvo nos títulos que são expressamente excluídos pelo n.º 4 do artigo 2.º.
8 - No artigo 13.º consagra-se o conceito de sociedade aberta ao investimento do público (abreviadamente sociedade aberta), pondo assim cobro à assistematicidade patente nas divergências de nomen iuris e de disciplina entre o Código das Sociedades Comerciais e o Código do Mercado dos Valores Mobiliários.
Além desta unificação de conceito e de disciplina, o novo Código aprofundou a autonomia do regime das sociedades abertas, reforçando a transparência da sua direcção e do seu controlo, nomeadamente no que respeita à divulgação das participações qualificadas e dos acordos parassociais, e ampliando o regime das deliberações sociais, na linha das modernas tendências relativamente ao governo das sociedades abertas.
Em ordem a limitar as situações de aquisição involuntária da qualidade de sociedade aberta, admite-se a possibilidade de as sociedades fechadas ao investimento do público estabelecerem uma cláusula estatutária fazendo depender a realização de oferta pública de venda ou de troca de autorização da assembleia geral (n.º 2 do artigo 13.º).
9 - O Código dedica o capítulo V do título I aos investidores, o que acontece pela primeira vez num diploma deste género.
Estabelece-se a distinção entre investidores institucionais e investidores não institucionais, equiparando aos primeiros outras entidades que não beneficiam da protecção conferida a estes últimos (artigo 30.º).
Confere-se a iniciativa de acção popular aos investidores não institucionais e às associações que como tal são reconhecidas para a sua protecção (artigo 31.º). Assim se facilita a intervenção organizada dos investidores em defesa dos seus interesses, em especial no que respeita à responsabilidade civil.
Estabelecem-se também mecanismos de mediação de conflitos entre os investidores e as várias entidades intervenientes nos mercados de valores mobiliários (artigos 33.º e 34.º) e altera-se a disciplina dos fundos de garantia dos investidores, alargando a sua obrigatoriedade (artigo 35.º).
10 - O título II do Código contém um regime geral dos valores mobiliários, dando continuidade ao caminho iniciado pelo anterior Código. Vai-se todavia mais longe, procurando extrair o máximo de efeitos da equivalência substancial entre as posições jurídicas, independentemente da forma escritural ou titulada de representação. Este princípio de neutralidade reflecte-se, em especial, no regime unitário do registo de emissão (artigos 43.º e 44.º), no critério de distinção entre valores mobiliários nominativos e ao portador (n.º 1 do artigo 52.º), no regime da penhora de valores mobiliários escriturais (artigo 82.º) e na utilização como título executivo de certificados passados pelas entidades registadoras de valores mobiliários escriturais (artigo 84.º).
Ao contrário do que alguns poderiam esperar, talvez por incompreensão deste princípio, não se condena a forma de representação titulada, permitindo o convívio das duas formas de representação e deixando, com os limites das necessidades dos mercados, que os interessados escolham a forma de representação mais conveniente. Tal não impede o alargamento da possibilidade de recurso à forma escritural de representação, que, a partir de agora, poderá consistir igualmente em registo efectuado num só intermediário financeiro ou no emitente.
Introduz-se um processo expedito para a reconstituição consensual dos registos e dos títulos depositados, em caso de destruição e perda, sem necessidade de recurso à reforma judicial (artigo 51.º).
No regime dos valores escriturais faz-se uma aproximação ao modelo das contas bancárias, mitigado com a experiência de registo das acções nominativas. Resulta por isso atenuada a influência da técnica do registo predial que tinha estado na génese do regime do anterior Código.
Em relação à presunção de titularidade resultante das contas de registo individualizado evitou-se consagrar em lei uma solução demasiado rígida. Assim se compreende o disposto no n.º 3 do artigo 74.º, que permite, em especial quando estejam em causa relações de natureza fiduciária, ilidir aquela presunção perante a autoridade de supervisão ou por iniciativa desta.
Desaparece a referência à Central de Valores Mobiliários enquanto sistema único de centralização de valores mobiliários, consagrando-se na lei a realidade existente que já admitia outros sistemas centralizados nacionais, designadamente o sistema gerido pelo Banco de Portugal, e que exigia na prática a sua coordenação com sistemas sediados no estrangeiro. O sistema de contas dos sistemas centralizados, definido com mais precisão, é concebido com aptidão para se adaptar ao exercício de novas funções.
Eliminam-se os títulos ao portador registados, porquanto as razões fiscais que motivaram a sua criação podem ser acauteladas por outras formas. Na verdade, os valores mobiliários escriturais e os valores mobiliários titulados depositados em sistema centralizado são obrigatoriamente registados. Em relação aos restantes a questão fiscal fica resolvida pelos artigos 117.º e 129.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, alterados pelo artigo 12.º do presente diploma.
Para segurança na circulação dos valores mobiliários deixa de se exigir o bloqueio prévio, que a prática não acolheu. Efeito equivalente se obtém pela combinação de faculdades de controlo atribuídas aos intermediários financeiros [alínea b) do n.º 2 do artigo 78.º e n.º 2 do artigo 326.º] com novos requisitos na liquidação das operações (artigo 280.º).
11 - O título III reordena o material normativo preexistente sobre ofertas públicas relativas a valores mobiliários.
O Código de 1991 tomava o regime das ofertas públicas de subscrição como referência para as restantes, fazendo uso de frequentes remissões. Ao invés, o presente Código autonomiza uma parte geral das ofertas públicas, contendo as disposições comuns de natureza processual e substantiva. A título de exemplo, foi promovida à parte geral a figura do prospecto e da inerente responsabilidade civil por vícios de informação e de previsão, abrangendo, apesar das suas especificidades, as ofertas públicas de aquisição.
No mais, a disciplina das ofertas públicas foi objecto de actualização, regulando em separado as matérias relativas ao prospecto de oferta internacional (artigos 145.º e seguintes) e à recolha das intenções de investimento (artigos 184.º e seguintes) e introduzindo institutos recentes no tráfego mobiliário, como são a estabilização de preços no âmbito de oferta (artigo 160.º) e a opção de distribuição de lote suplementar (artigo 158.º).
12 - O regime das ofertas públicas de aquisição obrigatórias assenta na ideia geral de que os benefícios da aquisição de domínio sobre uma sociedade aberta devem ser compartilhados pelos accionistas minoritários.
A exemplo da maioria dos ordenamentos jurídicos próximos, as fasquias constitutivas do dever de lançamento foram fixadas em um terço e em metade dos direitos de voto correspondentes ao capital social. Para resolução da perplexidade que colocava o regime anterior quanto ao relevo da aquisição de valores mobiliários que confiram o direito à subscrição ou à aquisição de acções, passaram a ser considerados apenas os direitos de voto efectivos no cômputo da posição de domínio do potencial oferente.
O critério do domínio efectivo justifica ainda a possibilidade de eliminação do limite mais baixo de obrigatoriedade, reconhecida nas sociedades abertas sem valores admitidos à negociação em mercado regulamentado (n.º 4 do artigo 187.º), a consagração da figura da suspensão do dever de lançamento de oferta, quando o domínio seja conjuntural (artigo 190.º), e a supressão das ofertas obrigatórias parciais e das ofertas prévias, umas e outras mais falíveis na protecção dos accionistas minoritários.
13 - Em relação à aquisição do domínio total nas sociedades abertas adaptou-se o disposto no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais. Acentuou-se todavia a protecção das expectativas geradas pela abertura da sociedade ao investimento do público, presente também nos requisitos para a perda da qualidade de sociedade aberta (artigo 27.º).
O direito de aquisição potestativa (artigo 194.º), a que corresponde um direito simétrico de alienação potestativa dos accionistas minoritários (artigo 196.º), tem como ónus o lançamento prévio de oferta pública de aquisição. A mesma ideia justifica a extensão a este instituto do princípio de igualdade de tratamento e a intervenção da autoridade de supervisão do mercado, quer quanto ao conteúdo da informação divulgada, quer quanto ao montante da contrapartida, que passa a reger-se pelas regras aplicáveis às ofertas públicas de aquisição obrigatórias.
14 - No título IV introduzem-se profundas alterações no regime dos mercados, tendentes quer à sua generalização quer à sua flexibilidade. A estrutura dos mercados passa a assentar na distinção entre mercados regulamentados, que têm como paradigma os mercados de bolsa, e outros mercados organizados (artigo 199.º), que podem assumir as mais diversas características e cujas regras são fixadas pela respectiva entidade gestora, de forma livre, ainda que limitada por critérios legais de transparência das suas regras e operações. O que no Código revogado era designado por «mercado de balcão» fica assim reduzido à sua real condição de actividade de intermediação.
Os mercados não regulamentados não estão sujeitos a qualquer autorização, dependendo o seu funcionamento apenas do controlo de legalidade por parte da autoridade de supervisão. Admite-se inclusivamente a criação de mercados com intervenção directa dos investidores institucionais (n.º 3 do artigo 203.º) ou de mercados em que a função tradicional dos membros pode ser exercida pela entidade gestora (n.º 6 do mesmo artigo).
Clarifica-se o regime das taxas a cobrar por operações realizadas fora de mercado regulamentado, passando agora a incidir apenas sobre as operações que tenham por objecto valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e que tenham sido realizadas fora desse mercado (artigo 211.º). A habilitação regulamentar atribuída ao Ministro das Finanças está balizada por dois limites: a taxa deve respeitar um princípio de neutralidade entre a negociação em mercado regulamentado e fora de mercado regulamentado; o seu pagamento deve ter correspondência em serviços de supervisão prestados pela CMVM.
Também em relação aos mercados de bolsa o panorama é alterado. Passa a haver um único mercado obrigatório, o mercado de cotações oficiais, deixando-se à entidade gestora liberdade para a criação de outros, respeitadas as exigências comuns aos mercados regulamentados.
Mantém-se o binómio operações a contado e operações a prazo. Nestas tipificam-se apenas as que têm vindo a ser realizadas entre nós ou que estão mais difundidas. Fica todavia aberta a possibilidade de outras se realizarem desde que aprovadas pela CMVM.
15 - O título V, sobre sistemas de liquidação, contém relevantes inovações que resultam, por um lado, da sua generalização para além do âmbito das operações de bolsa e, por outro, das regras decorrentes da Directiva n.º 98/26/CE, do Parlamento e do Conselho, de 19 de Maio, entre as quais sobressai o carácter definitivo da liquidação em caso de insolvência de um participante no sistema.
Novidade é também a consagração legal do regime das operações de liquidação (artigos 274.º e seguintes), com particular incidência em normas que assegurem a eficácia e a segurança das operações de bolsa.
16 - No título VI, o elenco das actividades de intermediação segue o modelo da directiva dos serviços de investimento, nele se incluindo tanto os serviços de investimento como os serviços auxiliares (artigo 289.º). A uns ou a outros, conforme os casos, são equiparadas as actividades de publicidade, de promoção e de prospecção de qualquer actividade de intermediação financeira (artigo 292.º). Antecipa-se, assim, a protecção dos investidores e dos mercados para momento anterior ao da conclusão de contratos de intermediação.
Pela primeira vez é regulada a consultoria autónoma para investimento, quando prestada em base individual (artigo 294.º). O exercício dessa actividade, que anteriormente só era permitida aos intermediários financeiros, fica agora dependente de autorização da CMVM. Coloca-se um particular acento na necessidade de os consultores preencherem determinados requisitos de idoneidade e aptidão profissional. Embora os consultores autónomos não sejam considerados como intermediários financeiros, o exercício da sua actividade rege-se pelas mesmas regras.
17 - O regime geral aplicável ao exercício de actividades de intermediação ocupa toda a secção III do capítulo I do título VI, onde se reorganizam as normas que o anterior Código qualificava como normas de conduta, inspiradas em directivas comunitárias, em particular na directiva dos serviços de investimento, e na Recomendação n.º 77/534, de 27 de Julho, relativa a um código de conduta europeu a observar nas transacções sobre valores mobiliários. O regime é desenvolvido a partir das recomendações de organizações internacionais, em particular da OICV (Organização Internacional das Comissões de Valores) e do FESCO (Forum of European Securities Commissions). As inovações mais salientes dizem respeito às regras sobre defesa do mercado (artigo 311.º) e à proibição de intermediação excessiva (artigo 310.º). As normas sobre conflito de interesses (artigo 309.º) são completadas com aquelas que são específicas da negociação dos intermediários financeiros por conta própria (artigo 347.º).
Introduz-se uma alteração relevante no que respeita aos códigos deontológicos. O anterior Código consagrava a obrigatoriedade de elaborar códigos de conduta e sujeitava-os à aprovação da CMVM. A experiência mostrou que não era uma boa solução, porque os códigos aprovados se limitavam a repetir a lei e a aprovação pela CMVM lhes retirava o carácter genuíno de auto-regulação. Por isso se considerou que a intervenção da CMVM se deve limitar ao controlo de legalidade dos códigos que venham a ser aprovados, através do seu registo (artigo 315.º).
18 - A regulação sistemática dos contratos de intermediação, importante grupo dos contratos de mandato e de outros contratos de prestação de serviços, é totalmente nova, embora se aproveitem algumas soluções já consagradas de forma dispersa em legislação anterior. As regras gerais destinam-se a assegurar, sob alguns aspectos, a protecção dos investidores, com destaque para a protecção dos investidores não institucionais na celebração de contratos fora do estabelecimento do intermediário financeiro. Consagra-se a esse propósito um regime moderado e realista, aplicável apenas à recepção de ordens e à gestão de carteiras e, ainda assim, restrito aos casos em que não exista anterior relação de clientela e em que a celebração do contrato não tenha sido solicitada pelo próprio investidor.
Os tipos contratuais regulados nos artigos 325.º a 345.º, com excepção do contrato de consultoria para investimento, já eram conhecidos da legislação anterior, mas estavam carecidos de melhor caracterização e de introdução de algumas normas imperativas de protecção. Fora destes limites, mantém-se todo o espaço de autonomia privada, enquadrada pelo regime geral dos contratos.
A negociação do intermediário financeiro por conta própria é tratada em capítulo autónomo, como autónoma é a sua inclusão no elenco dos serviços de investimento (n.º 2 do artigo 290.º). Também neste domínio os contratos regulados não esgotam o âmbito dos contratos que o intermediário financeiro pode celebrar por conta própria. A selecção recaiu naqueles que podem envolver maior risco para o mercado: os contratos de fomento de mercado (artigo 348.º), onde se incluem todas as actividades chamadas de market maker, os contratos que visam a realização de operações de estabilização de preços (artigo 349.º) e os empréstimos de valores mobiliários (artigo 350.º). Estabelecem-se regras mínimas deixando outros aspectos importantes para regulamento da CMVM.
19 - Do título VII, relativo à supervisão e regulação, não constam as matérias de organização interna da autoridade supervisora, agora incluídas no Estatuto da CMVM, aprovado por diploma autónomo.
Na linha do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras, é adoptado um conceito amplo de supervisão que abarca todas as competências de intervenção da CMVM no mercado.
Quanto às entidades sujeitas à supervisão da CMVM, mantém-se um elenco próximo do que consta do Código anterior. A circunstância de não se incluírem nesse elenco os investidores não institucionais apenas significa a sua subtracção aos poderes de supervisão contínua, sem prejuízo, porém, da sujeição a sanções pela violação de normas legais ou regulamentares e aos correspondentes procedimentos.
Dentro da supervisão autonomizaram-se a supervisão contínua (artigo 362.º) e a supervisão prudencial (artigo 363.º). Salientam-se ainda as disposições comuns aos diversos registos efectuados pela CMVM (artigo 365.º), designadamente a consagração de princípios gerais de legalidade e de publicidade.
20 - Nova é também a inclusão no âmbito da regulação das recomendações e pareceres genéricos da CMVM (artigo 370.º), que, sendo actos sem conteúdo normativo próprio, podem contribuir para esclarecer e orientar a prática dos operadores.
A regulação dos mercados não constitui exclusivo das entidades públicas. Para pôr em evidência esta ideia, dedica-se um preceito à auto-regulação (artigo 372.º), o que também é uma novidade. Os avanços nessa matéria são reais mas moderados, tomando-se em conta que a nossa tradição não é muito favorável à auto-regulação pelos operadores do mercado. Por um lado, as mais recentes tendências internacionais, mesmo nos países anglo-saxónicos, onde a auto-regulação tem raízes mais profundas, mostram que a auto-regulação tem vindo a perder algum terreno. Por outro lado, não se considera adequado transpor para Portugal, de modo acrítico, a experiência de outros países. Em qualquer caso, teve-se em conta que, neste domínio, toda a intervenção legislativa e regulamentar do Estado, de carácter imperativo, se traduz numa restrição dos princípios da autonomia privada e da livre iniciativa em que assenta o sistema jurídico-económico português. Daí que se tivessem consagrado diversos níveis de autonomia e de participação dos intervenientes nos mercados.
21 - Os crimes de abuso de informação e de manipulação de mercado, já previstos no anterior Código, são agrupados numa categoria de crimes contra o mercado. A tipificação do crime de abuso de informação segue a Directiva comunitária n.º 89/592/CEE, de 13 de Novembro. A tipificação do crime de manipulação de mercado é substancialmente alterada, deixando de se exigir os elementos subjectivos especiais do tipo que tornavam praticamente impossível o seu preenchimento. O dano continua a não integrar a descrição típica.
A moldura abstracta das penas é ligeiramente elevada, mas não ultrapassa os três anos, nível de gravidade médio das penas consagradas no Código Penal e compatível com qualquer das formas de processo.
Introduzem-se também disposições processuais relativamente à aquisição da notícia do crime, delimitando-se com maior rigor os campos de actuação do Ministério Público e da CMVM.
22 - Relativamente aos ilícitos de mera ordenação social, mantém-se a distinção entre contra-ordenações muito graves, contra-ordenações graves e contra-ordenações menos graves (n.º 1 do artigo 388.º), elevando-se as respectivas molduras penais máxima e mínima, de harmonia com parâmetros já consagrados em outros sectores do sistema financeiro.
A técnica de tipificação dos ilícitos de mera ordenação social baseia-se agora na sua delimitação autónoma, abandonando-se a simples remissão para as normas que consagram os deveres.
Também se introduzem relevantes alterações em matéria processual, com destaque para a consagração do processo sumaríssimo (artigo 414.º), moldado sobre processo semelhante existente em processo penal.
23 - O Código transpõe as diversas directivas comunitárias relativas ao domínio dos valores mobiliários, tomando agora em consideração as exigências formais do n.º 9 do artigo 112.º da Constituição: Directivas n.ºs 79/279/CEE,de 5 de Março, 80/390/CEE, de 17 de Março, 82/148/CEE, de 3 de Março, 87/345/CEE, de 22 de Junho, 90/211/CEE, de 23 de Abril, e 94/18/CE, de 30 de Maio, todas relativas à coordenação das condições de admissão de valores mobiliários à cotação oficial de uma bolsa de valores; Directiva n.º 82/121/CEE, de 15 de Fevereiro, relativa a informações a publicar por sociedades cujas acções são admitidas à cotação oficial de uma bolsa de valores; Directiva n.º , de 12 de Dezembro, relativa a informação a publicar por ocasião da aquisição ou alienação de uma participação importante de sociedade cotada em bolsa; Directiva n.º 89/298/CEE, de 17 de Abril, referente às condições de estabelecimento, controlo e difusão do prospecto a publicar em caso de oferta pública de subscrição ou de venda de valores mobiliários; Directiva n.º 89/592/CEE, de 13 de Novembro, relativa à coordenação das regulamentações respeitantes às operações de iniciados; Directiva n.º 93/22/CE, de 10 de Maio, relativa aos serviços de investimento em valores mobiliários, na parte não transposta para o Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras pelo Decreto-Lei n.º 232/96, de 5 de Dezembro; Directiva n.º 95/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, relativa ao reforço da supervisão prudencial, e que veio a ser conhecida como directiva pós-BCCI; Directiva n.º 98/26/CE, do Parlamento e do Conselho, de 19 de Maio, relativa ao carácter definitivo da liquidação nos sistemas de pagamentos e de liquidação de valores mobiliários, transposta apenas na parte aplicável aos sistemas de liquidação de valores mobiliários.
24 - Um diploma desta complexidade, mesmo quando não implique ruptura sistemática, exige uma vacatio legis suficientemente ampla para permitir aos aplicadores a necessária assimilação e adaptação. Daí que se tenha fixado o dia 1 de Março de 2000 como data de referência para a entrada em vigor do Código e para a consequente revogação das normas por ele substituídas. Era todavia imperioso estabelecer, em relação a determinadas matérias, datas diferentes para o início de vigência. Nuns casos, antecipa-se a vigência para satisfazer compromissos do Estado Português perante a Comunidade Europeia (n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do presente decreto-lei) ou para prevenir eventuais perturbações de funcionamento do mercado em domínios sensíveis (n.º 1 do artigo 5.º do presente decreto-lei). Noutros casos, preferiu-se admitir que o início de vigência fosse retardado como garantia de eficácia operacional (artigo 4.º, n.º 3 do artigo 6.º e artigo 9.º do presente decreto-lei).
Sublinhe-se por último, quanto ao direito transitório, que na sua plena compreensão se deve atender às disposições do decreto-lei que aprova o novo regime das sociedades gestoras de mercados regulamentados.
Foi ouvido o Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários e, individualmente, cada uma das entidades aí representadas, designadamente: Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Instituto de Gestão do Crédito Público, Associação Portuguesa de Bancos, Associação Portuguesa das Sociedades de Corretagem e Financeiras de Corretagem, Associação da Bolsa de Valores de Lisboa, Associação da Bolsa de Derivados do Porto, Associação Portuguesa de Seguradoras e Associação Portuguesa de Fundos de Investimento Mobiliário.
Assim, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 106/99, de 26 de Julho, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta, para valer como lei geral da República, o seguinte: